O artigo do Carlos Pacheco recentemente publicado neste jornal sobre a morte anunciada do MPLA e a problemática do lixo na cidade de Luanda, podem parecer assuntos díspares, mas efectivamente são a constatação empírica da incapacidade congénita do MPLA em ter uma atitude governativa digna e civilizada.
Por Carlos Pinho (*)
As considerações de Carlos Pacheco, e de outros autores noutras publicações jornalísticas têm, não só, mas principalmente por base os acontecimentos de Cafunfo e muito em concreto, a postura violenta e criminosa da Polícia Nacional de Angola.
Recuando no tempo, é bom relembramos qual foi o procedimento dos portugueses, como povo aventureiro, descobridor e colonizador. Por força das diversas circunstâncias históricas Portugal sempre assinou tratados e documentos visando balizar e definir as extensões territoriais que queria dominar. Começando com o Tratado de Tordesilhas, em que Portugal e Espanha dividiram o mundo e acabando no Tratado de Simulambuco, porque não sou historiador, mas apenas alguém com interesse marginal por estes temas, a constatação empírica que tenho é que estes tratados serviram inicialmente propósitos mais ou menos concretos de domínio de territórios com uma extensão inicialmente algo limitada. Mas as dimensões territoriais em causa permitiram posteriormente aos portugueses alargarem os seus domínios nessas regiões a que respeitavam tais tratados.
Assim, no caso da América do Sul, os portugueses através das suas intervenções, ou se quiserem invasões territoriais, foram bem além dos limites definidos pelo Tratado de Tordesilhas, acabando por imperar a ocupação de jure dos territórios, o que levou às actuais dimensões do Brasil, muito além das inicialmente permitidas pelo Tratado de Tordesilhas.
Em África, os portugueses adoptaram igualmente o mesmo procedimento. Por exemplo, em 1956, Portugal decidiu integrar Cabinda, em Angola atirando para o canto de uma gaveta o Tratado de Simulambuco. Sobre esta acção veja-se a obra “ENTRE A AUSÊNCIA DE PAZ E DE CONFLITO: PERSPECTIVAS SECURITÁRIAS SOBRE O ENCLAVE DE CABINDA”, do Major de Infantaria Paulo Afonso Junjuvili Bastos, publicado no âmbito do CURSO DE ESTADO-MAIOR CONJUNTO, do DEPARTAMENTO DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS, do INSTITUTO UNIVERSITÁRIO MILITAR, ano lectivo de 2016/2017, Pedrouços, 2017, Portugal.
É evidente que tal acto levou a consequências futuras. Com efeito, nesta obra acima referida, o autor conclui genericamente que, e eu passo a citar, “há vários fatores que podem estar na base da actual situação securitária em Cabinda. A diversidade tribal, que não reconhece fronteiras e regimes políticos, a divergência interna em Cabinda, as diferenças ideológicas e a própria geografia, concorrem para a actual situação e são promotoras de conflitos. Quanto ao processo de pacificação de 2006, este foi conduzido com falhas de ambas as partes. Estas falhas são consubstanciadas na ausência do principal líder da FLEC, no início do processo e no não cumprimento por parte do Governo, quanto à descentralização administrativa da província. Na realidade, aquilo que deveria ter sido um processo inclusivo, não o foi, contribuindo para a atual situação securitária no Enclave angolano de Cabinda.” Ou seja, depreende-se que há culpas tanto por parte da FLEC como do governo do MPLA. Para mais detalhes e considerações sugiro que consultem o dito texto.
Em termos muito práticos, à altura da chegada à Foz do Zaire da esquadra de Diogo Cão, não existia a Angola actual, havia sim uma série de nações ou reinos (os leitores que me desculpem as imperfeições nas designações destas entidades políticas ou sociais) e por mor da acção do dominador colonial foram agregadas numa única entidade, a Angola actual. Aliás, a verdade é que são de facto duas entidades, Angola e Moçambique, pois que a intenção original de Portugal era ligar Angola à contra-costa, ocupando os territórios detalhados no Mapa Cor de Rosa. Intuito contrariado pelo Império Britânico com a apresentação de um Ultimato a Portugal.
Ou seja, foi sempre a intenção de Portugal aumentar e fundir o mais possível os territórios por si, bem ou mal ocupados. Isso passou-se com o antigo Reino do Congo, com a Lunda, com as terras do interior de Angola, dominando por bem ou por mal os vários reinos e sub-reinos que existiam no actual território do país.
De uma certa maneira tal aconteceu igualmente na grande maioria das colónias europeias em África, tendo sido criadas entidades políticas que não respeitaram as diversidades tribais então e ainda hoje existentes. Lembro-me na minha infância da tentativa de secessão do Catanga, liderada por Moisés Tchombé, e mais tarde na minha adolescência, da Guerra do Biafra, e logicamente dos esforços da Nigéria em manter a sua unidade nacional.
Em qualquer destas duas situações, os portugueses, contrariando o seu modus operandi nos territórios que dominavam, apoiaram, na medida do possível, estas tentativas separatistas. A intenção era, sempre que possível, criar problemas às nações africanas independentes que se opunham à dominação colonial portuguesa. Havia aqui, pois, uma dualidade de critérios. No fundo é a velha constatação, “com o mal dos outros posso eu bem”.
Ora, a Carta da OUA refere precisamente no seu artigo 4º o “respeito das fronteiras existentes no momento da acessão à independência”, sendo isto uma posição pragmática visando travar pretensões tribais e territoriais que levassem a processos de secessão que levariam a África actual para uma sucessão infinda de guerras civis, ou mesmo internacionais. Por outras palavras, os chefes de estado africanos signatários da dita Carta da OUA adoptaram uma posição pragmática de se “enterrar o machado de guerra” em termos de reivindicações tribais e regionais sustentadas em históricos anteriores à colonização, por receio daquilo que em linguagem popular, se refere como “ser pior a emenda que o soneto”.
Como pessoa criada nesse conceito de uma Angola unida de Cabinda ao Cunene e do Atlântico ao Leste, espanta-me a ideia de uma Cabinda independente, tanto mais que algo me diz que a haver tal independência, no dia seguinte à efectivação da mesma, Cabinda seria invadida por um dos Congos, quiçá pelos dois. No Caso da Lunda, com o Katanga ali ao lado, seria mais do mesmo. E outras reivindicações tribais e regionais, iriam retalhar ainda mais Angola. E quem diz Angola, diz qualquer outro país africano. Os atritos na Região dos Grandes Lagos estão cá para nos recordar isso.
Em suma, o que seria mais sábio e sensato seria que os vários povos e tribos que constituem a actual nação angolana dialogassem entre si, tendo por base que é mais importante aquilo que os une do que aquilo que os separa. A língua oficial, herdada bem ou mal do colonialismo, a luta contra o colonizador comum, uma certa irmandade forjada nos sacrifícios e lutas passadas. Eu tenho a certeza que, tivesse sido a FNLA ou a UNITA a dominar Angola, ao invés do MPLA, o mesmo se teria passado. Estes movimentos opor-se-iam à fragmentação do país.
Onde é que entra o MPLA e o lixo de Luanda nisto tudo? Simples, no facto de o governo nestes 45 anos de Angola independente ter sido de facto um lixo. Por que é de lixo que se trata. A maneira arrogante como Luanda, e aqui o termo Luanda refere-se à camada (ou melhor camarilha) dirigente, que arrogantemente e à lei da pancada e da bala tem resolvido os problemas e as necessidades regionais, ao invés de ter promovido uma descentralização administrativa, quiçá até criando uma República Federal. Isto por um lado iria dar uma resposta aos desejos autonómicos das diversas províncias tão díspares e por outro responsabilizá-las quanto aos objectivos de independência e unidade nacional comuns.
Mas não, continua vigente o velho centralismo salazarista tão caro ao anterior regime colonial português, e que foi ciosamente cooptado pelo MPLA do Agostinho Neto e seguidores. Seria de esperar que o MPLA tivesse aprendido algo de bom com os males do antigo regime colonial português. Mas não, resolveram simplesmente copiar o que de pior aquele tinha. Ora tal comportamento é uma clara evidência de que na cabeça dos dirigentes do partido só lá existe lixo, ou se quisermos ser bondosos, um vácuo absoluto. Lembro-me de que no estertor final do colonialismo, as Províncias Ultramarinas foram mascaradas de Estados. Era a teimosia cega e obstinada a funcionar. Já foi tarde. A história já estava a ser reescrita. E no caso da Angola actual, o que se passará? Ainda se vai a tempo de se garantir a unidade nacional de Angola, ou o país irá ser balcanizado? O futuro dirá! Mas uma coisa é certa, o único e grande responsável por aquilo que se irá passar é o MPLA.
No Bureau Político do MPLA constato que só existe gente com grandes limitações intelectuais e enormes dificuldades cognitivas, para conseguir ler com sagacidade os ventos da história. É gente que esquece que o conceito de angolanidade apareceu por oposição ao conceito de portugalidade, e a menos que rapidamente arrepiem caminho, o dito conceito de angolanidade será arrastado por esses mesmos ventos da história.
Abusando um pouco mais da vossa paciência deixem-me falar dos morgados (ou morgadios) existentes antigamente em Portugal. A instituição de morgadios em Portugal desenvolveu-se sobretudo a partir do século XIII. Era uma forma institucional e jurídica para defesa da base territorial da nobreza e perpetuação da linhagem. Os morgadios constituíam um “vínculo” que não podia ser objecto de partilhas e eram transmitidos ao filho varão primogénito, que era conhecido como o morgado. No entanto, na falta deste, poderiam passar à linha feminina, enquanto não houvesse descendente varão. Dos restantes filhos, um ou vários seguiam a carreira militar, havia sempre um que seguia a carreira eclesiástica, enfim, iam à sua vida ou ficavam eternamente na dependência do “senhor morgado”. Contudo, os morgadios eram então considerados um entrave ao desenvolvimento económico, além de provocarem graves problemas sociais. Em 19 de Maio de 1863 foram abolidos os morgadios em Portugal, concretamente no reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas.
Mas de facto, em muitas regiões do Norte de Portugal, e só falo desta porque é a realidade que conheço, estes morgadios continuam na prática a existir em muitos casos, se bem que de uma forma encapotada e garantindo direitos sucessórios a todos os herdeiros. Quer porque as propriedades de mais valia continuam em posse comum, quer porque os herdeiros escolhem entre si aquele que irá cuidar dos progenitores na doença e na velhice, herdando por consequência as tais propriedades mais valiosas, que se queriam e ainda se querem indivisas. É o bom senso e o pragmatismo a funcionar! É tudo decidido no seio da família minimizando ou evitando os problemas sociais de antanho.
Ora, para mim, e por analogia, Angola é um grande morgadio, e por isso seria sensato e inteligente que a herdássemos toda em conjunto, criando condições de equidade e respeito pelas diferenças e evitando a sua fragmentação em nações que se iram digladiar com prejuízo de todos, gáudio da vizinhança e daqueles que iriam aproveitar a situação caótica criada para poderem pilhar o país à vontade.
Mas para tal seria preciso elevação civilizacional e cultural por parte de quem governa o país, e não acusações e insinuações mesquinhas sobre a nacionalidade de opositores políticos, considerações absurdas sobre critérios duvidosos quanto à genuinidade dos cidadãos, cor da pele, região de origem, enfim, conceitos tão queridos à já referida menoridade intelectual que inquina o famigerado Bureau Político.
Mas infelizmente, o grande espelho da governação de Angola, é o mar caótico de lixo que empesta a capital, o qual é o verdadeiro paradigma das capacidades de liderança daqueles que assaltaram o poder. Consequentemente, lá iremos apanhar, mais dia menos dia, por novos chorrilhos de atoardas acerca daqueles que gritam alto e bom som que o rei vai nu.
(*) Professor da FEUP – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
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