A Covid-19 deverá fazer aumentar a dívida de África para cerca de 70% Produto Interno Bruto (PIB), conclui um relatório apresentado hoje e que considera a pandemia “uma ameaça sem precedentes” para o financiamento ao continente.
“A Covid-19 representa uma ameaça sem precedentes para o financiamento do desenvolvimento de África ao criar novos riscos e exacerbar as vulnerabilidades pré-existentes”, adianta o documento, uma parceria da União Africana (UA) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
Na sua terceira edição, o relatório sobre as dinâmicas de desenvolvimento em África examina como a transformação digital do continente pode apoiar a criação de empregos em larga escala e gerar novas oportunidades para os jovens.
De acordo com o documento, entre 2019 e 2020, a relação entre os impostos e PIB deverá diminuir em cerca de 10% em pelo menos 22 países africanos, o total das poupanças nacionais poderá cair 18%, as remessas 25% e o investimento directo estrangeiro 40%.
A maioria dos países africanos enfrenta a sua primeira recessão em 25 anos, com as previsões a apontarem para uma diminuição do crescimento económico em 41 dos 54 países em 2020, quando na crise financeira de 2009 apenas 11 países entraram em recessão.
“Como resultado, a dívida da África aumentará para cerca de 70% do PIB contra os 56,3% em 2019, com uma dívida superior a 100% do PIB em pelo menos sete países”, refere-se no documento.
Para os especialistas, as moratórias concedidas pelos países do G20, em Abril, representam “um alívio” para os países africanos, mas “continuam insuficientes”.
O estudo sugere a suspensão e, em alguns casos, a reestruturação das dívidas para libertar “recursos críticos” para alcançar as metas de desenvolvimento da União Africana (Agenda 2063), sustentando que nas negociações de dívidas se recorra cada vez mais ao financiamento privado.
“A crise global é susceptível de fazer descarrilar a África da sua trajectória de desenvolvimento pré-Covid-19”, alerta-se no documento, considerando-se que a crise poderá empurrar cerca de 23 milhões de pessoas para a pobreza extrema na África subsaariana.
Estima ainda que a acumulação de capital e a produtividade no continente poderão permanecer abaixo dos níveis pré-pandemia até 2030.
De acordo com o mesmo estudo, a pandemia de Covid-19 veio evidenciar a importância de os governos impulsionarem a transformação digital de África como forma de desencadear a criação de emprego em larga escala.
“A transformação digital está a expandir-se para quase todos os sectores, mas mais rapidamente nos cuidados de saúde devido à Covid-19”, refere-se no estudo.
Como exemplos, aponta-se os 300 milhões de contas de dinheiro móvel, as 500 empresas africanas de inovação tecnológica em serviços financeiros (“fintech”) ou os mais de 640 centros tecnológicos activos em todo o continente.
“As inovações digitais devem expandir-se muito para além destas ilhas de sucesso e criar um número massivo de empregos para os jovens”, refere-se no documento, defendendo a necessidade de difundir as inovações digitais fora das grandes cidades, garantindo o acesso universal a estas tecnologias.
Actualmente, 72% dos africanos usa regularmente o telemóvel, com o maior número a registar-se no Norte de África (82%) e o menor na África Central (63%).
A adopção digital continua a ser desigual entre géneros e grupos sociais, com apenas 26% dos habitantes das zonas rurais do continente a utilizarem a Internet regularmente, em comparação com 47% dos habitantes urbanos.
No documento sublinha-se, por outro lado, a importância de preparar a mão-de-obra africana para a transformação digital e de garantir a protecção social dos trabalhadores.
Até 2040, os trabalhadores por conta própria e os seus familiares representarão 65% dos empregos, sendo a taxa mais elevada da África Ocidental (74%) e a mais baixa no Norte de África (25%).
No continente, 45% dos jovens sentem que as suas competências são inadequadas para os empregos.
Além da mão-de-obra, no estudo defende-se que as pequenas e médias empresas (PME) sejam apoiadas na sua transformação digital, apontando-se que apenas 31% das empresas do sector formal em África têm um “website”, em comparação com 39% na Ásia e 48% na América Latina e nas Caraíbas.
No relatório aponta-se também os desafios da digitalização para os reguladores nacionais, defendendo-se a harmonização ao nível do continente dos fluxos de dados, bem como dos regulamentos regionais.
“A cooperação supranacional pode fornecer soluções em áreas como a tributação e segurança digital, privacidade, protecção de dados pessoais e fluxos de dados transfronteiriços”, refere-se no documento, assinalando-se que apenas 28 países em África têm legislação sobre protecção de dados pessoais, enquanto 11 adoptaram leis sobre incidentes de segurança digital.
Há décadas a dívida africana mobiliza a atenção das instituições financeiras internacionais e das associações que reclamam pura e simplesmente a sua anulação. Alguns países desendividaram-se graças ao aumento do preço das matérias-primas, porém, outros construíram novos passivos e são ameaçados por fundos abutres.
Na euforia das independências, conquistadas nos anos 1960, os países da África subsaariana quiseram romper com a divisão internacional do trabalho que lhes dava o papel de exportadores de matérias-primas e importadores de bens manufacturados.
Esforçaram-se para diversificar as suas economias pela industrialização e ampliação das suas capacidades produtivas, mas chocaram imediatamente com uma dificuldade: com a notável excepção da África do Sul e da Rodésia (actual Zimbábue), na época governadas por uma minoria branca, nenhum desses países tinha acesso aos mercados internacionais de capitais por não possuírem a chave mágica entregue pelas agências de notação de risco.
Foram então obrigados a limitar-se aos fundos privados garantidos pelos Estados, aos fundos bilaterais acordados pelo Clube de Paris e aos fundos multilaterais emprestados pelas organizações internacionais: Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Africano de Desenvolvimento (BAD).
Ao mesmo tempo, as receitas das exportações com as quais contavam para investir encolheram, principalmente em função da queda do preço mundial dos produtos agrícolas, cujo índice passou de 155 em 1977 para 94 em 2002. Os custos das importações, por sua vez, aumentaram sem parar. Em 1979, a alta das taxas de juros dos Estados Unidos, decidida unilateralmente para lutar contra a desvalorização do dólar, acabou por fazer explodir a dívida do continente.
Desse modo, para “higienizar” as suas contas, os países africanos voltaram novamente para as instituições financeiras internacionais. Estas ofereceram os “remédios que matam”: os programas de ajustamento estrutural (PAS) – os quais impõem a desregulação financeira, o livre-comércio, as privatizações, a redução dos salários, os cortes orçamentais etc.. Estes programas multiplicaram-se, prescrevendo a todos a mesma poção liberal.
Juros das agências de notação
Através da iniciativa Países Pobres Muito Endividados (PPME), lançada em 1996, 36 países, dos quais 30 africanos, beneficiaram de uma diminuição total de 76 mil milhões de dólares do valor das dívidas bilaterais e multilaterais. No entanto, segundo o Comité pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), estas medidas eram um engano: o valor da dívida da África subsaariana passou de 2 mil milhões de dólares em 1970 para 331 mil milhões de dólares em 2012, apesar de os reembolsos efectuados no período chegarem a 435 mil milhões de dólares, o equivalente a quatro vezes o capital emprestado.
Além disso, os países africanos enfrentam os fundos de investimento baptizados de “abutres”. Estes compram a preço de banana, de “segunda mão”, dívidas de Estados em dificuldade. Aguardam o regresso destes países a uma situação normal (o fim dos problemas políticos, por exemplo) e convertem as dívidas perante jurisdições dos Estados Unidos e do Reino Unido para a cobrança das dívidas, dos atrasos de reembolsos e dos juros. Uma primeira onda atingiu a África entre 2000 e 2008, ano da crise financeira mundial. O número exacto de ataques é difícil de avaliar, pois, para não afectarem sua imagem, os Estados preferem evitar a mediatização e negociam com os fundos abutres fora dos tribunais.
Segundo o FMI, 17 processos foram iniciados contra PPME, dos quais quinze africanos. Em Abril de 2014, uma decisão do Tribunal de Recurso dos Estados Unidos deu razão à República Democrática do Congo (RDC) contra o fundo abutre FG Hemisphere Associates. Em primeira instância, este tinha obtido o direito de tomar bens da Sociedade Geral de Estradas e Minas (Gécamines) com a justificação de que esta deveria responder pelas dívidas do Estado ao qual pertence. O FG Hemisphere reclamava 104 milhões de dólares da RDC a título de um contrato de fornecimento de energia que não foi pago.
Obviamente, desde a crise financeira de 2008, os fundos abutres voltaram-se para os mercados europeus, mas nem por isso deixaram de lado a África. Em 2010, o BAD criou a Facilidade Africana de Apoio Jurídico (Faaj), a fim de sensibilizar os governos para a importância dos aspectos jurídicos da gestão da dívida soberana. A Faaj insiste na necessidade de serem acompanhados por conselheiros experientes.
Dois acontecimentos suscitam ao mesmo tempo uma esperança de desenvolvimento e um temor de reendividamento. Primeiro, a presença cada vez mais firme no panorama africano de países emergentes, como China, Índia, Coreia do Sul, Malásia, Turquia e Brasil. Desde o início dos anos 1990, as exportações de matérias-primas a preços melhores trouxeram um real benefício aos países da região. Isso aumentou as opções de crescimento económico e deu-lhes uma hipótese de reduzir o saldo das suas dívidas graças ao crescimento das receitas externas.
Foi assim que a Nigéria, maior potência económica do continente, pôde, em Novembro de 2005, pagar dois terços dos 18 mil milhões de dólares que devia aos credores do Clube de Paris. Em 2009, Angola tornou-se o principal parceiro comercial africano da China. Pequim anulou a dívida angolana, de 67,38 milhões de Yuanes, e suprimiu as taxas de alfândega para as importações de 466 categorias de produtos em favor de Luanda. O mapa dos investimentos chineses recobre o dos recursos naturais preciosos: Sudão, Angola e Nigéria para o petróleo; África do Sul para carvão e platina; RDC e Zâmbia para cobre e cobalto.
Se o envolvimento crescente de Pequim abre possibilidades, também traz riscos para o desenvolvimento africano. Os chineses tomaram o controlo de certas indústrias locais, adquirindo de uma só vez as cotas de exportação sobre os mercados ocidentais de produtos africanos como o têxtil. Pequim estudou o mercado da Etiópia, cujas exportações de têxteis cresceram 257% em dez anos. Da mesma forma, o modelo de cooperação adoptado consiste num pacote que combina investimentos directos, empréstimos concessionais (que compreendem uma parte em doações – em princípio, pelo menos 35%), comércio e ajudas públicas.
Sem regras de repartição dos custos, nem sempre é possível determinar se os empréstimos concessionais são incluídos no valor da dívida ou são parte integrante da ajuda. Levando em conta o importante volume de empréstimos desse tipo, a preocupação quanto ao fardo futuro da dívida dos países africanos aumenta se, na óptica chinesa, os empréstimos concessionais forem assimiláveis à ajuda.
Segundo acontecimento: a abertura para a África dos mercados de capitais. Diversos países receberam a chave que constitui o grau de investimento atribuído pelas agências de notação de risco – Congo-Brazzaville, Costa do Marfim, Egipto, Gana, Quénia, Moçambique, Uganda, Ruanda, Senegal e Zâmbia, principalmente. Essa nota revelou-se, na maioria dos casos, superior ou igual à de nações industrializadas como a Turquia, o Brasil ou a Argentina. O interesse dos investidores internacionais por estes mercados aumentou nos últimos anos. Consideram a maioria deles mercados intermediários a alto rendimento. Os investidores institucionais nacionais – tais como bancos, empresas de seguro ou fundos de pensões privados – e os investidores privados locais também são activos.
Entre os países africanos que souberam atrair os capitais privados pela emissão de títulos, figura o Ruanda, cujo Banco Central emitiu os seus primeiros empréstimos em dólares em Abril de 2013. Segundo o index Bloomberg, os investidores obtiveram um nível de rentabilidade da ordem de 9,3%, o que é superior à taxa de 6,6% gerada pelos mercados dos países emergentes. Como explica Aboubacar Fall, presidente do Conselho de Gestão da Faaj, “esse sucesso financeiro deve-se essencialmente à boa qualidade das reformas estruturais empreendidas pelo Ruanda há diversos anos, assim como à diversificação das bases de sua economia”.