Depois de mais de quatro décadas de luta, é reconhecida formalmente a existência da FLEC como grupo armado ou rebelde em Cabinda. Entretanto, Angola intensifica a pressão sobre a resistência armada. O reconhecimento do conflito está a animar debates sobre a dinâmica coerente para uma resolução pacífica do diferendo entre Cabinda e Luanda.
Por José Marcos Mavungo (*)
O reconhecimento foi tornado público, no dia 1 de Maio último, pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. De acordo com ABC News, 16 grupos armados responderam positivamente ao apelo do chefe da ONU por um cessar-fogo global para combater a pandemia de coronavírus.
Ao desenvolver o “lead” da notícia, aquela divisão de jornalismo da “American Broadcasting Company” destacou a localização dos grupos armados mencionados por António Guterres: Iémen, Mianmar, Ucrânia, Filipinas, Colômbia, Angola, Líbia, Senegal, Sudão, Síria , Indonésia e Nagorno-Karabakh. E o grupo armado ou rebelde em Angola vem identificado no documento tornado público pelo Secretário-Geral da ONU como Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC).
O reconhecimento do conflito em Cabinda surge na sequência do apelo de António Guterres a um “cessar-fogo global imediato” em todos os conflitos para preservar a vida de civis perante a “fúria” da pandemia da Covid-19. Enfatizando o seu apelo, António Guterres dira: “Baixem as armas, silenciem as armas, acabem com os ataques aéreos. Vamos pôr fim ao flagelo da guerra e lutar contra a doença que assola o mundo. Isso começa com o fim dos combates. Em toda a parte. Em todos os lugares. Imediatamente.”
O apelo foi lançado na segunda-feira, 23 de Março; e, a 13 de Abril do corrente, a FLEC respondeu de forma positiva ao apelo com um cessar-fogo.
Porém, a declaração de António Guterres sobre a existência do conflito em Cabinda é o que o Presidente de Angola João Lourenço nunca quis ouvir da ONU, estando habituado a tapar o sol com a peneira. Assim, sempre habituado a correr de um lado para o outro para convencer de que já não existe conflito em Cabinda, mobilizou o seu arsenal militar para desferir mais um golpe na resistência armada.
As Forças Armadas Angolanas (FAA) retomaram as hostilidades no dia 4 de Junho do corrente, violando deste modo um cessar-fogo aplaudido pela ONU. Nestes últimos 12 dias há registo de confrontos entre as FAA e as Forças da FLEC em várias localidades de Cabinda, em especial nas áreas do Massabi e Inhuca. O regime angolano sempre se esqueceu de uma grande lição da história: “A força não faz o direito, que guerrilheiros quase nunca são derrotados, que no longo prazo esses “Davids’ derrotam os ‘Golias’ pela estratégia da saturação”.
Observe-se, as diligências sobre o dossiê de Cabinda na ONU remontam aos anos 60, quando, a 6 de Outubro de 1960, do alto da Tribuna da Assembleia-Geral das Nações Unidas, Stéphane Tshitshele, Vice-Presidente e Ministro dos Negócios Estrangeiros do Congo-Brazzaville apresentou o problema de Cabinda à Comunidade Internacional.
O discurso de Stéphane Tshitsele na ONU censurava a Portugal a integração administrativa de Cabinda em Angola, contra a letra e o espírito dos tratados – o de Chinfuma, aos 29 de Setembro de 1883; o de Chicamba, aos 26 de Dezembro de 1884; e o de Simulambuco, a 1 de Fevereiro de 1885; tratados esses aceites na Conferência de Berlim, que elaborou a obra jurídica daquilo que é chamado “ Carta Colonial”, quadro jurídico de referência no processo de descolonização, no qual Angola e Cabinda são tomados como duas entidades distintas.
E, na sequência de várias outras diligências, a ONU através da Resolução 1542 (XV) de 15/12/1960 considera Cabinda “um território autónomo” com direito a autodeterminação; Quaison Sakey, o primeiro grande diplomata que a África Negra deu às Nações Unidas, apresentou a “Questão de Cabinda” no Conselho de Segurança das Nações Unidas, entre 1962 e 1963;e a OUA, actual União Africana (UA), na sua XII Cimeira em 1966, numerou as colónias africanas atribuindo a Cabinda o número 39 Estado a descolonizar e a Angola o 35.
Porém, o Movimento das Forças Armada (MFA), que liderou o golpe militar de 25 de Abril de 1974 em Portugal, ignorou estas resoluções no processo da descolonização. E foram celebrados os Acordos de Alvor, em 15 de Janeiro de 1975, entre Portugal e os três movimentos angolanos de libertação – MPLA, FNLA e UNITA. As partes acordaram, entre outros, a anexão de Cabinda como parte integrante do futuro Estado africano (Art.3º dos Acordos de Alvor), sem o prévio consentimento dos autóctones do Enclave.
É assim que com a acessão de Angola à independência em contexto de Guerra Fria, a ONU se sentirá ultrapassada e o dossiê de Cabinda se submeterá à dinâmica de uma ética pragmática, influenciada sobretudo por terceiros poderosos com interesses estratégicos em Angola.
Desde então, salvo raras excepções, nenhum governo se aventura interferir no assunto interno de Angola, sem represálias políticas. O derrube de Pascal Lissouba, Presidente do Congo-Brazzaville entre 31 de Agosto de 1992 e 15 de Outubro de 1997, é eloquente. Mas as diligências continuaram, e para muitas personalidades políticas e cívicas a luta pela reposição dos cabindas nos seus direitos como povo é legítima e necessária.
Diante destas diligências, a ONU colocou-se perante uma moral codificada, pela qual raramente se reserva o direito de influenciar ou conduzir o processo de expressão da vontade de um povo pertencente a uma entidade que reconhece. A sua posição sobre o dossiê de Cabinda é de um verdadeiro silêncio ensurdecedor.
Este silêncio tem lesado muito a causa dos Povos de Territórios Não Autónomos, em particular aquela de Cabinda, que se sentem órfãos do processo de descolonização da ONU, embora excepcionalmente permissível a ONU conduzir processos “em casos de genocídios, crimes contra a humanidade, Estados falhados…”
Recorde-se, no dia 8 de Novembro de 1975, nas vésperas da acessão de Angola à independência, assume proporções de um conflito armado.
Muitas vezes, os líderes de Cabinda têm sido aconselhados a dialogar para resolver o conflito. Ou, pelo menos têm tomado iniciativas neste sentido, mas há um princípio científico que diz: “Todo o conflito tem uma solução desde que ambas as partes tenham um objectivo comum”. Porém, há quase 45 anos de «cross fire» que se procura este objectivo comum entre Angola e Cabinda e ainda não foi encontrado.
As rondas de negociações tidas até agora são cerimónias ritualizadas, despidas de qualquer envolvimento da ONU ou, pelo menos, da UA, por exigências do actual regime de Luanda, e vigiados pela secreta angolana, sempre apostada na estratégia de dividir para melhor reinar.
Para além do não envolvimento da Comunidade Internacional, a fragilidade destes encontros reflecte-se antes de mais nada no ostracismo: a expulsão de instituições e personalidades chaves e prestigiadas ligadas ao próprio processo, ou que, pelo menos se prontificaram a oferecer os seus préstimos ao processo; e, sobretudo, a persistência do dogmatismo e centralismo de Luanda, que confiscou para si o monopólio da “Questão de Cabinda” – como uma espécie de segredo de Estado – e exclui a possibilidade de conferir ao povo de Cabinda a possibilidade de se pronunciar sobre o seu destino.
Em desespero de causa, alguns autores políticos de Cabinda desertados da resistência armada assumiram o compromisso de integração nas instituições angolanas e respondendo a um desejo antigo da caudilha de Luanda, na figura de António Agostinho Neto, segundo o qual “Angola é um só Povo, uma só Nação”.
Assinado sob pretexto de pacificar Cabinda em regime de Estatuto Especial (EE) e, assim, libertar mais recursos para reconstruir e desenvolver o território de Cabinda, o Memorando de Entendimento revelou-se um projecto meticulosamente urdido para a felicidade do homem do regime «en place», acabando assim por ser uma mera declaração de intenções: ungidos com altas benesses, os algozes continuaram a tirar partido económico da pandemia dos recursos naturais de Cabinda.
Por conseguinte, os autóctones do Enclave continuaram vítimas das criminosas patifarias já amnistiadas no dito processo de paz, a serem torturados pelo “despotismo decorrente de uma governação própria a um estado colonizado de tipo feudal”.
Daqui vê-se claramente iniciativa de um pseudo processo de paz que, viciado por preconceitos ideológicos e interesses petrófobos, se estruturou na busca de uma síntese em torno do status quo, deixando espaço a uma visão irrealista da “Questão de Cabinda”.
Por esta razão, o conflito é hoje uma realidade, e continua a ceifar muitas vidas humanas. Os cabindas estão marcados por este longo conflito. Não há família alguma em Cabinda que não seja marcada directa ou indirectamente pelos efeitos nefastos do conflito. São marcas de uma descolonização desastrosa e dos fracassos da comunidade internacional, das discriminações e das injustiças sofridas ao longo destes últimos 45 anos, de nunca reconhecer o seu direito inalienável a viver como povo.
Em suma, o quadro político-jurídico actual compreende-se como uma apropriação do território de Cabinda, ignorando os seus habitantes ou, pelo menos, reduzindo-os ao estatuto de servos da gleba, que, colocados sob controlo cerrado das forças de segurança do Estado, não podem fazer qualquer reclamação face aos problemas de pobreza, doença, fome, assassinato, injustiça, exclusão social e política a que estão votados.
Neste contexto, podemos entender que a autodeterminação tem uma importância vital para a vida do povo de Cabinda e no caminho de crescimento da sua identidade. Aliás, o sol quando nasce é para todos, o que lembra que o direito internacional é para todos os povos.
Sendo assim, e na sequência da declaração que António Guterres fez, cabe a esta pergunta o papel central: «O que é que pode ser feito, para encorajar o ânimo humano dos autores sociais, em particular do regime, e, assim, encontrar o caminho de uma paz duradoira para Cabinda?»
Nesta ordem de ideias, falar apenas de paz não tem a possibilidade de atrair o povo de Cabinda, a não ser que este se sinta tocado «por algo fascinante», como a Verdade e a Justiça que garantem um futuro digno para os seus filhos. Por esta razão, a ONU tem, por isso, de ultrapassar o silêncio a que uma certa estagnação ditada por interesses de terceiros poderosos, mesmo dentro do pragmatismo político, a votava.
Portanto, há que transcender uma paz para lutar contra pandemia da Covid-19, e reabrir o processo dos Povos Não Autónomos, conforme António Guterres prometeu no início do seu Mandato como Secretário-Geral da ONU, e responsabilizar os administradores destes Territórios que, na sua fúria contra o princípio dos povos a dispor de si mesmos, fazem até troça daqueles que por este direito de debatem, chegando mesmo a sacrificá-los.
E façamos votos que o reconhecimento do conflito em Cabinda por António Guterres, seja um passo para que a ONU assuma as suas responsabilidades no processo de restauração de uma paz verdadeira fundada na justiça e na dignidade dos povos para o território de Cabinda.
(*) Activista dos Direitos Humanos