Já foi votada a nova lei que se inscreve no Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos. Mas o regime não se deixa ensinar pelos tumultos da história destes últimos 45 anos e criar as condições de reconciliação. Talvez o executivo devesse ouvir Nelson Mandela.
Por José Marcos Mavungo (*)
Esta quinta-feira, 21 de Maio, os deputados angolanos votaram a Lei do Regime Especial de Justificação de Óbitos ocorridos no país na sequência do longo conflito armado desde 1975, em especial dos crimes de Maio de 1977 (pelo menos, 30 mil mortos). A lei foi aprovada com 197 votos a favor (MPLA e UNITA), 8 abstenções (CASA-CE) e 1 contra. O texto aprovado frisa a emissão de certidões de óbito às vítimas dos conflitos. De momento, aguarda-se a sua promulgação e publicação no Diário da República.
Iniciativa governamental, a lei surge na sequência da aprovação do Plano de Reconciliação em Memória às Vítimas dos Conflitos Políticos, cuja implementação deveria culminar com a construção de um Memorial às Vítimas dos Conflitos Políticos. Segundo, o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiróz o plano é a ferramenta que vai permitir erguer este edifício “com persistência, com paciência e com foco no perdão”.
A questão relativa ao processo de Reconciliação em Memória às Vítimas dos Conflitos Políticos tem suscitado muitas interrogações e, aparentemente, desencadeado respostas nem sempre devidamente esclarecedoras e fundamentadas. E isto, sobretudo, pelo facto de estarmos habituados aos ardilosos processos de reconciliação que o regime angolano vem conseguindo engendrar.
Sim, estamos no domínio do absurdo, da libertinagem e desgovernação do regime depois de tantas tentativas de aproximação – como no caso dos Acordos de Alvor, no dia 15 de Janeiro de 1975, em Alvor (Portugal); dos Acordos Bicesse, no dia 31 de Maio de 1991 em Lisboa (Portugal); dos Acordos de Cessar Fogo de Nzita Tiago com as FAPLA, no dia 16 de Fevereiro de 1985, no Sáfica (Cabinda); do Memorando de Entendimento entre o governo e a UNITA, no dia 4 de Abril de 2002, em Luena… Também, absurdo em votar Constituições no Parlamento, cujas aplicação se confronta com um pragmatismo partidocrático, no qual justiça e injustiça são a mesma coisa, contanto que sirvam os interesses das individualidades e do partido no poder.
Estamos perante um absurdo grosseiro, ordinário, mas de tal forma exuberante que, ao pé daquele que lhe governa, o cidadão parece um escriturário murcho e sem imaginação, submetido ao despotismo destes últimos 45 anos, um período de barbárie: assassinatos atrozes de angolanos, como nunca o próprio colono.
Hoje, os problemas da reconciliação continuam na ordem do dia, como nos anos 70 aquando do desastre da descolonização: poderes absolutos do Presidente da República; fragilidade das instituições políticas e jurídicas; soldados/forças de ordem afectas ao partido no poder; vontade leonina na resolução do diferendo com Cabinda; pessoas a serem apanhadas pela violência, perseguição e injustiça. Por conseguinte, as populações continuam a viver em situação de caos, de infortúnio e de miséria imerecida; e são notórias as dificuldades de superação do trauma e do medo, que passa pela reconstrução psicológica e superação do crime e da cultura da violência política.
O agravante em tudo isto, é que, diante das falhas que arruinaram o país, o regime «en place» não sabe cair em si para conferir um novo rumo ao país, e dar-se com as exigências de convívio em estado de Direito Democrático. Os atropelos à lei e a criminalização dos protestos pacíficos continuam a ser o pão nosso de cada dia, apesar do famoso slogan «corrigir o que está mal e melhorar o que está bem». A ser assim, como se pode dar e receber perdão quando não há mostras de sinais de arrependimento?
Nestas circunstâncias, a construção de um Memorial às Vítimas dos Conflitos Políticos lembra a actuação dos «escribas e fariseus» de que nos fala Cristo (Mt 5, 20;16, 6 -12; 23, 1-39), estes hipócritas que edificam «os sepulcros dos profetas», adornam «os monumentos dos justos» assassinados pelos seus pais; e, no entanto, continuam a matar e crucificar «sábios e profetas».
Diante destes desafios, a reconciliação e a consolidação da paz que realmente interessa ao país ultrapassa o quadro de uma Lei de emissão de Certidão de Óbitos e da construção de um Memorial às Vítimas dos Conflitos Políticos. Neste caso, a Lei será apenas uma simples medida para o boi dormir, como têm sido o caso da Lei Sobre o Direito de Reunião e de Manifestação, Lei No. 16/91 (DR no. 20, 1a. Série) 11 de Maio, 1991.
Então, perdão ou castigo? Como lidar com o legado da corrupção e dos direitos humanos destes últimos 45 anos? Eis as grandes questões que atravessam as consciências dos angolanos e de todos quantos gostariam de ver uma Angola reconciliada.
A nível do continente africano, mais precisamente na África subsariana, temos exemplos de muitas opções devendo merecer a atenção de Angola. Referir-me-ei apenas a duas: a do Ruanda, considerado um exemplo de justiça sem reconciliação, ou seja, em que o governo assumiu a responsabilidade de acusar e julgar altas individualidades implicadas no genocídio de 1994; e a da África do Sul, encarada como modelo de reconciliação sem processo de justiça no seu sentido formal/judicial, sustentada por uma Comissão de Verdade.
Convém recordar que o Ruanda dos anos 90 estava marcado por uma verdadeira tentativa de desumanização – assassinatos, preconceitos, milícias extremistas, ódios interétnicos e políticos -, cujo grau e intensidade das atrocidades cometidas tornariam a convivência intergrupal (hutus e tutsis) praticamente impossível, se viesse a prevalecer uma cultura de impunidade na sociedade ruandesa. Sendo assim, o julgamento dos participantes (extremistas hutus) nos massacres estimados em 800 mil mortes (tutsis e hutus moderados) encontrou o seu justo valor.
Assim como o Ruanda, a África do Sul, também foi marcada por fracturas profundas de grupos sociais. Naquele momento, o país vivia uma violência indescritível sob o alibi da revolução operada pelo apartheid e ameaças sérias pesavam sobre a organização das primeiras eleições multirraciais – colonos brancos apegavam-se á ortodoxia da segregação racial, o partido zoulou Inkatha ameaçava boicotar o escrutínio, extremistas de diversas tendências organizavam atentados terroristas que causavam dezenas de mortos…
Porém, o pensamento de que a comunidade negra e comunidade branca estava condenada a partilhar o mesmo espaço sociogeográfico, fê-la optar por uma justiça restauradora, e não por uma justiça punitiva, expressa sobretudo na atitude de Nelson Mandela. Deste modo, não obstante a complexidade dos problemas da sociedade sul-africana com grave polarização sobre o passado, os autores sociais adoptaram a fórmula do esquecimento e do reconhecimento do passado.
Cada caso é único, dependendo a abordagem de uma multiplicidade de factores tais como as causas, natureza e contextualização do conflito. Porém, a prudência aconselha que as Comunidades políticas em processos de abertura ao futuro são sempre capazes de aproveitar qualquer coisa da experiência de comunidades já avançadas em processos similares.
E, no seu significativo património das experiências de Ruanda e África do Sul encontramos propostas de mecanismos e factores psicossociais susceptíveis de contribuir efectivamente para a restauração de uma ordem social de liberdade e fraternidade, e ao mesmo tempo criar obstáculos à acções estruturais susceptíveis de conduzir a novos conflitos ou de repetir práticas que frustram as expectativas sociais.
Maior destaque foi o processo sul-africano, com a criação da Comissão de Verdade e Reconciliação, em vista ao conhecimento empírico importante derivado de casos práticos. Consolidados em torno da sua própria verdade, as comunidades existentes acabaram por erguer um processo de reconciliação pós-apartheid.
É, em certo sentido, compreensível que se procure fugir das questões marcantes do contexto de cada país, na medida em que tocam o foro pessoal e institucional. Porém, sabemos bem os riscos de uma reconciliação puramente sociológica, articulada rotineiramente entre convicções e práticas. Pode-se enterrar o passado, salvar o Estado, mas esta opção não cura necessariamente a sociedade.
Aliás, a psicologia moderna aponta para imprevisíveis e trágicas consequências dos crimes políticos e do roubo do erário público: aqueles que não enfrentam o seu lado mais sombrio serão, mais cedo ou mais tarde, confrontados com ele de modo ainda mais intenso.
Angola precisa de um virar de página, celebrar um novo pacto capaz de dar ao país uma nova convivência entre governantes e governados. Precisa de novo espírito, uma nova Constituição, um novo caminho.
A viragem é uma necessidade urgente nestes nossos tempos em que, após um longo período de conflito e esbanjamento do erário público, o cidadão comum quer que a sua voz seja ouvida, que os abusos sejam debatidos e denunciados, que a sociedade exorcize colectivamente os seus traumas e que a verdade seja restabelecida, mesmo que isso não implique a condenação dos culpados a penas efectivas.
Sem simplificar aquilo que é complexo, deve-se dizer que, ao longo da história, os passos mais consistentes no caminho da reconciliação foram sempre sustentados por histórias concretas de amizade, fraternidade e justiça. E se há um desafio urgente a acolher, em vista dessa caminhada, é precisamente esse: o do mútuo conhecimento entre os cidadãos, o da relação franca, tecida na gratuidade, na descoberta, no prazer de estarem juntos, em trocas criativamente cordiais e justas que avizinhem não só a razão.
Animados continuamente por uma fé viva nestas exigências, e justificados pela prática de uma grande integridade moral, os homens de boa vontade conseguem se fazer artífices da paz, vencer a irracionalidade da violência e perversão da consciência política, dominar os gritos de ressentimento, ódio e rancor. E, assim, surgem como libertadores do homem, organizam a vida social na justiça e na igualdade, conferem sobre os seus compatriotas, o seu povo o Direito à dignidade, e forçam a admiração do mundo inteiro.
Mas talvez a necessidade do novo caminho para Angola não fosse possível se a reconciliação não estiver contaminada pela paixão pelo ideal de Liberdade e Fraternidade incarnada por Nelson Mandela, que escutava todos os dias os anseios das populações e as exigências de paz naqueles anos tão carregados de incertezas, vendo (ou melhor, ouvindo) nelas um sinal palpável de Redenção.
A este respeito, recordo igualmente uma das imagens mais radiosas da reconciliação na época contemporânea: a do abraço trocado entre Nelson Mandela e Frederic De Klerk, em 1993, como primeiro gesto de perdão recíproco que se tornou símbolo do fim do apartheid, a reconciliação que o povo sul-africano desejava.
Por certo não foi a África do Sul que inventou o projecto de reconciliação que pôs fim ao apartheid; mas também a comunidade negra e a comunidade branca não podiam continuar a viver em comunidade sem ele. Penso que, face aos desafios dos «ghettos políticos e económicos» destes últimos 45 anos, as fracturas resultantes destes ghettos, Angola precisa de um processo similar para impulsionar o projecto de reconciliação nacional pós-conflito.
As populações de Angola não se sentirão em paz e liberdade, nenhum cidadão, incluindo aqueles que detêm o puder, enquanto não prevalecer, já nem digo o bom senso – porque o bom senso esteve sempre arredado da governação destes últimos 45 anos – mas um mínimo de decência, sentido do ridículo e de vontade política para fazer a «mea culpa» e enfrentar os desafios do momento.
(*) Activista dos Direito Humanos
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