O caso (apenas mais um) da mediateca do Bié, que o Presidente da República de Angola anunciou ter sido inaugurada mas que afinal continua fechada ao público, causou “embaraço” ao executivo, reconheceu João Lourenço. Nada que a demagogia habitual e ancestral não resolva.
Durante o seu discurso sobre o Estado da Nação na terça-feira, em Luanda, na abertura do ano parlamentar, João Lourenço fez um balanço da sua acção governativa ao longo destes dois anos, afirmando que a mediateca do Bié tinha sido inaugurada em 2019.
A informação acabaria por ser desmentida por vídeos colocados nas redes sociais, que mostravam o equipamento ainda envolto por chapas metálicas.
Na capital do Bié, Cuíto, onde esteve para uma visita de dois dias, João Lourenço admitiu que a falha embaraçou o governo. É claro que ele não tem culpa. Quem lhe passou essa informação foi o Presidente do MPLA (João Lourenço) que, por sua vez, a tinha obtido do Titular do Poder Executivo (João Lourenço)…
“Alguém criou uma situação embaraçosa para o executivo, que estamos a investigar no sentido de responsabilizar quem o fez”, assumiu João Lourenço num encontro com jovens do Bié, onde foi alertado para a necessidade de equipar a mediateca.
A assunção do embaraço, recebida com palmas, João Lourenço juntou a promessa de “apetrechamento em tempo recorde” do equipamento, uma vez que “a obra está efectivamente pronta”, e disse já ter tomado medidas neste sentido.
“Vamos ver se vos damos esta prenda no Dia da Independência Nacional, 11 de Novembro”, anunciou o chefe do executivo angolano, novamente interrompido pelos aplausos dos que, apesar de tudo, não se importam de ser enganados pelo mais alto representante da nação.
Ao longo de quase duas horas, numa iniciativa que designou como “Diálogos com a Juventude” João Lourenço ouviu (falta saber se registou) as sugestões de vários representantes de organizações juvenis, concordando com algumas e rejeitando outras, ouviu queixas sobre projectos por concluir (eventualmente já dados como prontos e inaugurados), desabafos sobre a falta de empregos, falta de instalações desportivas, falta de bolsas de estudo, falta de casas acessíveis e baixos salários. Falta de quase tudo num país independente desde 1975, em paz completa desde 2002 e gerido há 44 anos pelo mesmo partido, o MPLA.
E até o apelo de um jovem, Faustino Sassambo, porta-voz do corredor centro-sul do Bié que pediu ao Presidente “mais fiscalização aos projectos” e “mais atenção à idoneidade da equipa que o auxilia, pois sente-se que muitas das vezes algumas das situações que lhe chegam não condizem exactamente com aquilo que é a realidade dos cidadãos”.
Propostas que João Lourenço prometeu acatar: “Vamos seguir o seu conselho e exigir mais dos membros do executivo, sobretudo no que diz respeito ao dever de comunicar e comunicar bem”. Teria ficado bem reconhecer que o responsável máximo desse executivo é ele próprio, devendo por isso ser o primeiro a pedir desculpas.
O presidente disse que ia tentar atender a todas as situações relatadas, mas acrescentou que “quando os filhos pedem muito, o pai tem dificuldades em atender tudo” e considerou que é preciso saber estabelecer prioridades.
O chefe do governo angolano foi também confrontado com casos de famílias que beneficiam de projectos habitacionais aos quais não têm direito e apelou à denúncia destas situações. O que andará a fazer o governador provincial?
“Havia pensionistas-fantasma e ex-combatentes-fantasma. Há fantasmas em todo o sítio, pessoas que não têm direito a certos benefícios, mas ficaram com eles recorrendo a esquemas de esperteza e prejudicando quem, de facto, tem direito”, referiu João Lourenço, dizendo que o mesmo se passa na habitação. Recorde-se que, no caso dos ex-combatentes, João Lourenço foi “só” ministro da Defesa.
“Há quem consiga adquirir mais do que uma casa do Estado, é preciso que haja vigilância por parte dos cidadãos. Quem conhece esses casos deve denunciar para proteger quem de facto tem direito”, exortou. E fez bem. E, mais uma vez, para além de gerirem os seus negócios privados, o que andam a fazer os representantes locais do governo central, os governadores provinciais, escolhidos por João Lourenço?
Informações erradas, incompetência, MPLA
Mais de 160 crianças morreram em 2018, na província do Bié devido a má nutrição severa (fome em português entendível), segundo dados divulgados em Janeiro deste ano pela responsável do Centro Nutricional Terapêutico local, Dulce Cufa. No discurso do Estado da Nação este assunto não foi abordado.
Tal como o anterior presidente, João Lourenço deve ter sido informado destes dados depois de uma frugal refeição à base de trufas pretas, caranguejos gigantes, cordeiro assado com cogumelos, bolbos de lírio de Inverno, supremos de galinha com espuma de raiz de beterraba e uma selecção de queijos acompanhados de mel e amêndoas caramelizadas, com cinco vinhos diferentes, entre os quais um Château-Grillet 2005…
Também nesse mesmo dia (14 de Janeiro), certamente por mera coincidência, ficou a saber-se que o Estado/MPLA iria investir 111 milhões de euros na construção de um novo complexo hospitalar, para as Forças Armadas Angolanas, obra aprovada por despacho do Presidente da República, João Lourenço.
Dulce Cufa, citada pela Angop, avançou que no ano passado foram diagnosticadas com a doença e tratadas 1.022 crianças, maioritariamente de famílias com menos condições sociais.
O desmame precoce, a carência alimentar e patologias prolongadas são os principais factores no surgimento da doença, indicou a responsável, salientando que palestras sobre prevenção e combate à má nutrição têm sido realizadas nas comunidades.
Em 2018, dados governamentais davam conta que Angola tinha uma taxa de desnutrição crónica na ordem dos 38 por cento, com metade das províncias do país em situação de “extrema gravidade de desnutrição”, onde se destacava o Bié, com 51%.
As províncias do Bié com 51%, Cuanza Sul com 49%, Cuanza Norte com 45% e o Huambo com 44% foram apontadas, na altura, pela chefe do Programa Nacional de Nutrição, Maria Futi Tati, como as que apresentavam maiores indicadores de desnutrição.
“São cerca de nove províncias que estão em situação de extrema gravidade de desnutrição, sete províncias em situação de prevalência elevada e duas províncias em situação de prevalência média”, apontou Maria Futi Tati, em Junho de 2018.
Um recente relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) indicava que, em Angola, 23,9% da população passa fome. No relatório de 2018, a FAO refere que cerca de 821 milhões de pessoas no mundo passam fome, o que se traduz num aumento quando comparado com os dados de há dez anos.
Em Angola, segundo a FAO, “23,9% da população passa fome”, o que equivale a que “6,9 milhões de angolanos não tenham acesso mínimo a alimentos”. Reparou Presidente João Lourenço? 6,9 milhões?
Recordemos que a Directora Adjunta da FAO, Maria Helena Semedo, enalteceu em 6 de Novembro de 2014, em Luanda, o contributo de Angola nas acções que visam o combate à fome e erradicação da pobreza. Viu-se. Já temos 20 milhões de pobres.
De acordo com a responsável, que falava depois da audiência com o então ministro da Agricultura, Afonso Pedro Canga, Angola foi dos primeiros países do continente que contribuiu com mil milhões de Kwanzas (USD 10 milhões), para o fundo Fiduciário Africano de Solidariedade, de apoio aos países africanos no combate à fome e à pobreza.
Maria Helena Semedo disse que o contributo de Angola e de outros países membros do continente tem permitido à FAO apoiar e desenvolver vários projectos de extrema importância a nível do continente africano.
O encontro, segundo Maria Helena Semedo, permitiu informar o ministro da necessidade de se trabalhar nas estatísticas agrícolas, para permitir uma tomada de decisão sustentada e reforço da estrutura de pesquisa e extensão rural.
Maria Helena Semedo informou o ministro que a FAO tinha então aprovado um projecto avaliado em dois bilhões de dólares para apoiar os países africanos que estavam seriamente afectados com o flagelo da Ébola, para a melhoria da segurança alimentar das suas populações.
“Este financiamento vai permitir melhorar a qualidade da segurança alimentar e nutricional dos países membros que têm sido afectados”, referiu.
Quanto aos programas do Executivo angolano que visam o combate à fome e pobreza, disse que o Estado/MPLA se tem empenhado para cumprir com as metas que visam a erradicação da má nutrição da população e conseguiu reduzir a taxa de desnutrição de 78% em 1990-92 para… 18% em 2014.
Gozar com a fome… dos outros
No dia 27 de Agosto de 2018, depois de um faustoso repasto, a comissária para a Economia Rural e Agricultura da União Africana (UA), a angolana Josefa Sacko, afirmou, em Luanda, que Angola progrediu na redução da fome, mas precisa de reforçar a estratégia para diminuir a pobreza, agravada com o desemprego entre jovens.
Josefa Sacko falava à imprensa à margem do encontro de lançamento do Processo de Reformulação do Plano Nacional de Investimento Agrícola de Angola (PNIA), que visa alinhar a agenda interna com as metas internacionais, quer a continental quer a global, respectivamente para 2030 e para 2063, para que possa reduzir a pobreza e acabar com a fome até 2025.
Recorde-se, apenas para contextualizar a temática, que Angola tem mais de 20 milhões de pobres, muitos dos quais nunca ouviram falar de uma coisa que tanto Josefa Sacko como o Presidente João Lourenço conhecem bem: refeições.
“Houve muitos progressos para acabar com a fome, tendo na base os programas de segurança alimentar”, disse a angolana Josefa Sacko, sublinhando que, em termos de combate à pobreza, Angola precisa de “fazer mais esforços”.
“A extrema pobreza é condenada a nível mundial e temos a questão do desemprego dos jovens, que é um dos pontos que acentua a pobreza no nosso continente e não só. As nossas zonas rurais, onde se faz a agricultura, deve ser revista para podermos investir e operar aí uma transformação”, frisou.
Folha 8 com Lusa