A construtora portuguesa Soares da Costa vai retomar a sua participação num consórcio responsável pelas obras de alargamento da rede de abastecimento de água em Luanda, projecto avaliado em 320 milhões de euros, segundo um despacho presidencial.
No despacho, de 3 de Junho, o Presidente João Lourenço revogou, “com efeitos repristinatórios” (vigorar de novo, restaurar a forma ou o aspecto primitivos) os despachos assinados em Julho de 2017 pelo seu antecessor, José Eduardo dos Santos, que aprovaram a “cessão da posição contratual e respectivas responsabilidades” por parte da Soares da Costa nas obras a uma outra empresa de origem portuguesa.
No documento, João Lourenço justificou a decisão de voltar a atribuir a obra à Soares da Costa por considerar que a construtora portuguesa está “em condições de assumir as suas obrigações decorrentes” dos dois contratos anunciados no início de 2016, avaliados num total de 324,3 milhões de dólares (288,8 milhões de euros ao câmbio actual).
O Presidente referiu também que “a cessão da posição contratual” – decisão de 2017 – para a construtora Centro Cerro “não foi concluída e formalizada”.
Estes contratos referem-se às intervenções nos lotes B1 e B7 que seriam realizadas por um consórcio constituído pelas empresas Degremont, Mota-Engil e Soares da Costa.
O primeiro contrato envolvendo as duas empresas de origem portuguesa prevê a realização de estudos, projecto e construção de captação, estação de bombagem de água bruta, conduta elevatória e estação de tratamento para o denominado Sistema 4 (BITA) da capital angola, por 313,8 milhões de dólares (279,6 milhões de euros ao câmbio actual).
O segundo contrato envolve a realização de estudos e construção de uma estação de tratamento de água de processo, no mesmo sistema, neste caso por 10,3 milhões de dólares (9,2 milhões de euros).
À Lusa, fonte oficial da Soares da Costa explicou que as obras ainda não começaram e assinalou que, além desses dois lotes, também o lote B3 será intervencionado pelo consórcio.
De acordo com a mesma fonte, as três intervenções estão avaliadas em 320 milhões de euros, sendo que a Soares da Costa receberá 90 milhões de euros, e que o financiamento está assegurado pelo Banco Mundial, com o Banco Millennium Atlântico a prestar garantias bancárias.
Segundo a mesma fonte, o projecto está na “fase processual para a libertação das verbas”.
A outra face (oculta)
Angola continua a ser o principal mercado externo do sector português da construção, responsável por 28% da facturação no estrangeiro em 2017, o equivalente a 1.415 milhões de euros, segundo dados da AICCOPN.
De acordo com dados da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN), estes 28% representaram um aumento de 22% face a 2016.
Em 2017, Angola foi também o país com valor mais elevado de novos contratos assinados pelas construtoras portuguesas: 1.574 milhões de euros, equivalentes a 29% do total e a uma subida de 12% face ao ano anterior.
No total, o volume de negócios da construção e imobiliário portugueses nos mercados externos ascendeu a 10,8 mil milhões de euros (contra 10,01 milhões de euros em 2016), o que representa 15,9% das exportações portuguesas nesse ano.
E se, na sua actividade internacional, as construtoras portuguesas estão distribuídas por cerca de 40 países, o continente africano é a zona geográfica onde têm maior presença, sendo aliás Portugal o quarto país europeu com maior facturação no mercado africano da construção, cifrado em 2,4 mil milhões de euros, depois da Turquia, França e Itália.
Considerando apenas os novos contratos detidos, Portugal sobe mesmo ao segundo lugar do ranking de países europeus com maior volume de obras em carteira em África.
Em Novembro de 2018 eram várias as construtoras portuguesas que reclamam dívidas ao Estado angolano, entre as quais a Mota-Engil, a Teixeira Duarte e a Soares da Costa, esta última em Processo Especial de Revitalização (PER) e sem capacidade para pagar aos trabalhadores porque, segundo a administração, não conseguia transferir para Portugal 15 milhões de euros que tinha retidos em bancos angolanos.
Segundo adiantou na altura uma fonte oficial da Soares da Costa, a dívida de Angola à empresa “é superior a uma centena de milhões de euros” e teve “um enorme impacto” na saúde financeira da construtora, cuja deterioração acabou por conduzir à actual situação.
Apesar de praticamente não ter obras em Portugal, a Soares da Costa diz que a actividade “tem corrido bem” em Angola, mercado que representou em 2018 “cerca de 60%” da sua facturação, correspondendo Moçambique aos restantes 40%.
Já a Mota-Engil falava em “bons e maus momentos” vividos em Angola, onde está presente há 70 anos e tem centenas de quadros portugueses a trabalhar.
Em Setembro, em declarações à Lusa durante a visita de trabalho de António Costa a Angola, o conselheiro da construtora, Jorge Coelho, afirmou que a Mota-Engil soube “ajustar-se” à crise angolana e hoje “está bem” e com uma “visão muito positiva do país e daquilo que vai ser no futuro”.
Segundo Paulo Morais, “António Mota é o empresário típico deste regime democrático moribundo. Contrata políticos em todos os quadrantes: Jorge Coelho ou Seixas da Costa, do PS, Valente de Oliveira ou Duarte Lima do PSD, Paulo Portas ou Lobo Xavier, do CDS. Usa-os para traficar influências no Estado e obter os melhores negócios de Estado, das Parcerias Público Privadas à recolha de lixos, passando pelas obras públicas ou pelas concessões portuárias. Rodeia-se dos advogados mais poderosos, como Proença de Carvalho, que sucessivamente o vão “safando” nos processos de corrupção, tráfico de influências ou fraude fiscal. Financia os partidos do poder, para garantir imunidade. O facto de António Mota ser um dos mais poderosos de Portugal é um sintoma. O regime está doente, muito doente”.
Na altura, António Costa considerou que a visita de João Lourenço a Portugal era “um momento alto” nas relações luso-angolanas e adiantou que esperava concretizar o processo de certificação das dívidas a empresas portuguesas.
Em Fevereiro, o Sindicato da Construção de Portugal manifestou interesse em ter uma audiência com o embaixador de Angola por causa da situação da Soares da Costa, referindo que “não defende a insolvência” da empresa “que muitos trabalhadores estão a pedir e com razão”.
“O cumprimento das dívidas da Sociedade de Construções Soares da Costa, S.A. para com os trabalhadores que trabalham há muitas décadas na empresa passa por uma carteira de encomendas de obras para ocupação das centenas de trabalhadores que estão suspensos e outros que estão em casa com salários em atraso há muitos meses”, defende o sindicato.
O sindicato acredita que “esta situação será ultrapassada com o retomar das obras em Angola, que sempre foi um país de grande importância para que a Sociedade de Construções Soares da Costa, S.A. fosse uma grande construtora”.
Por isso, a estrutura sindical acredita que “este problema não se resolve reivindicando junto de qualquer Tribunal” e sugere, “como sindicato mais representativo e que esteve sempre, desde a primeira hora, ao lado dos trabalhadores pelo pagamento dos salários, em conjunto com o secretário-geral da CGTP-IN, o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros e a administração da empresa o pedido de uma audiência conjunta ao senhor embaixador de Angola”.
A construtora, que está no meio de um Processo Especial de Revitalização (PER), deixou de pagar aos funcionários, que têm optado por soluções como suspender os contratos de trabalho, para ter acesso ao subsídio de desemprego.
José Martins, do Sindicato da Construção e Cerâmica de Viana do Castelo e Norte disse em Dezembro que este “já é o segundo PER que interpõe e os trabalhadores têm cerca de 10 milhões de euros em salários por receber”, valor que, incluindo os créditos condicionados, “atinge os 21 milhões de euros”.
Folha 8 com Lusa