Certamente à revelia das teses do presidente da ERCA (Adelino de Almeida) e até mesmo do ministro da Comunicação Social (João Melo), o tribunal de Luanda entendeu que os dois jornalistas angolanos acusados de injúrias pelo ex-Procurador-geral da República, hoje absolvidos, observaram todas as regras jornalísticas na elaboração da notícia sobre corrupção, contestada pelo general João Maria de Sousa.
Rafael Marques e Mariano Brás estavam acusados pelo Ministério Público, após queixa-crime movida pelo ex-Procurador, da prática de crimes de injúria e ultraje a órgão de soberania, através de uma notícia publicada em 2016, visando João Maria de Sousa, mas foram absolvidos de todas as acusações.
“Os réus Rafael Marques e Mariano Brás exerceram o dever de informar com objectividade, pelo que as suas condutas não ultrapassaram a fronteira penalmente censurável, tendo-se mentido dentro dos limites admissíveis do direito de informação, não preenchendo assim o tipo de ilícito de injúrias, nem aliás qualquer outro”, disse a juíza da causa, Josina Ferreira Falcão, na leitura da sentença.
A defesa do ex-Procurador-geral da República (enquanto não recene “ordens superiores”) não prestou declarações aos jornalistas, mas admitiu, durante a sessão, recorrer desta decisão, enquanto Salvador Freire, um dos advogados de defesa, afirmou que absolvição já era esperada, por manifesta falta de provas, valorizando o “bom começo” que a Justiça angolana vive.
“Pensamos que os momentos são diferentes e actualmente, estamos em crer também, que esta acção dos jornalistas, de poderem fazer denúncias de casos de corrupção, vai continuar”, afirmou o advogado.
“Porém, verdade é, e não devemos discordar, que aqueles actos praticados pelos funcionários da administração [municipal, no registo dos terrenos] demonstram facilitação, pois como justificar a ausência de documentos importantes, como justificar que nem sequer procederam à cobrança do valor que a própria lei é clara em estabelecer (…) mas procederem ao trabalho que antes deveria ser pago e não foi”, alertou a juíza.
“Não há como evitar que o nome e os interesses do ofendido não estejam vinculados ou envolvidos em situações de irregularidades aberrantes praticados pela administração. Que no bom rigor assentam muito bem tais práticas no conceito espelhado nestes autos, de corrupção”, enfatizou Josina Ferreira Falcão, na leitura da sentença.
Desta forma, o tribunal entendeu que “não se apresenta como gratuita, desproporcionada ou sem correspondência com o interesse geral de informação” o conteúdo da notícia, acrescentando que Rafael Marques “observou as regras da actividade de jornalística.
“Observando o dever prévio de informação e teve fundamento sério, quer para noticiar o que noticiou, quer para perspectiva uma queixa-crime contra os funcionários da administração, por parte do denunciante, quer ainda para figurar a verificação de um crime de abuso de função por parte dos agentes da administração ou do governo da província sul”, disse.
Sobre as queixas de injúrias por parte do ex-Procurador, o tribunal absolveu ambos, considerando: “Não podemos afirmar que são lesivas à honra e consideração do ofendido [general João Maria de Sousa], pois a mera susceptibilidade pessoal não releva para efeitos penais”.
Sobre a acusação do crime de ultraje a órgão de soberania, devido a uma passagem da notícia de Rafael Marques, referindo a alegada protecção de José Eduardo dos Santos, então Presidente da República, ao, à data, Procurador João Maria de Sousa e ofendido neste processo, o tribunal considerou que a mesma resultou apenas da “crítica”, enquanto jornalista.
Acrescentou que ficou a dever-se “à falta de resposta” do Presidente da República às queixas que Rafael Marques formalizou junto do chefe de Estado, sobre a actuação de João Maria de Sousa. Pelo que, “ponderados os contextos”, disse a juíza da causa, “não podemos afirmar que são lesivas à honra do Presidente da República”.
Por estes motivos, anunciou, os juízes decidiram, em conferência, absolver ambos os jornalistas e “mandá-los em paz”.
O antes será mesmo passado?
Recordemos um trabalho da Voz da América, publicado em 11 de Janeiro de 2015. De acordo com analistas as interferências político-partidárias no trabalho da imprensa estavam a criar impasses no processo de consolidação da democracia em Angola.
O Jornalista Manuel Vieira considerou nessa altura que a Imprensa (lato sensu) deveria (se deixassem) ser a guardiã da democracia, na medida em que pode vigiar as políticas desenvolvidas pelas autoridades e pelos partidos políticos bem como pela sociedade civil.
O actual distanciamento de alguns assuntos da actualidade política nacional que envolvem figuras ligadas ao poder político angolano revela-se como um dos maiores obstáculos da participação da imprensa no processo de democratização de Angola.
O antigo Director de Informação da Rádio ECCLESIA-Emissora Católica de Angola apontou como exemplo os alegados casos “nítidos” de violações da Constituição da República, o suposto tráfico de influência no caso BESA.
“Não só o próprio governo, mas há outros órgãos intervenientes neste processo de democratização que são os próprios partidos políticos que também devem ser vigiados por este “watch dog”, ou este cão de guarda da democracia, que é o jornalista. Há partidos que têm estatutos que nitidamente têm limitações de poderes ou não há, mas é bom questionar a estes políticos. Porque a democracia é dinamizada não só na hora de ir ao voto, na hora da campanha eleitoral, deve ser dinamizada sempre ao longo de todos os períodos que intermedeiam as eleições”, esclareceu.
A Comunicação Social não tem apenas o papel de informar as pessoas, mas também de ajudar os poderes públicos nas decisões, analisar os fenómenos sociais e políticos desde que seja exercida com liberdade e independência.
O Jornalista Graça Campos entendia que sem uma imprensa livre e independente não há Estado que se possa “gabar” de democrático. Neste sentido, apontava um elevado défice da democracia em Angola devido ao “excessivo controlo” do Governo sobre a Imprensa.
O antigo Director e fundador do Semanário Angolense apontava igualmente o caso BESA, em que o Presidente da República engajou o Executivo com uma garantia soberana sem uma prévia consulta da Assembleia Nacional. Este assunto, segundo o jornalista, ocorreu “perante a complacência e o silêncio total da Comunicação Social nacional”. Comunicação Social do regime, entenda-se.
“Sem uma comunicação social não há democracia. Qualquer país só avança quando tem uma comunicação social livre e independente”, concluiu.
Para alguns, as interferências políticas estavam generalizadas. Para o Jornalista Lucas Pedro o partido no poder, o MPLA, toma o controlo de tudo desde a autorização para abertura de um novo órgão de informação, o conteúdo crítico das matérias para além dos custos altos praticados pelas gráficas.
O editor do Portal Club-k pensa que o estado actual (2015, recorde-se) da imprensa reflecte a situação do país. “Para o MPLA não há pão para malucos. Você quer fazer um jornal para criticar as suas políticas, as suas debilidades, denunciar os seus erros, corrigir para ajudar na democratização da própria imprensa em si. Eles te apanham neste ponto. Também ninguém pode tirar um jornal à revelia”, disse.
Lucas Pedro apontava por outro lado o caso que envolveu o General e membro do Comité Central do MPLA, Bento dos Santos Kangamba, então acusado pela justiça brasileira de tráfico de mulheres, um caso sobre o qual a imprensa pública angolana não fez qualquer referência. Para o Jornalista, questões como estas ligadas ao “silenciamento da imprensa” na abordagem de determinados assuntos constituem impasses à democratização do país.
Graça Campos, por sua vez, atira-se ao MPLA considerando-o um partido “sem vocação” para tolerar a pluralidade informativa, uma vez que, existem algumas iniciativas, tendentes à criação de mais órgãos privados de informação, que se encontram dependentes da vontade política.
Para o jornalista, o surgimento de um jornal privado diário, livre e independente daria uma nova opção de leitura aos cidadãos, mas mostra-se céptico se o mesmo seria ou não um avanço à democracia devido à presente conjuntura política.
“Sobre o actual contexto político não creio que haja jornal que venha a ser muito útil”, explicou.
Há necessidade de surgimento de um novo diário dado que a imprensa é “muito monocórdica”, mas o seu contributo para a democracia efectiva só teria efeito positivo caso surgisse com uma nova matriz na abordagem dos factos. Por isso, Manuel Vieira insiste que quadros qualificados, uma maior investigação e a qualidade do trabalho podem fazer a diferença e contribuir para uma democracia efectiva.
A influência da imprensa junto das massas há muito que foi percebida pelo poder político, dai que o jornalista Manuel Vieira indicasse que o poder político e económico em Angola é bastante hegemónico. Sem apontar casos em concretos falava em órgãos de informação que são usados para fazer propagandas dos interesses dos seus proprietários.
O ex-director de informação e chefe de redacção da Ecclesia denunciava que grande parte dos proprietários de órgãos privados de comunicação social são detentores de cargos públicos ou exercem tráfico de influência e terão influenciado quem decide na aprovação da Constituição da República, que tem sido alvo de violações por quem a aprovou por maioria.
Para Graça Campos, enquanto o MPLA se mantiver no poder com estas ideologias não haverá mudanças no que toca ao estado da comunicação social e em consequência desta hegemonia, o que vai acontecer, segundo o jornalista, é a criação de mártires da comunicação social angolana.
Graça Campos pensa que o partido governante em Angola desde 1975 não abre mão da sua hegemonia, pelo que, não está disposto a mudar. Para ele, o MPLA tem uma aversão à transmissão dos debates da Assembleia Nacional em directo na Televisão Pública de Angola, embora seja um direito de todos os cidadãos.
“Ao não permitir isto (a transmissão dos debates do parlamento na TPA) quer dizer que o MPLA não quer que a sociedade seja informada, nega-nos, a nós angolanos, um direito que está protegido pela própria Constituição que é o direito de acesso à informação”, concluiu.
A compra de alguns órgãos de informação e o seu consequente monopólio era então referido como outro obstáculo à democracia. A aquisição de grupos de imprensa não se resume apenas a Angola, o investimento estende-se à Europa, em Portugal de concreto, o que faz com que a imprensa independente esteja comprometida com o poder político angolano.
Para além da SIC-Notícias e do Jornal Expresso, o Jornalista Manuel Vieira não vê outro meio de informação luso capaz de tecer críticas à governação angolana.
Em 2014 o Presidente da República José Eduardo dos Santos concedeu duas grandes entrevistas exclusivas a dois órgãos de informação estrangeiros, a TV Bandeira, do Brasil e a SIC-Notícias, de Portugal, após 22 anos sem conceder entrevista a algum órgão de informação em Angola.
Para ex-director e fundador do Semanário Angolense este desprezo pela imprensa angolana por parte do Presidente era recorrente. Graça Campos lembrava que a quando da sua última viagem aos EUA “o Presidente da República referiu-se aos jornais do seu país como pasquins”.
Por outro lado, o jornalista critica o excesso de censura e de elogios ao executivo em alguns órgãos de informação, que para ele, são “nocivos à democracia”.
Sobre o papel da imprensa na democratização de Angola o país tem muitos desafios. Contudo, Manuel Vieira entende que um deles tem a ver com o desconhecimento de muitos políticos sobre as oportunidades que o sector oferecia e oferece.
“Aparece um com uma chapa partidária oposicionista, o MPLA falha e é o próprio MPLA que vai dizer que esta mídia é mais colocada com a oposição, o que não é verdade”. O critério de escolha é absolutamente igual, defendeu.
Para o Jornalista, é a igualdade que faz a diversidade e esta por sua vez dá a possibilidade da opinião pública ter uma visão sobre determinados assuntos.
Os meios de comunicação social exercem uma forte influência no processo de democratização de qualquer Estado já que também desempenha o papel de fiscalizador das acções desenvolvidas seja pelo governo como pela sociedade civil.