O actual Governo português (tal como os anteriores) continua a ser forte com os fracos e fraco, muito fraquinho, com os fortes. Hoje deu nova prova disso ao manifestar “séria preocupação” com a “escalada de violência” na Birmânia (Myanmar), num comunicado em que nunca refere o povo Rohingya, sobre o qual – segundo a ONU – está a ser exercida a violência.
“O Governo português segue com séria preocupação a recente escalada de violência registada no Estado de Arracão, no Myanmar, assim como a nova vaga de refugiados por ela ocasionada, bem como a escassa informação sobre a situação no terreno que resulta da saída das organizações humanitárias que ali operam, por razões de segurança”, salienta o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).
Lisboa apela “ao fim imediato da violência”, esperando “que as autoridades birmanesas possam rapidamente garantir as condições para o restabelecimento do acesso humanitário, assegurando igualmente a protecção da população civil inocente”.
O Parlamento Europeu instou também hoje a Birmânia a “parar imediatamente” a violência contra os Rohingya, numa altura em que 400 mil pessoas daquela minoria já fugiram para o vizinho Bangladesh.
Na quarta-feira, o Conselho de Segurança da ONU pediu “medidas imediatas” para acabar com a violência sobre os Rohingyas na Birmânia. Sobre o mesmo assunto, o secretário-geral da ONU, António Guterres, considerou que os “crimes contra a humanidade” que sofrem os Rohingyas na Birmânia podem ser considerados limpeza étnica.
O comunicado divulgado hoje pelo MNE português não faz qualquer referência ao povo Rohingya, optando por considerar que “Portugal apoia a transição democrática em curso na Birmânia, assim como o processo de paz e reconciliação conduzido pelo Governo birmanês”.
Lisboa também “apela à rápida implementação das recomendações emitidas pela Comissão Consultiva para o Estado de Arracão presidida por Kofi Annan, enquanto ponto de partida para a unidade e estabilidade do país no longo termo”.
Em Agosto, o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, apresentou ao Governo birmanês o relatório com recomendações para acabar com a violência em Rakhine e promover o desenvolvimento da região.
No relatório da comissão de Kofi Annan — constituída a pedido do Governo birmanês — também não se refere ao povo Rohingya, referindo que “a pedido do Conselheiro de Estado [Aung San Suu Kyi] no texto será utilizado a expressão comunidade muçulmana em Rhakine (Arracão)”. A comissão Annan também não usa o termo “Bengali”, a forma como o Governo birmanês se refere àquele povo, porque os considera refugiados do Bangladesh.
Segundo a ONU, cerca de 400.000 Rohingyas refugiaram-se no Bangladesh desde finais de Agosto para fugir à repressão do exército birmanês, que lançou uma operação militar no oeste do país após uma série de ataques da rebelião Rohingya.
As autoridades da Birmânia, de maioria budista, não reconhecem a cidadania aos Rohingya, cerca de um milhão de pessoas, impondo-lhes múltiplas restrições, incluindo a privação da liberdade de movimentos.
400 mil refugiados versus 20 milhões de pobres
Os muçulmanos Rohingya são das minorias mais perseguidas no mundo. Ao fim de séculos estabelecidos na ex-Birmânia, correm o risco de ser exterminados. Merecem por isso a atenção e a solidariedade de todos.
Não deixa, contudo, de ser hipócrita a “preocupação” de Portugal quando, em português, uma sua ex-colónia exerce uma perseguição feroz ao seu povo, que não se refugia nos países vizinhos mas que é constituída por 20 milhões de pobres.
Falamos, obviamente, de Angola. Por não se tratar da eliminação metódica de um grupo étnico ou religioso, mesmo sendo o país com o maior índice mundial de mortalidade infantil, não se pode, tecnicamente, falar de genocídio. Tal como em Myanmar, Angola também finge realizar eleições livres. E se Angola tem partidos, Myanmar também tem (Partido da União Solidariedade e Desenvolvimento, Liga Nacional pela Democracia e Partido Democrático das Nacionalidades Shan).
Nada disto preocupa o Governo português. Preocupação sim com Myanmar que, como se sabe é um país que diz muito a Portugal. É independente do Reino Unido desde 4 de Janeiro de 1948 e faz fronteira com países relevantes para Lisboa e até mesmo para a CPLP: Bangladesh, Índia, República Popular da China, Laos e Tailândia.
Já Angola… desde que o MPLA some aos 42 anos de poder que já leva aí mais uns 58, tudo ficará na santa paz. Angola é (e continuará ser) uma cleptocracia (regime político corrupto) e os seus dirigentes são uma elite indiferente ao resto da população. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.
Mesmo pelos padrões dos Estados petrolíferos, Angola é quase risivelmente injusta. Os oligarcas deixam gorjetas de 500 euros nos restaurantes da moda em Lisboa, enquanto cerca de uma em cada seis crianças angolanas morrem antes de terem cinco anos. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o primeiro-ministro português, António Costa.
A pequena, mas poderosa, cleptocracia do MPLA é aceite como uma parte integrante do sistema ocidental, sendo os expatriados que fazem a economia angolana mexer, desde as consultoras que ajudam a definir a política económica até aos bancos que financiam os negócios do clã Eduardo dos Santos. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza Passos Coelho, líder do PSD, o maior partido português (embora na oposição).
Os oligarcas angolanos habitam a economia do luxo global das escolas públicas britânicas, dos gestores de activos suíços, das lojas Hermès, etc.. A clique dirigente consiste largamente nas poucas famílias de raça mista da capital, que considera que os cerca de 21 milhões de angolanos negros no mato ou musseques são imperfeitamente civilizados, e com pouco desejo para os educar. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.
Por trás de cada magnata angolano há uma equipa de gestão maioritariamente portuguesa que não se preocupa com as consequências da sua gestão. Por isso os estrangeiros bombam petróleo, fazem luxuosos vestidos e constroem aeroportos sem sentido no meio do nada. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza a líder do CDS/PP, Assunção Cristas.
Os membros do clã Eduardo dos Santos fazem luxuosas viagens à Europa e passeios entre capitais europeias recorrendo a aviões a jacto privados. O dinheiro dos governantes e o dinheiro do Estado é a mesma coisa. Todo ele é roubado ao Povo. Mas como o dinheiro não fala, empilham-no nos bancos da Europa (e não só) e gastam-no como lhes dá na real gana: compram quadros, cirurgias plásticas, casas de praia e empresas. Nada de preocupante se comparado com Myanmar, dirá com certeza o Carlos Costa, Governador do Banco de Portugal.
O perfil do cliente de elite angolano em Portugal, por exemplo, que representa mais de 40% do mercado de luxo português, revela que se trata sobretudo de homens, empresários do ramo da construção, ex-generais ou com ligações ao governo. Vestem Hugo Boss ou Ermenegildo Zegna. Compram relógios de ouro Patek Phillipe e Rolex. Nada de preocupante, pelo contrário, se comparado com Myanmar, dirá com certeza o presidente da Confederação Empresarial de Portugal, António Saraiva.
Quanto ao Povo angolano, a ementa desta subespécie é fuba podre, peixe podre, panos ruins, 50 angolares e porrada se refilarem. Nada de preocupante, pelo contrário, se comparado com Myanmar, dirão (quase) todos os políticos portugueses, com excepção do Bloco de Esquerda.
Foto: O governo de MPLA massacrou cidadãos inocentes que seguiam Julino Kalupeteka, líder de uma seita religiosa.
Portugal não tem que se intrometer nos assuntos de Angola. Já o fez muitas vezes indevida e desrespeitosamente. Angola é uma república soberana, com o seu próprio quadro legal e independente. Portanto, só aos angolanos incumbe resolver os seus problemas. Daí que entenda que o artigo em causa não tem qualquer razão que o fundamente. Portugal é Portugal e Angola é Angola. Só desejo que entre estes dois estados se cimente a amizade, a paz e a cooperação, no proveito mútuo de ambos os povos.