O novo edifício-sede da Assembleia Nacional de Angola, construído pela empresa portuguesa Teixeira Duarte, vai ser inaugurado a 10 de Novembro, no âmbito das comemorações dos 40 anos da independência. Só fica a faltar a democracia.
Por Orlando Castro
A nova sede, em Luanda, representou um investimento público superior a 185 milhões de dólares e está integrada num complexo constituído por três edifícios e dois parques de estacionamento para 503 viaturas. Só fica a faltar a democracia.
De acordo com informação do Parlamento angolano, o processo de mudança de instalações arrancará a 16 de Novembro e só estará concluído a 10 de Dezembro, conforme instruções transmitidas aos funcionários pelo secretário-geral daquele órgão de soberania, Pedro Agostinho de Neri.
O denominado Centro Político e Administrativo de Luanda começou a ser construído em Maio de 2010 e há pelo menos um ano que está concluído.
A cargo da construtora Teixeira Duarte, a obra foi visitada pelo primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho, a 17 de Novembro de 2011, durante uma deslocação a Angola.
O complexo envolve uma área de 35.867 metros quadrados de escritórios, 11.341 metros quadrados de área global para a assembleia (plenário) e 3.191 metros quadrados para serviços. Só fica a faltar a democracia.
O edifício principal, a inaugurar na véspera do dia da independência nacional (11 de Novembro de 1975), conta com seis pisos, quatro superiores e dois subterrâneos.
O MPLA, partido que está no poder desde a independência, é maioritário no Parlamento, tendo conquistado 175 dos 220 deputados nas eleições de 2012.
A oposição é constituída pela UNITA, com 32 deputados, seguida da Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE), com oito eleitos, do Partido da Renovação Social (PRS), com três, e da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), com dois representantes na Assembleia Nacional.
Nova casa, velhos hábitos
O Presidente da República, nunca nominalmente eleito e no poder desde 1979, José Eduardo dos Santos, assume o seu papel de autocrata e dá lições (aos angolanos) daquilo que desconhece: ética, democracia, verdade, moral e liberdade.
Nas reunião do MPLA, Eduardo dos Santos puxa dos galões para, perante uma plateia geneticamente subserviente e amorfa, dizer que os angolanos não devem ser expostos a situações dramáticas idênticas à do 27 de Maio de 1977, onde foi parte activa no assassinato de milhares e milhares de militantes do MPLA, entre os quais Nito Alves, supostamente por tentar um golpe de Estado.
“Não se deve permitir que o povo angolano seja submetido a mais uma situação dramática, como a que viveu em 27 de Maio de 1977, por causa de um golpe de Estado”, afirma José Eduardo dos Santos.
Falando, por exemplo, na abertura da terceira sessão extraordinária do Comité Central do MPLA, o também presidente do partido (quase único), aconselhou os cidadãos interessados a conquistar o poder para formarem um partido político e concorrem às eleições.
“Quem quer alcançar a Presidência da República e formar o governo que crie, se não tiver, um partido político nos termos da Constituição e da Lei, e se candidate às eleições”, sugeriu o chefe de Estado (nunca nominalmente eleito), acrescentando que “quem escolhe a via da força para tomar o poder ou usa meios anti-constitucionais, não é democrata. É tirano ou ditador. Acusaram o MPLA e os seus militantes de intolerantes, mas a mentira tem pernas curtas, hoje todos sabem onde estão os intolerantes e nem é preciso dizer os seus nomes”, concluiu José Eduardo dos Santos.
Balanço? Sim, com o 27 de Maio incluído
Como Eduardo dos Santos não é, embora julgue ser, dono da verdade, falemos então desse 27 de Maio de 1977.
Os acontecimentos de 27 de Maio de 1977, que provocaram – repita-se – muitos milhares de mortos, foram o resultado de um “contra-golpe” que foi pacientemente planeado, tendo como responsável máximo Agostinho Neto, que temia perder o poder. Tal como agora acontece com José Eduardo dos Santos que até vislumbra na sua sombra um golpe de Estado.
Nessa altura, Nito Alves, então ministro da Administração Interna sob a presidência de Agostinho Neto, liderou uma manifestação para protestar contra o rumo que o MPLA estava a tomar. Tal como hoje fazem muitos angolanos descontentes com o rumo que o MPLA está a dar ao país.
E isso era inaceitável pelos ortodoxos que, por interesses pessoais, blindavam o presidente. Exactamente o que hoje se passa. Com o fantasma do Congresso, previsto para o final desse ano, urgia calar os nitistas pois, se o não fizessem, poderiam ver os congressistas renderem-se a Nito Alves. Tudo leva a crer que Neto temia mesmo perder o poder e, por isso, engendrou a tramóia.
Perante a blindagem que ainda hoje o regime faz ao que se passou, situação que impede consulta de documentos e que atemoriza muitos dos intervenientes cujo testemunho é imprescindível para um conhecimento que chegue perto da verdade, a história do massacre vai continuar com muitos capítulos especulativos mas, igualmente, como instrumento na mão do poder, como agora demonstrou Eduardo dos Santos.
Na versão oficial, através de uma declaração do Bureau Político do MPLA, divulgada a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma “tentativa de golpe de Estado” por parte de “fraccionistas” do movimento, cujos principais “cérebros” foram Nito Alves e José Van-Dunem, versão que seria alterada mais tarde para “acontecimentos do 27 de Maio”.
Nito Alves e José Van-Dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito, que foi liderada por José Eduardo dos Santos, para averiguar se havia ou não fraccionismo no seio do partido. As conclusões nunca chegaram a ser divulgadas publicamente mas, segundo alguns sobreviventes, revelariam que não existia fraccionismo no seio do MPLA.
Tal como hoje os jovens activistas não lideram nenhuma tentativa de golpe de Estado. Eduardo dos Santos sabe disso, mas é-lhe conveniente não saber. Conta, é claro, com a ajuda dos seus sipaios/deputados, bem como com a cobertura hipócrita da ONU, UE, UA e CPLP.
Consta que o próprio José Eduardo dos Santos, tal como o então primeiro-ministro, Lopo do Nascimento, seriam alvos a abater pela cúpula do MPLA. Ao actual Presidente terá valido a intervenção do comissário provincial do Lubango, Belarmino Van-Dúnem.
Os apoiantes de Nito Alves consideravam que o golpe já estava a ser feito por uma ala maoísta do partido, liderada pelo secretário administrativo do movimento, Lúcio Lara, que terá instrumentalizado os principais centros de decisão do partido e os média, em especial o Jornal de Angola, pelo que consideraram que a manifestação convocada por Nito Alves foi “um contra-golpe”.
Em relação ao número de mortos, os números vaiam segundo as fontes. Terão sido mais de 15 mil e menos de 100 mil. É claro que, como continua a ser prática, nessa altura os ditos fraccionistas sofreram horrores terríveis, desde prisões arbitrárias, a tortura, condenações sem julgamento ou execuções sumárias.
O apontado líder do alegado golpe de Estado terá sido fuzilado, mas o seu corpo nunca foi encontrado, tal como o dos seus mais directos apoiantes como José Van-Dúnem e Sita Valles, que foi dirigente da UEC, ligada ao Partido Comunista Português, do qual se desvinculou mais tarde, e foi expulsa do MPLA.
Em Abril de 1992, o governo angolano reconheceu que foram “julgados, condenados e executados” os principais “mentores e autores da intentona fraccionista”, que classificou como “uma acção militar de grande envergadura” que tinha por objectivo “a tomada do poder pela força e a destituição do presidente Agostinho Neto”.
Exactamente os mesmos argumentos que hoje o MPLA utiliza.
Moralmente, pelo menos, o principal responsável foi Agostinho Neto que, assessorado por alguns dos mais radicais membros do MPLA, não se preocupou em apurar a verdade, dispensou os tribunais, admitiu que fizessem justiça por suas próprias mãos.
Relatos dispersos dizem que o Presidente Agostinho Neto foi, antes de tudo, chefe duma facção e não o árbitro, o unificador, estando completamente dominado pela arrogância, inflexibilidade e cegueira.
Certo é, contudo, que Angola perdeu muitos dos seus melhores quadros: combatentes experimentados em mil batalhas, mulheres combativas, jovens militantes, intelectuais e estudantes universitários. Dessa forma o MPLA decapitou os que sonhavam com um futuro melhor, mais igualitário e mais fraterno para os angolanos.
O mais recente livro da jornalista britânica Lara Pawson (“Em Nome do Povo – O massacre que Angola silenciou”) sobre este assunto, “levanta mais perguntas do que respostas” sobre as verdadeiras intenções, envolvidos e número de mortos.
O livro, que demorou sete anos a escrever, representa uma investigação de sete anos da antiga correspondente da BBC em Angola (1998-2000), demora que a autora atribui à própria “lentidão” e à incerteza criada pelos testemunhos que recolheu entre Londres, Lisboa e Luanda.
“Todas as pessoas com quem eu falava pareciam ter visões muito facciosas e eu achava difícil confiar em alguém. Esse é um dos interesses do livro, porque levanta a questão do rigor da informação sobre Angola e qual é a informação em que podemos confiar”, explica Lara Pawson.
O 27 de Maio de 1977 é descrito como uma tentativa de golpe de Estado por “fraccionistas” do próprio MPLA, então já no poder do país recém-independente, contra o Presidente Agostinho Neto e “bureau político” do partido.
Segundo vários relatos, milhares terão morrido na reacção das FAPLA, nomeadamente os dirigentes Nito Alves, então ministro da Administração Interna, e José Van-Dúnem, mas foi difícil para Lara Pawson alcançar uma “versão definitiva” sobre os interesses e objectivos daquele movimento, que alegou tratar-se de um `contragolpe`.
“Uma das discussões foi saber se foi manifestação ou golpe de Estado e o que aprendi após falar com angolanos, em particular o povo, é que muito deles acreditavam estar a participar numa manifestação pacífica. Mas, por outro lado, o facto de a 9ª Brigada se ter envolvido, de a rádio ter sido ocupada durante várias horas por homens com armas e as prisões invadidas parece difícil negar que não houve tentativa de golpe”, salienta a autora.
Outra questão controversa que tentou esclarecer foi o número de mortos resultantes da resposta do regime, e que variam, segundo as versões, entre 20 mil a 30 mil mortos, número dado à autora pelo irmão de José Van-Dúnem, João, a 100 mil mortos reivindicados pela Fundação 27 de Maio.
“O mais próximo que consegui de uma versão oficial foi de Fernando Costa Andrade, antigo director do Jornal de Angola. Ele disse que o ministro de Defesa da altura tinha estimado pelo menos 2.000 mortos. Se um ministro diz isto, é porque no mínimo foram 2.000 mortos, mas podem ter sido mais”, referiu Lara Pawson.
O envolvimento de Moscovo, a existência de fracturas entre os próprios fraccionistas são outras questões que continuam em aberto, bem como o papel do actual Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, que sucedeu a Agostinho Neto no poder.
A “complexidade e contradições” que rodeiam o assunto contribuíram para a “obsessão” de Lara Pawson em querer escrever este livro num tom romanceado, mas descobriu que o assunto continua a ser um “tabu” e que muitos dos envolvidos têm medo de falar, pelo que a identidade teve de ser preservada no livro.
O próprio receio do MPLA em “abrir a ferida” abriu espaço para que Nito Alves seja actualmente idolatrado por jovens angolanos opositores ao regime, disse a jornalista britânica, concluindo: “Esconder a verdade está a criar cada vez mais o peso do próprio mito”.
MPLA desde 1975. Dos Santos desde 1979
O MPLA está no poder desde 1975 e por lá vai ficar. Com o poder absoluto que tem nas mãos (é também o presidente do MPLA e chefe do Governo), José Eduardo dos Santos é um dos ditadores ou, na melhor das hipóteses, um presidente autocrático, há mais tempo em exercício.
África, em nada abona do ponto de vista democrático e civilizacional a seu favor. Sabe todo o mundo, mas sobretudo e mais uma vez África, que se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. É o caso em Angola.
Só em ditadura, mesmo que legitimada pelos votos comprados a um povo que quase sempre pensa com a barriga (vazia) e não com a cabeça, é possível estar tantos anos no poder. Em qualquer estado de direito democrático tal não seria possível.
Aliás, e Angola não foge infelizmente à regra, África é um alfobre constante e habitual de conflitos armados porque a falta de democraticidade obriga a que a alternância política seja conquistada pela linguagem das armas. Há obviamente outras razões, mas quando se julga que eleições são só por si sinónimo de democracia está-se a caminhar para a ditadura.
Com Eduardo dos Santos passa-se exactamente isso. A guerra legitimou tudo o que se consegue imaginar de mau. Permitiu ao actual presidente perpetuar-se no poder, tal como como permitiu que a UNITA dissesse que essa era (e pelo que se vai vendo até parece que teve razão) a única via para mudar de dono do país.
É claro que, é sempre assim nas ditaduras, o povo foi sempre e continua a ser (as eleições não alteraram a génese da ditadura, apenas a maquilharam) carne para canhão.
Por outro lado, a típica hipocrisia das grandes potências ocidentais, nomeadamente EUA e União Europeia, ajudou a dotar José Eduardo dos Santos com o rótulo de grande estadista. Rótulo que não corresponde ao produto. Essa opção estratégica de norte-americanos e europeus tem, reconheça-se, razão de ser sobretudo no âmbito económico.
É muito mais fácil negociar com um regime ditatorial do que com um que seja democrático. É muito mais fácil negociar com alguém que, à partida, se sabe que irá estar na cadeira do poder durante toda a vida, do que com alguém que pode ao fim de um par de anos ser substituído pela livre escolha popular.
É, como acontece com José Eduardo dos Santos, muito mais fácil negociar com o líder de um clã que representa quase 100 por cento do Produto Interno Bruto, do que com alguém que não seja dono do país mas apenas, como acontece nas democracias, representante temporário do povo soberano.
Bem visível na caso angolano é o facto de, como em qualquer outra ditadura, quanto mais se tem mais se quer ter, seja no país ou noutro qualquer sítio. Por muito pequeno que seja o ditador, o que não é o caso de José Eduardo dos Santo, a História mostra-nos que tem sempre apreciável fortuna espalhada pelo mundo, seja em bens imobiliários (como era tradição) ou mais modernamente nos paraísos fiscais.
Reconheça-se, entretanto, a estatura política de José Eduardo dos Santos, visível sobretudo a partir do momento em que deixou de poder contar com Jonas Savimbi como o bode expiatório para tudo o que de mal se passava em Angola.
Desde 2002, o presidente vitalício de Angola tem conseguido fingir que democratiza o país e, mais do que isso, conseguiu (embora não por mérito seu mas, isso sim, por demérito da UNITA) domesticar completamente todos aqueles que lhe poderiam fazer frente.
Não creio que, até pelo facto de o país ter estado em guerra dezenas de anos, José Eduardo dos Santos tenha as mãos limpas de sangue. Aliás, nenhuma ditador com 36 anos de permanência seguida no poder, tem as mãos limpas.
Mas essa também não é uma preocupação. Quando se tem milhões, pouco importa como estão as mãos. Aliás, esses milhões servem também para branquear, para limpar, para transplantar, para comprar (quase) tudo e (quase) todos.
Tudo isto é possível com alguma facilidade quando se é dono de um país rico e, dessa forma, se consegue tudo o que se quer. E quando aparecem pessoas que não estão à venda mas incomodam e ameaçam o trono, há sempre forma de as fazer chocar com uma bala.
Acresce, e nisso os angolanos não são diferentes dos portugueses ou de qualquer outro povo, que continua válida a tese de que “se não consegues vencê-los junta-te a eles”. Não admira por isso que José Eduardo dos Santos tenha cada vez mais fiéis seguidores, sejam militares, políticos, empresários e até supostos jornalistas.
É claro que, enquanto isso, o Povo continua a ser gerado com fome, a nascer com fome, e a morrer pouco depois… com fome. E a fome, a miséria, as doenças, as assimetrias sociais são chagas imputáveis ao Poder. E quem está no poder há 36 anos é sempre o mesmo, José Eduardo dos Santos.
Até um dia, como é óbvio.