“Queremos justiça” é o grito que ecoa entre familiares e vizinhos da mulher morta por disparos da polícia num bairro pobre de Luanda, durante os tumultos dos últimos dias, deixando viúvo e órfãos desolados clamando por ajuda. ONU reclama investigações exaustivas em Angola.
A morte de Silvi Mubiala, 33 anos, que saiu de casa na terça-feira para socorrer o filho, perdido no meio dos distúrbios na Caop B – bairro de Viana, na periferia da capital angolana -, causou e ainda causa choque entre a população local que acusa agentes da Polícia de Intervenção Rápida (PIR) de serem os autores dos disparos.
A dor e comoção, que se iniciou com a partilha do vídeo, nas redes sociais, onde o filho se sentou no chão em pranto, ao lado do cadáver da mãe, dominam os sentimentos de família e vizinhos, que “indignados” com a postura da PIR, gritam por justiça e protecção dos seis órfãos.
Sentado no sofá com a filha de sete meses ao colo e ao lado dos restantes cinco filhos, João Panzo, viúvo de 42 anos, disse à Lusa que, até ao momento, desconhece as circunstâncias em que a esposa foi baleada, porque na ocasião se encontrava ausente de Luanda.
Com voz embargada, lamentou que tenha sido um dos filhos a presenciar a morte da mãe e disse que a sua família, residente em casa arrendada, “está desamparada”, porque a mulher era quem garantia o sustento da casa, saúde e estudo dos filhos.
Bastante abatido com a perda da irmã, Mubiala Vítor contou que esta foi baleada na terça-feira, segundo dia da greve dos taxistas em Luanda, marcada por tumultos, vandalismo e pilhagens, aludindo aos vídeos da morte da irmã, partilhados nas redes sociais, que agravaram ainda mais a sua dor.
“Fui informado pelas crianças do que se passou e depois quando vi o vídeo nas redes sociais não consegui, estou muito abatido pela perda da minha irmã”, lamentou.
Silvi Mubiala era uma mulher batalhadora e que “fazia tudo pela família”, recordou o irmão, criticando a postura “irresponsável” dos efectivos da polícia que terão atingido a irmã, na chamada Rua Guarda Passagem.
No local, a Lusa ouviu relatos de que os disparos da polícia foram à queima-roupa e que terão atingido mortalmente dois outros cidadãos.
Catarina Francisco, moradora do bairro, lamentou a perda da vizinha, referindo que esta foi vítima de disparos de agentes da PIR.
“Foi baleada pela polícia, um carro da PIR. Ela, quando foi à procura do filho, encontrou muita confusão, e então ela começou a correr e levou um tiro da cabeça”, descreveu, referindo que o bairro está em choque.
Quem diz ter assistido à morte da vizinha, enquanto efectivos da polícia tentavam dispersar as pessoas que protestavam naquela zona, é também Esperança Fernando Romão, que pediu justiça pela perda de Silvi, dizendo, igualmente, que foi atingida com um tiro na cabeça.
Com lágrimas nos olhos, Esperança “exigiu” justiça pela morte da vizinha, que descreveu como uma mulher batalhadora que foi à rua apenas em busca do filho e não para fazer protestos: “está a me doer muito no coração, isso já não estou a aguentar mais”.
“Nós queremos mesmo justiça, era uma mãe batalhadora, nunca roubou ninguém (…). Queremos justiça [para] essa mãe, queremos mesmo justiça, nunca vi isso na minha vida”, apelou.
Na Rua Guarda Passagem, onde Silvi deu o último suspiro, ainda são visíveis vestígios de sangue, como relataram os vizinhos e constatou a Lusa, com os moradores a clamarem por justiça e ajuda para a família enlutada.
“Ela não era manifestante, na verdade ela foi à busca do seu filho, porque aqui vivemos um clima de guerra, o exército fez vários disparos e atingiu a nossa vizinha”, disse Ângelo Pemba, morador da CAOP B, pedindo também “justiça”.
Solidários com a perda da vizinha, muitos juntaram-se hoje na casa da família de Silvi para expressarem o seu pesar.
Residente numa casa precária e com dívidas por liquidar junto do senhorio, a família pede ajuda à sociedade e às autoridades para o funeral e protecção dos órfãos.
Alegria Alberto, irmão de João Panzo, reafirmou a necessidade de apoio à família, recordando que o viúvo não trabalha e sobrevivia de biscates e da ajuda da mulher que era comerciante.
Pelo menos 22 pessoas morreram nos tumultos registados em Luanda e noutras províncias angolanas, nos últimos três dias de protestos, na sequência da paralisação convocada por taxistas, segundo números divulgados pelas autoridades.
ONU reclama investigações exaustivas em Angola
O Gabinete dos Direitos Humanos da ONU reclamou hoje às autoridades angolanas “investigações rápidas, exaustivas e independentes sobre as mortes de pelo menos 22 pessoas, bem como sobre as violações dos direitos humanos associadas” durante os protestos em Luanda.
Numa declaração divulgada hoje à tarde, o porta-voz do Gabinete, Thameen Al-Kheetan, nota que, “de acordo com relatórios oficiais, mais de 1.000 pessoas foram detidas” durante os protestos verificados esta semana na capital angolana, acrescentando que “imagens não verificadas sugerem que as forças de segurança utilizaram munições reais e gás lacrimogéneo para dispersar os manifestantes, o que aponta para um uso desnecessário e desproporcional da força”.
Reconhecendo que “alguns dos manifestantes recorreram à violência e que vários indivíduos terão aproveitado a agitação para cometer actos criminosos, incluindo saques a lojas, bem como vandalismo de propriedade em vários locais da capital, Luanda”, Al-Kheetan apela às autoridades angolanas “para que se abstenham de recorrer ao uso desnecessário ou desproporcional da força para manter a ordem pública e garantam o pleno gozo dos direitos à vida, à liberdade de expressão, à reunião pacífica e à associação”.
“Quaisquer indivíduos que possam ter sido detidos arbitrariamente devem ser imediatamente libertados. Todos os manifestantes que saem às ruas para expressar as suas opiniões devem fazê-lo de forma pacífica. Todas as violações dos direitos humanos devem ser investigadas e os responsáveis devem ser responsabilizados”, conclui o porta-voz do Gabinete de Direitos Humanos, com sede em Genebra, Suíça.
Luanda começou hoje a regressar à normalidade, após três dias de paralisação dos taxistas que deram origem a violentos tumultos, pilhagens e confrontos, que provocaram 22 mortos, 197 feridos e 1.214 detenções, segundo as autoridades.
Os actos de violência registaram-se entre segunda e quarta-feira, na sequência de uma paralisação convocada por cooperativas e associações de táxis, em protesto contra a subida do preço dos combustíveis e das tarifas de transporte público, não havendo ainda uma contabilização oficial dos prejuízos materiais causados pelos actos de vandalismo e pilhagem.
O Governo classificou os acontecimentos como “actos de vandalismo” e hoje mesmo as autoridades angolanas começaram a julgar os autores das pilhagens e do vandalismo, muitos dos quais menores de idade e que serão devolvidos às respectivas famílias.