Este relatório da Associação Cedesa – Centro de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social de África, que pela sua importância e relevância o Folha 8 transcreve, com a devida vénia, na íntegra, aborda o aparente incumprimento das obrigações legais internacionais por parte dos Emirados Árabes Unidos, em concreto do Dubai. As referências que são feitas a pessoas individuais, como Isabel dos Santos e outras entidades citadas no relatório, respeitam o princípio da presunção de inocência e não contêm qualquer julgamento de valor acerca delas, apenas em relação aos deveres jurídicos do Dubai.
O Dubai não é um estado soberano, mas um estado federado nos Emirados Árabes Unidos. Os Emirados Árabes Unidos são uma federação constitucional criada em Dezembro de 1971. São compostos por sete emirados, dos quais o Dubai é um deles. O sistema político baseia-se numa Constituição que determina as principais regras da organização política e constitucional do país.
Segundo o costume adoptado, o governante de Abu Dhabi (Mohamed bin Zayed Al Nahyan) é o presidente dos Emirados Árabes Unidos (apesar de deter o título de presidente, o país não é governado como uma república, mas como uma monarquia) e o governante de Dubai é o primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos, o chefe do governo. Dentro dos Emirados Árabes Unidos, cada emirado tem considerável autonomia administrativa dentro de si.
Apesar da larga latitude que cada emirado detém, cada um deles está sujeito à autoridade federal nas seguintes matérias: relações exteriores, segurança e defesa, questões de nacionalidade e imigração, educação, saúde pública, moeda, serviços postais, telefónicos e outros serviços de comunicação, controlo de tráfego aéreo, licenciamento de aeronaves, relações laborais, bancos, delimitação de águas territoriais e extradição de criminosos.[1] [2]
O poder judicial federal é um órgão constitucionalmente totalmente independente (nos termos do artigo 94.º da Constituição) e inclui o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais de Primeira Instância. O Supremo Conselho de Governantes nomeia os cinco juízes chefiados por um presidente para o Supremo Tribunal. Os juízes são responsáveis por decidir se as leis federais são constitucionais, mediando disputas entre os Emirados.
Consequentemente, o Dubai está enquadrado num sistema legal federal em que as relações internacionais, logo as suas obrigações internacionais, bem como os processos de extradição, estão sujeitos às normas federais dos Emirados. Em teoria há um edifício normativo que regula a actuação de cada um dos Emirados num quadro constitucional.
É público que a Procuradoria-Geral Angolana emitiu um mandado de detenção para extradição relativamente a Isabel dos Santos em finais de 2022, anunciando que o tinha divulgado através de uma Red Notice da Interpol.
Uma Red Notice é um pedido às autoridades policiais em todo o mundo para localizar e prender provisoriamente uma pessoa pendente de extradição, entrega ou acção legal semelhante. Não é um mandado de prisão internacional. Os indivíduos são procurados por um país membro requerente e os restantes países membros aplicam as suas próprias leis ao decidir se devem prender uma pessoa e extraditá-la ou não.[3]
No caso concreto de Isabel dos Santos é público e notório que se encontra no Dubai. De acordo, com a Bellingcat, um site de jornalismo investigativo com sede na Holanda especializado em verificação de fatos e inteligência de código aberto, fundada pelo jornalista britânico Eliot Higgins em Julho de 2014, uma postagem do TikTok de Isabel dos Santos datada de 4 de Dezembro de 2022, está localizada na piscina do Bulgari Yacht Club de Dubai.
Noutro caso, Isabel dos Santos foi etiquetada por uma amiga num post do Instagram no dia 27 de Dezembro de 2022, onde pode ser vista a desfrutar de uma refeição no Nusr-Et Steakhouse Dubai. Igualmente, apareceu brevemente na postagem de outro amigo do restaurante naquele dia e as avaliações do restaurante apontam para a presença de Nusret Gökçe – também conhecido como Salt Bae – no seu outlet em Dubai na última semana de Dezembro de 2022. Numa foto postada no Instagram, ainda, de outro amigo em 8 de Janeiro de 2023, Isabel dos Santos pode ser vista no corredor vermelho e roxo do restaurante Trove, no Dubai, dentro do complexo Dubai Mall[4].
Assente que Isabel dos Santos está (ou esteve em 2022 e 2023) no Dubai, e que Angola emitiu um mandado de detenção divulgado através de uma Red Notice da Interpol, é importante perceber a situação e reacção do Dubai ou dos Emirados Árabes Unidos. Aparentemente, nenhuma.
Os Emirados são membros da Interpol desde 2 de Outubro de 1973. Cada um dos países membros acolhe um Gabinete Central Nacional da INTERPOL (BCN), que assegura a ligação entre os vários países e os Secretariado-Geral através duma rede global segura de comunicações policiais chamada I-24/7. Os BCN são o centro da INTERPOL. Procuram as informações necessárias junto de outros BCN para ajudar a investigar crimes ou criminosos no seu próprio país e partilham dados e informações criminais para ajudar outro país.[5]
Assim, recebida a comunicação de uma Red Notice relativa a alguém que está no Dubai, no BCN local da Interpol em Abu-Dhabi, era forçosa uma actuação das forças policiais dos Emirados.
Não existindo um acordo de extradição entre os Emirados e Angola, o certo é que existe uma Lei Federal que regula o tema. Nos EAU, a extradição das pessoas procuradas é regida pela Lei Federal n.º 39 de 2006 sobre Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (“Lei de Extradição”). A Lei de Extradição é geralmente aplicada se os Emirados Árabes Unidos e o país requerente não tiverem um tratado em vigor em matéria de extradição.
De acordo com o artigo 11.º da Lei de Extradição, um pedido de entrega deve ser apresentado pelo país requerente através dos canais diplomáticos ao departamento competente e apoiado pelas informações e documentos necessários, tais como o nome e descrição da pessoa procurada, textos legais aplicáveis ao crime, e à pena aplicável, sentença condenatória, caso a pessoa procurada já tenha sido condenada, com comprovação de que a sentença é executória. Todos os documentos e informações devem ser legalizados e traduzidos para o idioma árabe.
No entanto, deve notar-se que os EAU não permitirão a extradição de uma pessoa se, nos termos do Artigo 9 da Lei de Extradição:
– é cidadã dos Emirados Árabes Unidos;
– o objecto do crime é de natureza política. Os crimes terroristas, os crimes de guerra e os genocídios não são considerados crimes políticos;
[Refira-se a este propósito que a defesa pública que Isabel dos Santos tem feito em relação às acusações que o Estado angolano lhe faz, assenta neste pressuposto: a alegação duma perseguição política. Nessa medida, é uma antecipação duma defesa que poderá fazer num tribunal dos Emirados].
– o objecto do crime limita-se às infracções às obrigações militares;
– o pedido de entrega visa penalizar ou processar uma pessoa pela sua religião, nacionalidade ou filiação étnica;
– a pessoa procurada foi anteriormente julgada e condenada ou absolvida pelo mesmo crime;
– os tribunais dos EAU já proferiram uma sentença irrevogável sobre o crime pelo qual a sua extradição foi solicitada;
– haver lapso de tempo ou a acção penal foi encerrada; ou poderá ser submetido a tratamentos desumanos, insultuosos ou tortura no país requerente se for extraditado.
Além do acima exposto, o pedido de entrega está sujeito às seguintes condições-chave: o crime deve ser penalizado pelas leis dos Emirados Árabes Unidos e do país requerente por pelo menos 1 ano ou mais de prisão.
O tribunal competente tem o direito de determinar se a pessoa procurada deve ser devolvida ao país requerente. Esta determinação deve estar em conformidade com a lei e as razões para se chegar a uma decisão devem ser justificadas (artigo 20.º)
A Lei de Extradição também permite que as autoridades dos EAU prendam provisoriamente a pessoa procurada em casos de urgência. Documentos e informações adicionais também podem ser solicitados pelas autoridades dos EAU se for considerado que as informações apresentadas são insuficientes.
Motivos para a inacção do Dubai. O assunto é da competência federal, isto é, dos Emirados Árabes Unidos e não do Dubai.
A Red Notice devia ter levado a uma actuação da polícia local. Essa actuação não se traduziria em prender Isabel dos Santos e metê-la num avião para Angola, mas no início do processo judicial interno de extradição nos termos da Lei Federal dos Emirados.
Não tendo isso acontecendo, vislumbram-se duas explicações opostas.
Hipótese A: O padrão do Dubai: santuário político em contrapartida de investimentos avultados:
Em primeiro lugar, pode ser um acto deliberado das autoridades dos Emirados por interesse político ou corrupção local. Recordemos que o Dubai está a ser um porto de refúgio seguro para os oligarcas russos anteriormente estabelecidos em Londres.
Na realidade, pode ser política interna do governo dos Emirados (ou do Dubai com cobertura federal) ser o ponto global de refúgio e acolhimento de várias pessoas politicamente expostas, recebendo avultados rendimentos por esse papel de protecção.
Factualmente, desde a invasão da Ucrânia em 2022, cidadãos russos compraram 6,3 mil milhões de dólares em propriedades existentes e em desenvolvimento no Dubai. Estima-se que a quantidade de dinheiro russo que flui para o sector imobiliário no Dubai aumentou mais de dez vezes após a invasão da Ucrânia. Isso ilustra como a cidade se tornou um destino privilegiado para a elite russa que evita sanções ou escapava da própria guerra. Dos 6,3 mil milhões de dólares em propriedades residenciais adquiridas – uma “estimativa conservadora”, de acordo com o relatório – 2,4 mil milhões de dólares eram propriedades existentes e 3,9 mil milhões de dólares ainda estavam em desenvolvimento[6].
Há aqui um padrão de comportamento, aplicável a Isabel dos Santos, aos oligarcas russos e a todos quanto procuram cobertura amigável no Dubai. Investem no país e são acolhidos e protegidos.
Esta pode ser a explicação mais óbvia para o comportamento dissonante do Dubai em relação às suas obrigações internacionais face à aplicação da lei.
Hipótese B: A falta de iniciativa legal compreensiva:
Embora, muitos factos indiquem que o Dubai se assume propositadamente como um santuário de protecção política em troca de investimentos avultados, pode acontecer que considere que a lei federal interna não está a ser cumprida na sua plenitude para levar a uma actuação das autoridades.
Em rigor, poder-se-á alegar que uma Red Notice (ou qualquer iniciativa de extradição ou congelamento de bens de entidades localizadas no Dubai) tem de obedecer aos protocolos estabelecidos no artigo o artigo 11.º da Lei de Extradição. Isto é, a Red Alert para ser eficaz no sentido de desencadear um processo judicial federal deve ser seguida dum pedido de extradição formal que deve ser apresentado pelo país requerente através dos canais diplomáticos (Embaixada de Angola no Abu Dhabi) ao departamento competente dos Emirados apoiado pelas informações e documentos necessários, tais como o nome e descrição da pessoa procurada, textos legais aplicáveis ao crime, e a pena aplicável. Todos os documentos e informações devem ser legalizados e traduzidos para o idioma árabe.
Nesse sentido, qualquer mandado angolano só seria eficaz quando acompanhado de todo o procedimento previsto na Lei federal dos Emirados.
Conclusão
Fica a dúvida se o Dubai se está a tornar um santuário privilegiado para o refúgio e protecção de pessoas politicamente expostas a troco de avultados investimentos, não cumprindo as suas obrigações legais internacionais ou se existe um desconhecimento das normas internas dos Emirados e do Dubai que implica que as autoridades judiciárias dos vários países não consigam ter o sucesso necessário para estender a sua aplicação da lei ao Dubai.
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[1] Constituição dos EAU, disponível em https://elaws.moj.gov.ae/MainArabicTranslation.aspx?val=UAE-MOJ_LC-En%2F00_CONSTITUTION%2FUAE-LC-En_1971-07-18_00000_Dos.html&np=&lmp=undefined
[2] UAE The political system, disponível em https://u.ae/en/about-the-uae/the-uae-government/political-system-and-government
[3] Interpol.Red Notice. Disponível https://www.interpol.int/How-we-work/Notices/Red-Notices/View-Red-Notices
[4] Miguel Ramalho, Wanted by Interpol, Relaxing in Dubai: Geolocating Isabel dos Santos’ Life of Luxury, disponível em https://www.bellingcat.com/news/2023/02/03/wanted-by-interpol-relaxing-in-dubai-geolocating-isabel-dos-santos-life-of-luxury/
[5] Interpol. United Arab Emirates, disponível em https://www.interpol.int/Who-we-are/Member-countries/Asia-South-Pacific/UNITED-ARAB-EMIRATES
[6] Carmen Molina Acosta and Eiliv Frich Flydal, Russians bought up $6.3 billion in Dubai property after 2022 Ukraine invasion, report finds, Disponível em https://www.icij.org/news/2024/05/russians-bought-up-6-3-billion-in-dubai-property-after-2022-ukraine-invasion-report-finds/