MONTENEGRO TEM A BÊNÇÃO DE JOÃO

O Presidente angolano (não nominalmente eleito), general João Lourenço, falou hoje ao telefone com o primeiro-ministro português, Luís Montenegro, sobre as “perspectivas da cooperação bilateral”. Como habitualmente, participaram na conversa o Presidente do MPLA, o Titular do Poder Executivo e o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas.

Em Março, João Lourenço já havia felicitado Luís Montenegro, em funções desde 2 de Abril, desejando-lhe “êxito” e “bom desempenho” nas novas funções.

O chefe de Estado angolano, numa curta mensagem, na ocasião, felicitou Luís Montenegro pela indigitação para o cargo na sequência da vitória obtida pela Aliança Democrática (AD) nas eleições de 10 de Março, e realçando a proximidade entre Portugal e Angola.

“Portugal e Angola, pela sua história, proximidade cultural e de consanguinidade dos seus povos, [estão] compelidos a andar sempre de mãos dadas e a trabalhar na busca das melhores soluções a favor do progresso social e do desenvolvimento económico dos nossos países”, lê-se na mensagem de João Lourenço.

Não se saba se o general João Lourenço fez alguma alusão ao facto de, segundo ele, o MPLA ter feito em 50 anos mais por Angola do que os portugueses em 500.

Recorde-se, a propósito das relações bilaterais, que o Presidente da República de Portugal afirmou há um ano (8 de Fevereiro de 2023) que Espanha aproximar-se de Angola “é muito bom para todos” e manifestou-se “muito feliz” pela visita do monarca espanhol, Felipe VI, à parte de Luanda à qual só têm acesso de vida os que o MPLA considera serem angolanos puros (os seus). E se Marcelo Rebelo de Sousa acredita que o índice de bajulação e subserviência de Lisboa é suficiente para o MPLA, Luís Montenegro vai alinhar pelo mesmo diapasão.

Em declarações aos jornalistas, no antigo picadeiro real (local ideal para falar da realeza espanhola e do MPLA), junto ao Palácio de Belém, em Lisboa, o chefe de Estado português rejeitou ver nessa visita uma ameaça às relações entre Portugal e Angola: “Eu acho que é muito bom sinal. Eu fico muito, muito feliz”, contrapôs.

E contrapôs muito bem. Quem melhor do que Marcelo Rebelo de Sousa para, mais uma vez, falar do MPLA sem falar dos angolanos, falar do que o seu querido amigo João Lourenço quer que ele fale, pouco se importando – por exemplo – com os 20 milhões de pobres e das crianças que são geradas com fome, nascem com fome e morrem pouco depois com… fome.

Em breve veremos Luís Montenegro repetir Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo que os portugueses têm sido, no quadro europeu, “praticamente cavaleiros andantes isolados nas relações entre a Europa e África”, seja para dar cobertura às constantes violações dos direitos humanos em Angola ou na “lusófona” Guiné Equatorial.

Espanha “avançar agora para um conhecimento maior da economia, da sociedade de outros países africanos, e grandes países africanos e potências regionais, como é o caso de Angola e para Moçambique, é muito bom para todos, muito, muito bom para todos”, considerou Marcelo Rebelo de Sousa.

Para o Presidente da República lusa, “os portugueses que lá estão e a actividade económica portuguesa que lá está, está, está bem, é fundamental e vai aumentar”. Tem razão. Basta, para isso, Portugal não falar do que não interessa ao seu amigo general João Lourenço (fome, direitos humanos, democracia, liberdade, estado de direito, Cabinda etc. etc.), mantendo sempre o rabinho entre as pernas.

No entender de Marcelo ontem e de Luís Montenegro um dia destes, “o haver actividade espanhola, italiana ou francesa – que houve noutros tempos, sobretudo na África Ocidental, e diminuiu – é bom, porque isso permite uma ligação entre a Europa e África que não está a funcionar em muitos casos”.

“E ao não funcionar significa que estamos a perder a grande vantagem que levou a que Portugal organizasse as duas grandes cimeiras Europa-África, com outros países europeus a acompanharem mas assim um bocadinho relutantes. A Espanha ter percebido isso é muito bom”, acrescentou.

Não admira, por isso, que Portugal defenda que é preciso “investimento e cooperação económica que crie condições para os africanos poderem viver e procurar a sua realização em África”.

Sem isso, “depois não se queixe a Europa das migrações, dos problemas de instabilidade política, militar, social que obrigam a intervenção de forças destacadas e de missões de paz europeias em África”.

De acordo com o chefe de Estado, para Portugal tem sido “difícil explicar isto” a muitos países europeus que não têm “tradição de conhecimento da realidade africana”. E Portugal tem essa tradição? Se calhar teve, mas já não tem.

E não tem porque:

Assim, ninguém ouvirá Luís Montenegro dizer que 68% da população angolana é afectada pela pobreza, que a taxa de mortalidade infantil é das mais alta do mundo, com 250 mortes por cada 1.000 crianças? Ninguém o ouvirá dizer que apenas 38% da população angolana tem acesso a água potável e somente 44% dispõe de saneamento básico?

Assim, ninguém ouvirá Luís Montenegro dizer que apenas um quarto da população angolana tem acesso a serviços de saúde, que, na maior parte dos casos, são de fraca qualidade. Niguém o ouvirá dizer que 12% dos hospitais, 11% dos centros de saúde e 85% dos postos de saúde existentes no país apresentam problemas ao nível das instalações, da falta de pessoal e de carência de medicamentos.

Assim, ninguém ouvirá Luís Montenegro dizer que 45% das crianças angolanas sofrerem de má nutrição crónica, sendo que uma em cada quatro (25%) morre antes de atingir os cinco anos. Ninguém o ouvirá dizer que, em Angola, a dependência sócio-económica a favores, privilégios e bens, ou seja, o cabritismo, é o método utilizado pelo MPLA para amordaçar os angolanos.

Assim, ninguém ouvirá Luís Montenegro dizer que, em Angola, o acesso à boa educação, aos condomínios, ao capital accionista dos bancos e das seguradoras, aos grandes negócios, às licitações dos blocos petrolíferos, está limitado a um grupo muito restrito de famílias ligadas ao regime no poder.

Assim, ninguém ouvirá Luís Montenegro dizer que Angola é um dos países mais corruptos do mundo e que tem 20 milhões de pobres. Dir-se-á, e até é verdade, que esse silêncio é condição “sine qua non” para cair nas graças dos donos do dono do nosso país, até porque todos sabemos que nenhum negócio se faz sem a devida autorização de João Lourenço.

Portugal consegue assim não o respeito mas a anuência do regime para as suas negociatas. Esquece-se, contudo, de algo que mais cedo ou mais tarde lhes vai sair caro: o regime não é eterno e os angolanos têm memória.

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