GENERAL PRESIDENTE (NÃO) FALOU DE JUSTIÇA

O Presidente angolano, general João Lourenço, afirmou hoje que os tribunais são o último recurso para garantir a justiça e que, por isso, não devem haver suspeições sobre a sua idoneidade, “muito menos sobre juízes e procuradores”. Olhai para o que dizemos mas não para o que fazemos, terá pensado o Presidente do MPLA…

Por Orlando Castro (*)

No discurso de abertura do ano judicial 2024, o general João Lourenço afirmou que Angola é aquilo que sabe que não é: um Estado democrático e de direito assente no primado da Constituição e da lei, na separação de poderes e na interdependência de funções, sublinhando o empenho do Governo na melhoria das condições de trabalho dos órgãos de Justiça, bem como do acesso dos cidadãos aos tribunais, “o último recurso para garantir que a justiça seja feita”.

Tal como “copiou” do que dizem os seus homólogos dos verdadeiros Estados democráticos e de direito, o general João Lourenço disse que deve ser garantido a todos o direito fundamental a um julgamento justo e equitativo, salientando que, por isso “não devem existir suspeições fundadas em relação à ética e idoneidade dos (…) tribunais, muito menos sobre a conduta dos juízes e procuradores no exercício das suas nobres funções”.

O general Presidente João Lourenço abordou também o tema do combate à corrupção (parte essencial do regime do MPLA, do qual é também presidente) elogiando os resultados alcançados, apontando como corolário a apreensão e recuperação de imóveis (mesmo antes de os respectivos processos terem transitado em julgado, o que é um pormenor de somenos relevância) nos quais foram instalados serviços públicos que se encontravam a funcionar em instalações degradadas, incluindo tribunais.

Sobre o combate à corrupção (dos outros aos quais pertenceu), o general João Lourenço afirmou que “deve ser feito com justiça e de forma objectiva, ponderada e independente”, merecendo especial atenção dos órgãos judiciais.

Observou, no entanto, que não devem ser descurados os demais crimes, pedindo mais firmeza no combate ao tráfico de droga e combustíveis, exploração ilegal de diamantes, crimes ambientais e vandalização de bens públicos e privados.

O general João Lourenço enumerou acções recentes, como a nomeação de juízes de tribunais superiores e entrada em funções de 176 juízes, que garantem uma “tutela mais célere e eficaz dos direitos dos cidadãos”, bem como o pleno funcionamento dos tribunais da Relação de Luanda, Benguela e Huíla.

Ao nível das comarcas, Angola conta com 38 tribunais, estando também em curso a expansão dos Centros Integrados de Atendimento à Criança e ao Adolescente (CIACA) para garantir a protecção da criança (a fome com que são geradas, com a qual nascem e com a qual morrem pouco depois, também conta?) e do adolescente que estejam em contacto com o sistema de Justiça.

Adiantou ainda que, fazendo em 50 anos o que os portugueses não fizeram em 500, estão em preparação diversos diplomas no quadro da reforma da Justiça em curso, tendo sido aprovada recentemente a lei que altera a Lei Orgânica dos Tribunais da Relação, com o objectivo de corrigir questões remuneratórias dos magistrados do Ministério Público.

O general João Lourenço (que, aliás, sendo Presidente do MPLA é também Comandante-em-Chefe das Forças Armadas… apartidárias) avançou que o Instituto Nacional de Estudos Judiciários formou entre 2022 e 2023 um total de 364 magistrados, dos quais 183 para a magistratura judicial e 181 para o Ministério Público, “que irão certamente reforçar a dinâmica de actuação que se pretende por parte de ambas magistraturas.

Outro dos temas em foco foi o da informatização do sistema judicial, que deve abranger os tribunais e a Procuradoria-Geral da República, possibilitando que o magistrado possa praticar actos a todo tempo e a partir de qualquer local, acedendo ao processo por via remota. Boa! Será que vamos ter a “informatização do sistema judicial” a fazer justiça, ou esta continuará a caber a alguns magistrados que para contarem até 12 têm de se descalçar?

A abertura do ano judicial decorreu sob o lema “Pela concretização da autonomia financeira e modernização da actividade jurisdicional”, contando com a presença dos juízes e magistrados de vários tribunais, da Procuradoria-Geral da República, do Conselho Superior da Magistratura Judicial e do Bastonário da Ordem dos Advogados.

Curvando-se perante o eruditismo divino do general João Lourenço, o Procurador-Geral da República (também ele um general) defendeu hoje que dotar de meios financeiros os órgãos envolvidos na administração da Justiça não deve ser encarado como uma despesa, mas como um investimento no Estado de direito.

O general Pitta Gróz, que discursou na cerimónia de abertura do ano judicial, afirmou que é também necessário, em consonância com as orientações internacionais e à semelhança de outros ordenamentos, criar mecanismos autónomos de suporte material e financeiro aos órgãos que directamente materializam o combate à corrupção e operam na recuperação de activos.

“Colocar ao serviço da Justiça meios e equipamentos financeiros não deve ser encarado como uma despesa, mas percebido como um investimento necessário à consolidação do Estado de Direito”, referiu (obviamente com menor eloquência do que a revelada pelo seu general-chefe) o general Pitta Gróz.

“O Ministério Público, enquanto órgão da PGR, é essencial à realização da função jurisdicional do Estado”, frisou Pitta Gróz, comprometendo-se (palavra de MPLA) a “alcançar níveis de operacionalidade cada vez mais satisfatórios, principalmente por parte dos seus órgãos judiciários, que requerem quadros e meios especializados, pressupondo um forte suporte financeiro”.

Pitta Gróz realçou que o reforço da capacidade de trabalho é um objectivo permanente, anunciando que brevemente vão ser nomeados 180 auditores, para engrossarem o colectivo de magistrados do Ministério Público, actualmente composto por 632 procuradores, com as mulheres a representarem 41%.

Outra realidade, segundo o general-PGR, são magistrados que dirigem os distintos órgãos sem formação especializada em gestão financeira, exercendo-a “por mera inerência de funções”.

Pitta Gróz defendeu que esta função deve ser executada preferencialmente por pessoas que não sejam magistradas, para garantir maior eficiência e transparência à gestão financeira e salvaguardar os magistrados dos potenciais erros de gestão, “nalguns casos desculpáveis, porém nefastos”.

Relativamente à modernização, o general-PGR disse que a informatização dos órgãos judiciais e judiciários do Estado e, consequentemente, dos processos que levam a cabo é uma necessidade incontornável, garantindo a redução da burocracia, diminuição dos tempos de resposta, aumento da qualidade dos dados e a humanização dos serviços. Presume-se que terão informado Pitta Gróz que os computadores (ainda) não trabalham sozinhos e que se o magistrado escrever “se haver necessidade” não será a “máquina” a rectificar para “se houver necessidade”.

De acordo com o general-PGR, Angola enfrenta o desafio do seu crescimento, estando a viver uma fase de recessão económica, cabendo à Justiça “a árdua missão de assegurar a estabilidade do sistema socioeconómico, independentemente de quaisquer fenómenos sociais e/ou políticos, internos ou internacionais”.

Para o Pitta Gróz, a solidez dos órgãos que integram o poder judicial do Estado (leia-se MPLA), a sua capacidade de execução das atribuições constitucionais, pressupõe a modernização do seu funcionamento, que é de todo inalcançável sem a materialização da sua autonomia financeira.

“Mais do que estar programada, aprovada ou lançada, a autonomia financeira e, consequentemente, a modernização dos órgãos de Justiça, tem de ser efectivamente concretizada”, reiterou.

“As missões atribuídas à Procuradoria-Geral da República, no âmbito do programa nacional de combate à corrupção ampliam a dimensão da sua intervenção e, consequentemente, a necessidade da sua fortificação, a todos os níveis”, acrescentou.

Entretanto, Pitta Gróz aproveitou para informar que Angola não foi notificada do parecer dos peritos da ONU sobre o caso São Vicente, adiantando que está a tentar recuperar activos que ainda se encontram na Suíça e Singapura.

À margem da cerimónia de abertura do ano judicial 2024, o general Pitta Gróz sublinhou que o parecer era relativo ao período em que o empresário luso-angolano esteve preso preventivamente.

“Esse grupo de trabalho considerou que a sua detenção, pelo facto de não ter sido feita por um juiz, estava eivada de alguma ilegalidade, mas nós, naquele momento em que ele foi preso preventivamente ainda não tínhamos a figura do juiz de garantia em vigor”, explicou.

“A acção foi feita nos termos da lei em vigor na altura, quando ainda era o Ministério Publico que aplicava a medida de prisão preventiva, situação que foi ultrapassada com a criação dos juízes de garantia, afirmou Pitta Gróz, acrescentando que o processo de São Vicente “observou os diversos recursos interpostos pelos seus advogados, para a Relação, para o Supremo, para o Constitucional”, tratando-se de um acto de soberania de Angola. “Como tal o parecer do grupo de trabalho veio muito tarde”, frisou.

Pitta Gróz disse que o Governo não foi notificado do parecer, tal como seria obrigatório, antes da divulgação pública, pelo que não respondeu à entidade.

“O que estamos a assistir é uma inversão. Houve a publicidade, não sei porquê, e até ao momento não foi notificado o Estado angolano. Não fomos notificados, não podemos responder”, destacou o Procurador-Geral.

Pitta Grós revelou ainda que, de acordo com a sentença, que determina a entrega dos bens de São Vicente ao Estado, as autoridades angolanas estão a trabalhar com os governos da Suíça de Singapura para que os bens e valores nesses países “possam ficar à disposição do Estado angolano”, admitindo contactos também com Portugal sobre esta matéria no futuro.

Como o Folha 8 escreveu no dia 12 de Fevereiro, sob o título “ONU arrasa MPLA e pede libertação de São Vicente”, o grupo de trabalho das Nações Unidas sobre Detenções Arbitrárias concluiu que a detenção do empresário luso-angolano Carlos São Vicente foi arbitrária e apelou à sua libertação imediata e compensação.

O empresário luso-angolano Carlos São Vicente foi condenado, a 24 de Março de 2022, a nove anos de prisão pelos crimes de peculato, fraude fiscal e branqueamento de capitais, bem como ao pagamento de uma indemnização de 500 milhões de dólares (464 milhões de euros).

Quanto ao ex-patrão da Sonangol e ex-vice-Presidente angolano Manuel Vicente, o general Pitta Gróz disse que o processo “tem o seu tempo” e depende também de instâncias internacionais.

“Vamos precisar muito da cooperação internacional e as respostas nem sempre surgem no tempo oportuno, no tempo que precisamos. Teremos de aguardar um bocado mais para um dia destes podermos dar uma informação mais clara”, adiantou.

A PGR confirmou em Janeiro a abertura de processo-crime contra Manuel Vicente relacionado com crimes de corrupção activa, branqueamento de capitais e falsificação de documento, no âmbito da Operação Fizz.

Pitta Gróz foi também questionado sobre o relatório da Freedom House, ontem, divulgado que colocou Angola entre um conjunto de países africanos “não livres”, respondendo que não teve contacto com o documento, mas que vai ler o conteúdo para avaliar as razões invocadas.

Sobre os discursos na abertura do ano judicial, nomeadamente suspeições sobre juízes e independência dos tribunais, considerou tratarem-se de temas “pertinentes” que podem de algum modo “reflectir a realidade”.

“Quando se fala da independência dos órgãos de Justiça, essa independência tem de ser concretizada na capacidade de poderem gerir os meios financeiros (…) e, de facto, actualmente, temos tido algumas dificuldades”, admitiu o PGR.

Para Pitta Gróz uma Justiça célere, dinâmica e próxima do cidadão tem de estar sustentada em condições financeiras o que “não está totalmente realizado”.

(*) Com Lusa

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