Mohamed Bazoum era o presidente do Níger, livremente eleito em 2021. Foi deposto no mês de Julho de 2023 pela Guarda Presidencial, a que se juntou o Exército. Quando escrevemos, o general Abdourahmane Tchiani, que liderava a guarda presidencial desde 2011, anunciou ser o dirigente máximo da junta militar que assumiu o poder naquele país africano.
Por CEDESA (*)
O padrão formal de tomada de poder por um “Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria” (CNSP), parece seguir o golpe de Assimi Goïta no Mali em 2020. Aliás, os métodos são os mesmos: suspensão da ordem constitucional, estabelecimento de recolher obrigatório, fecho das fronteiras. Um estado de excepção que as experiências recentes entre os vizinhos do Sahel atingidos por esta epidemia militar demonstram podem durar meses ou mesmo anos.
Contudo, o mais interessante é que as primeiras bandeiras russas começaram a surgir nas mãos de alguns dos manifestantes pró-junta nas ruas da capital nigeriana, tal como aconteceu noutros golpes em países africanos francófonos.
Na verdade, a queda de Bazoum pode representar possivelmente a queda de um dos últimos bastiões franceses no Sahel, e muito provavelmente, mais um passo da Rússia na criação de um cinturão “vermelho” nesta região africana, embora nesta altura ainda existam divergências sobre a existência ou extensão da intervenção russa no golpe. Mesmo que a Rússia não tenha tido um papel directo no golpe, pode, de acordo com aquilo que tem sido a sua recente política oportunista em África, aproveitar o momento.
Vejamos os recentes golpes de estado militares, a geografia africana, e a forma como a Rússia estabelece o seu cinturão.
Começando na costa atlântica temos em 2021, o golpe de estado na Guiné-Conacri levado a cabo por um militar, o coronel Mamady Doumbouya, que de momento implantou um regime autoritário, embora com a promessa de eleições em 2025. Embora, não houvesse aparência russa na génese do golpe, pois a Rússia tinha uma boa relação com Alpha Condé, o presidente deposto, aparentemente, depois do golpe as relações entre a Guiné e a Rússia têm estado a intensificar-se com várias visitas russas ao palácio presidencial em 2022. De todo o modo, Mamady Doumbouya parece, de momento, ser o típico militar nacionalista populista que ainda procura um caminho, e a verdade é que ainda não se pode falar de manifesta influência russa na Guiné-Conacri.
Ao contrário do Mali e do Burkina Faso, não é o chefe da junta militar no poder em Conacri que irá a São Petersburgo. O Coronel Mamadi Doumbouya foi representado pelo Dr. Dansa Kourouma (Presidente do Conselho Nacional da Transição) e pelo Dr. Morissanda Kouyaté (Ministro dos Negócios Estrangeiros). Portanto, na Guiné-Conacri ainda não parece estar estabelecido um claro regime pró-russo, mas é caso único nos recentes movimentos golpistas na zona Sahel/centro-africana.
Fazendo fronteira com a Guiné-Conacri está o Mali, aqui a situação é bem clara e marca o início efectivo daquilo a que apelidaremos o “cinturão russo”. No Mali houve um golpe de estado em 2021, em que o Coronel Assimi Goïta assumiu o poder. Desde meados de 2022 que estão militares russos no Mali, sendo também confirmada a presença do grupo Wagner. O Mali e Rússia assinaram um acordo de cooperação em segurança, inteligência, gestão de riscos e desastres, combate ao narcotráfico e treino de pessoal. A presença russa é indesmentível, assim como a perda de influência da França no país, que se retirou militarmente, tendo algumas das suas forças ido para o Níger (de onde talvez saiam agora). O presidente do Mali esteve no Fórum Rússia África.
Ao lado do Mali, está o Burkina Faso. Aqui o golpe militar foi em 2022, aliás nesse ano houve dois golpes, No golpe final, o oficial Ibrahim Traoré tomou o poder. O resultado da tomada de poder foi a expulsão do contingente militar francês existente no país e a aproximação à Rússia. Traoré também foi a São Petersburgo.
Se repararmos, o Níger, concretizando-se o golpe e a aproximação à Rússia, acrescenta um largo território ao cinturão russo. Faltará na verdade cair o Chade, pois a seguir estão o Sudão e a Eritreia.
A Eritreia é uma temível ditadura, onde nunca houve eleições. Juntamente com a Bielorrússia, a Síria e a Coreia do Norte, a Eritreia foi um dos quatro países, sem incluir a Rússia, a votar contra uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que condenava a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022.
Quanto ao Sudão, desde 2017, que há registos da presença do grupo Wagner. O Sudão está entre os poucos países que reconheceram oficialmente a anexação da Crimeia pela Federação Russa e votaram contra a Resolução 68/262 da Assembleia Geral das Nações Unidas (que condenou a anexação russa do território ucraniano), o que demonstrou as relações estreitas entre a Rússia e o Sudão. Em Julho de 2022, a Rússia obteve ouro de instalações da Wagner perto de Abidiya, no Sudão, para apoiar a guerra na Ucrânia. A Rússia é o principal fornecedor de armas para o Sudão.
Em Fevereiro de 2023, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, reuniu-se com autoridades sudanesas em Cartum, incluindo o comandante-em-chefe das Forças Armadas Sudanesas, Abdel Fattah al-Burhan, o líder das Forças de Apoio Rápido, Mohamed Hamdan Dagalo, e o ministro das Relações Exteriores em exercício, Ali Al-Sadiq Ali para reforçar as relações e para concluir a revisão de um acordo para construir uma base naval em Port Sudan, que aguarda ratificação do ainda a ser formado corpo legislativo no Sudão. Como se sabe a situação no Sudão é bastante agitada, mas o certo é que existe uma enorme influência russa.
Temos assim uma linha quase contínua de leste a oeste de África onde se está a formar um “cinturão russo”.
Na prática, falta cair o Chade, onde a influência francesa é grande, mas a instabilidade e a existência de grupos de guerrilha se faz notar. E basta referir que o Chade pode ficar totalmente cercado, pois a Norte na Líbia existe uma forte presença do grupo Wagner, como na fronteira Sul na República Centro Africana, tendo em conta que a Oeste tem o Níger e a Leste o Sudão, pode-se antecipar que o Chade está cercado e em breve poderá completar o “cinturão russo”.
Grosso modo, pode-se dizer que o “cinturão russo” corresponde à região do Sahel. Há algumas excepções, como por exemplo, a Mauritânia e o Senegal e alguns acréscimos como a República Centro Africana. Todavia o certo é que está a ser traçada uma linha na areia que divide África, precisamente na zona de intermediação da África subsaariana com a África do Norte.
Possivelmente, a intervenção russa não obedeceu a um plano pré-estabelecido, foi aproveitando oportunisticamente vários eventos na área, em que sobressai a inépcia francesa em desenvolver os países e assegurar o apoio da população da região, e as incursões islâmicas.
Também é verdade que o controlo russo não é homogéneo em todos os países e a situação é periclitante. Não há dados adquiridos, a não ser a procura dos povos de saídas diferentes das receitas neocoloniais oferecidas pela França e a desatenção geral do Ocidente ao sofrimento desta área do globo, apesar dos discursos politicamente correctos.
O espaço ocupado pela Rússia não é tanto o resultado do apelo por qualquer solução de Moscovo, mas o desagrado pela falta de soluções do Ocidente.
Mas, que está a ser estabelecida uma “ordem russa” é um facto. Prova recente disso, é a oferta de cereais que Vladimir Putin fez a seis países africanos. Entre eles estão membros deste “cinturão”, quatro, para ser mais preciso: Burkina Faso, Mali, República Centro-Africana e Eritreia. Os dois restantes são o Zimbabué e a Somália. Vê-se obviamente o peso que o “cinturão russo” tem já na definição da política russa.
Estabelecida que está a construção do “cinturão russo” na zona do Sahel africano, convém assinalar quais as principais consequências quer globais quer para Angola.
A primeira consequência global é a reafirmação política da Rússia. O país demonstra que sabe globalizar uma contenda, não a situando apenas na Ucrânia, mas mundializando-a, reunindo um conjunto de apoios que podem parecer fracos individualmente, mas juntos alcançam extrema relevância estratégica, colocando já em causa a influência francesa na região. De momento, a grande derrotada é a França, mas a Rússia pode projectar outras perdas ou ganhos, dependendo da perspectiva, quer estratégicas quer económicas.
Em termos estratégicos é sabido que a zona do Sahel tem uma forte e directa importância estratégica para a Europa em dois âmbitos, no combate ao terrorismo e à migração. Aliás António Costa, primeiro-ministro de Portugal quando o país ocupava a presidência da União Europeia realçou que “O Sahel é uma região estratégica para a União Europeia, tendo em consideração os desafios de segurança e o seu papel no contexto regional mais vasto, incluindo a Líbia, o Golfo da Guiné e a República Centro-Africana” e acrescentou estar a segurança Do Sahel “incontestavelmente ligada à segurança da Europa; é por isso que devemos trabalhar juntos, como iguais, com um objectivo muito claro: alcançar uma paz duradoura e construir juntos uma prosperidade partilhada”.
A partir de agora, a Rússia dispõe de uma válvula de pressão em relação à União Europeia em termos de terrorismo e migração, podendo, na prática aumentar ou diminuir os fluxos migratórios de África para as costas europeias.
Quanto ao terrorismo islâmico, a Rússia tem sido inimiga deste, contudo, eventos recentes tornaram-na aliada de facto do Irão e por vezes, o “inimigo do nosso inimigo é nosso amigo”. É preciso não esquecer que a insurgência islâmica no Afeganistão nos anos 1980s começou por ser financiada pelos Estados Unidos da América, como forma de enfraquecer a União Soviética. Nada impede que o reverso aconteça.
Além disso, este “cinturão” permite uma mais fácil projeção de força, seja política, seja militar, quer em termos formais ou daquilo que se chama “guerra assimétrica”. Abaixo está a República Democrática do Congo, fonte de riquezas imensas que desperta a cobiça mundial. Acima e ao lado da Líbia está o Egipto e o seu canal do Suez. Estes são dois “prémios” que ficam mais próximos a partir do momento em que a Rússia trace uma linha reta de domínio costa a costa em África.
Do ponto de vista económico, embora sendo países em pobreza extrema, muitas vezes, o certo é que em termos de recursos minerais e naturais temo algo a assinalar. Em termos muito resumidos, o Mali tem ouro, o Burkina Faso possui vários metais não ferrosos e industriais, o Níger petróleo e urânio, a República Centro Africana, ouro, e por aí adiante. Há um manancial de recursos para explorar.
Finalmente, convém reflectir qual o papel de Angola face a um “cinturão russo”. Angola foi tradicionalmente um aliado russo, um dos principais em África. Já não é.
O actual Presidente tenta colocar o país como uma potência regional próxima do Ocidente e com boas relações com a China e Rússia, mas tentando resolver os problemas africanos em África. Torna-se evidente que a criação do “cinturão russo” levanta obstáculos de monta a este desejo de Angola. Com uma Rússia forte na intermediação entre o Norte e o Sul de África, o papel de Angola como potência regional fica esvaziado, e tudo se volta a resumir aos embates da Guerra Fria, agora renovada.
Assim, o “cinturão russo” choca directamente com os interesses prospectivos regionais de Angola e com o seu desejo de paz e estabilidade no continente.
E há um segundo aspecto, que é a promoção que João Lourenço tem feito da normalidade constitucional. O Presidente angolano tem condenado todas as alterações não constitucionais em África. O facto é que as alterações promovidas pela Rússia são não constitucionais, assentam em golpes de força promovidos pelos militares.
E, directamente, a estabilidade e segurança nacional angolana ficaria ameaçada se houvesse qualquer tipo de intervenção na República Democrática do Congo que agitasse ainda mais o país do que já está.
Nesta medida, no presente momento, Angola não deverá estar a ver com bons olhos o alargamento do “cinturão russo” no Sahel, apesar das relações cordiais que existem entre os dois países.
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