PALAVRA DO REI JOÃO NÃO VALE UM CHAVO!

Zola Bambi, o advogado da família de Inocêncio de Matos, estudante assassinado numa manifestação em Luanda há dois anos, diz que “não há vontade” de apurar as circunstâncias da morte e responsabilizar os culpados, mas garante que não vai desistir. João Lourenço garantiu, em Novembro de 2020, durante um encontro com a juventude, que o “processo de investigação” do caso “estava em curso e que o mesmo seria esclarecido em breve”.

Zola Bambi, responsável pelos dois processos judiciais interpostos pela família do jovem, de natureza cível e criminal, é também presidente do Observatório para a Coesão Social e Justiça, organização que se dedica à defesa dos direitos humanos, e diz que “não é normal a forma como a justiça está a funcionar”. Por outras palavras, o advogado quer dizer que é normal a forma como a justiça não funciona, sobretudo quando os potenciais criminosos actual às ordens do MPLA.

O processo-crime, sublinhou, em entrevista à agência Lusa, “é o que mais preocupa” e “compromete o sistema de justiça em Angola”.

Para Zola Bambi, há “falta de vontade” das instituições, nomeadamente da Procuradoria-Geral da República (órgão que, como se sabe, é uma sucursal do MPLA), que tem como missão fundamental a salvaguarda dos interesses dos cidadãos e a fiscalização da legalidade, bem como do Serviço de Investigação Criminal (SIC, outra sucursal), que deve levar a cabo a instrução do processo.

“Estas duas instituições nada ou pouco estão a fazer para que haja um andamento normal”, criticou, sublinhando que a morte do jovem “foi causada, como todos sabem, por um excesso das forças de defesa e segurança”.

Inocêncio de Matos morreu em 11 de Novembro de 2020, quando participava numa manifestação e foi atingido por uma bala, apesar de a versão oficial negar o uso de munições reais pela polícia e apontar para um ferimento devido a “objecto contundente”.

Zola Bambi lembrou que os advogados requereram uma segunda autópsia independente ao corpo (por haver dúvidas sobre o primeiro exame, em que não foi permitida a entrada de um fotógrafo) para ter a certeza de que teriam sido elementos da Polícia Nacional a causar a morte.

“Sem entrar em detalhes, havia um orifício no crânio e podemos imaginar por que elemento terá sido causado”, disse, pedindo que o sistema judicial “faça o trabalho como deve ser” para chegar à verdade dos acontecimentos e encontrar os responsáveis.

“O número reduzido dos que participaram dá-nos um círculo de suspeitos. A polícia fez uma investigação, sabe muito bem que, entre estes nomes, está a pessoa que fez este acto. Acreditamos que a polícia sabe. A pergunta é se estão dispostos a entregar a pessoa que cometeu [o crime]”, disse o advogado.

Salientou ainda que em causa não está só o autor material do crime, mas também moral, ou seja, a direcção da polícia que “actuou de forma indevida e desproporcional, desrespeitando o direito constitucional da manifestação quando não havia actos de violência ou perigos para a polícia”.

O advogado apontou também várias vicissitudes judiciais, desde mudanças nos números do processo, que “já esteve em vários sítios”, à atribuição de novos instrutores, para “dificultar ou impedir o acompanhamento do processo”.

“Há falta de vontade que se esclareça a morte”, insistiu, acrescentando que já foram feitas sete reclamações.

“O processo não saiu até agora da fase de instrução preparatória que é a primeira de um processo, dois anos depois, quando já seria altura de estarmos na fase judicial”, indignou-se.

Neste período, foram chamadas algumas testemunhas oculares e familiares, mas “por insistência dos advogados”, disse Zola Bâmbi, realçando a importância de ouvir o corpo clínico que declarou ao canal publico de televisão angolano TPA que o jovem chegou vivo e foi operado, tendo morrido depois desta intervenção, contrariando a versão de outros manifestantes, segundo os quais Inocêncio teve morte imediata.

“É contrário ao que vimos, aos sinais do corpo que encontrámos na morgue, e temos pessoas dispostas a declarar isto”, afirmou o advogado, denunciando que foram feitas “montagens” para simular que o jovem estava vivo.

“Houve uma morte” e é necessário um esclarecimento, reforçou Zola Bambi, acrescentando que “é uma obrigação dos órgãos de justiça esclarecer o acontecimento” e que “está em causa a imagem da justiça” em Angola.

“Se a intenção é arquivar por inércia, a família e nós, que estamos constituídos como assistentes, levaremos o processo até que haja julgamento. É o que espera tanto a família como a sociedade”, frisou.

Apesar de não acreditar no sistema de justiça angolano, “dependente de um partido político e de um regime que não quer a transparência”, Zola Bambi mostra-se confiante de que será feita justiça e cumpridas as leis do país, pedindo que sejam responsabilizados os autores do crime e o Estado angolano, que não protegeu a vida de Inocêncio, e que a família seja indemnizada pela sua perda.

A agência Lusa remeteu questões à Procuradoria-Geral da República sobre as diligências efectuadas e as causas da demora do processo, mas não recebeu (obviamente) qualquer resposta.

No dia 10 de Dezembro de 2021, a família de Inocêncio de Matos criticou o “silêncio misterioso” dos órgãos de justiça sobre o processo, lamentando a “cosmética” concretização dos direitos humanos.

Na altura, 12 meses após a sua morte, o pai do activista, Alfredo Miguel, pediu “encarecidamente a todos os actores que concorrem para a causa da justiça e dignidade humana em Angola e além-fronteiras a ajudarem a família na efectivação da justiça” sobre a morte de Inocêncio de Matos.

“E de modo geral a todos que perderam a vida em circunstâncias iguais, com vista a acudir à triste realidade da sociedade angolana, que muitas vezes é abordada de maneira cosmética por parte das entidades do Estado angolano”, afirmou Alfredo Miguel em conferência de imprensa.

Alfredo Miguel recordou à imprensa que o mundo assinalava o Dia Mundial dos Direitos Humanos e que o Presidente angolano, João Lourenço, garantira em Novembro de 2020, durante um encontro com a juventude, que o “processo de investigação” do caso “estava em curso e que o mesmo seria esclarecido em breve”.

“Porém, 12 meses depois da garantia do senhor Presidente da República, até à data presente, os órgãos de justiça não se pronunciaram sobre o respectivo crime”, apontou.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) de Angola deu a conhecer, na altura, que de acordo com o primeiro exame do cadáver e autópsia a perícia concluiu que a causa da morte de Inocêncio de Matos foi um “traumatismo crânio-encefálico com fractura dos ossos do crânio e lesão do encéfalo, resultante de ofensa corporal com objecto de natureza contundente”.

Testemunham oculares garantem, no entanto, que o jovem activista foi baleado e morreu no local, sendo este também o entendimento dos familiares que culpam a polícia pela morte, como reafirmou Alfredo Miguel.

O pai da vítima afirma que seu filho “indefeso foi cobardemente assassinado enquanto prostrado, diante do forte e desproporcionado arsenal policial, implorando” que lhe “poupassem a vida”.

“Mesmo assim, as forças da Polícia nacional atiraram impiedosamente com metralhadoras de guerra à cabeça do infeliz jovem que se encontrava de joelhos ao chão”, lamentou.

Passado um ano do assassinato, observou, “as autoridades governativas aos distintos níveis, demarcam-se da abordagem sobre a morte de Inocêncio de Matos, enquanto o misterioso silêncio dos órgãos de justiça sobre o processo, com vista ao esclarecimento e responsabilização exemplar dos mentores do premeditado crime, se mantém”.

Para Alfredo Miguel, a sociedade angolana vê-se na “obrigação de pedir licença e compreensão aos que se sentem incomodados pelas legítimas reclamações do povo fragilizado pela miséria, fome, injustiça e violência gratuita imposta por aqueles que têm o dever sagrado de proteger a vida humana”.

O pai de Inocêncio de Matos pediu igualmente aos deputados angolanos para “não perderem a identidade e os legítimos objectivos que os conduziram ao parlamento para a concretização das expectativas dos cidadãos que representam”.

Alfredo Miguel, que já efectuou vigílias em frente à sede da PGR do MPLA, disse ainda que a morte do seu filho provocou “transtornos incontornáveis à família e à sociedade em geral que chora e clama por justiça plena e incondicional”.

“Neste Dia Mundial dos Direitos Humanos julgamos que Angola precisa ainda de fazer muito mais e mais do que isso, existem provas evidentes sobre violações graves dos direitos humanos como é o caso do meu filho e de muitos que continuam sem esclarecimentos”, rematou.

Folha 8 com Lusa

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