O Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) condenou hoje os impedimentos à cobertura jornalística do julgamento do empresário luso-angolano Carlos São Vicente, em Luanda, considerando tratar-se de uma “arbitrariedade e obstrução à liberdade de imprensa”. Ou, parafraseando o presidente do MPLA, é necessário perceber que a liberdade de imprensa é… relativa.
Os jornalistas, afectos a distintos órgãos nacionais e estrangeiros, viram-se impedidos de aceder à sala de audiências do Tribunal da Comarca de Luanda, onde teve início o julgamento do empresário Carlos São Vicente, indiciado dos crimes de peculato e fraude fiscal. Edson Escrivão é o juiz da causa neste julgamento que decorre na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Comarca de Luanda.
O início do julgamento estava marcado para 26 de Janeiro, foi adiado para hoje mas à entrada um oficial de justiça informou os jornalistas de que estes não deveriam captar imagens nem som, mas apenas tomar notas. No entanto, os jornalistas foram impedidos de acompanhar a sessão. Consta que nenhum deles tinha capacidades telepáticas…
“Entendemos que há aqui uma arbitrariedade, é lamentável, é uma obstrução clara à liberdade de imprensa, é de todo condenável, porque nos mesmos termos em que o juiz usa a lei, nós também usamos a lei, porque é a lei que nos autoriza a poder estar presentes nas audiências”, afirmou hoje o secretário-geral do sindicato, Teixeira Cândido, em declarações à imprensa.
Convém, em abono da verdade, relembrar que os jornalistas pretendem usar a lei do país que, contudo, é hierarquicamente inferior à lei dos juízes do MPLA.
O dirigente sindical, que falava hoje no Tribunal da Comarca de Luanda, onde jornalistas foram impedidos de cobrir o início do julgamento de Carlos São Vicente, alegadamente por ordem do juiz, reprovou tal postura, referindo que a matéria “é de interesse público”. É, de facto. Mas será que é do interesse do patrão do juiz.
“Se fosse uma questão da esfera privada do arguido, os jornalistas, obviamente, não teriam dedicado todo o seu esforço. É de todo modo condenável a posição do juiz e todos os argumentos que ele possa apresentar, porque o juiz, tal como uma outra qualquer pessoa, deve fundamentar-se na lei”, argumentou. Mas, corrobore-se, entra a lei do país e a lei do patrão, o juiz…
Para os jornalistas presentes no tribunal, os argumentos do oficial de justiça, que alega orientações do juiz da causa, traduz-se num impedimento, “uma vez que a audiência é pública” tendo considerado “inexplicável” a orientação do juiz.
“Esta é uma situação de todo inexplicável, já não estávamos habituados a ter estas dificuldades da relação com o tribunal, e não nos foi fundamentada a razão específica para o tribunal impedir o nosso trabalho na cobertura deste julgamento que é público”, disse à Lusa Leão Vital, jornalista da TV Zimbo, integrante do grupo que foi “barrado”.
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Sebastião Numa, jornalista da Rádio Despertar, fez parte do grupo que não acedeu à sala do Tribunal da Comarca de Luanda e “condenou” igualmente o impedimento, que no seu entender, “ofende a liberdade de imprensa”.
“Porque viemos aqui para cobrir um acto que é público, como diz a Constituição e demais leis, mas encontramos aqui logo um empecilho por ordem do juiz da causa. Lamentamos o comportamento do juiz e pedimos um esclarecimento”, realçou.
O secretário-geral do SJA, que ao tomar conhecimento do facto, acorreu ao tribunal, referiu também que o juiz, “embora seja o dono da audiência, não tem discricionariedade para determinar quem e quando as pessoas devem entrar”.
O juiz, observou Teixeira Cândido, “não pode, de ‘motu proprio’, ou porque o réu, supostamente, terá pedido para que não possa ser exposto, impedir que a imprensa não possa ter acesso a uma audiência e possa gravar, por exemplo, a acusação e todas as outras peças que não sejam proibidas por lei”.
“E poderíamos gravar sim a acusação, porque não ofende a vida privada ou a reserva da vida privada. Por isso é de todo condenável, o sindicato condena veementemente a posição do juiz”, reafirmou.
“E entendemos nós que devíamos de facto boicotar esta audiência para que eles compreendam que o juiz, assim como o próprio arguido, saem muito mais prejudicados”, frisou.
Teixeira Cândido ainda tentou ultrapassar a situação junto da direcção do tribunal: “Infelizmente o juiz e todas outras pessoas que poderiam permitir esta interacção não se mostraram disponíveis, desse ponto de vista lamentamos”, disse.
Uma nota de protesto do SJA sobre o assunto será remetida ao juiz presidente do Tribunal da Comarca de Luanda e à Associação dos Juízes de Angola, porque, sustentou, “não é a primeira vez que situações do género acontecem”.
“O juiz, de facto nós respeitamos, está no exercício das suas funções, mas ele limita-se ao respeito à lei. A lei estabelece que podemos gravar a audiência com a excepção daquelas peças que possam ofender a reserva da vida privada”, concluiu Teixeira Cândido.
O julgamento de Carlos São Vicente, preso desde Setembro de 2020 sob acusação de peculato, fraude fiscal e branqueamento de capitais, começou hoje na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Comarca de Luanda, mas foi adiado devido à “notificação tardia” ao arguido.
O empresário, casado com Irene Neto, filha do primeiro presidente angolano, António Agostinho Neto, é acusado de vários crimes, entre os quais fraude fiscal, envolvendo valores superiores a mil milhões de euros, peculato e branqueamento de capitais.
Folha 8 com Lusa