Vera Songwe, a Luísa Damião da UNECA

A secretária-executiva da Comissão Económica das Nações Unidas para África (UNECA), Vera Songwe, está imparável na multiplicação dos elogios ao Governo de João Lourenço, considerando que Angola foi o único país até agora que conseguiu reestruturar a dívida privada sem que isso implicasse uma descida do rating. Nem mesmo a vice-presidente do MPLA, Luísa Damião, ou Vera Esperança dos Santos Daves de Sousa, ministra das Finanças, têm pedalada para a acompanhar.

“Angola foi uma espécie de precursor do que o Enquadramento Comum para o tratamento da dívida para além da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) devia ser, porque de certa maneira as autoridades conseguiram negociar com os credores chineses públicos e privados e tiveram longas conversações e resolver a dívida, antes do lançamento do Enquadramento Comum, tiveram sorte e fizeram isso rapidamente, mas ainda nenhum país passou pelo processo do Enquadramento”, disse Vera Songwe.

Em entrevista à Lusa (mais uma, tantas quantas for necessário) à margem da conferência dos ministros das Finanças africanos, que decorre até terça-feira, a responsável confirmou a visão de que a adesão a esta iniciativa lançada pelo G20 para lidar com a dívida insustentável, para lá da DSSI, implica uma descida do rating, mas desvalorizou a questão.

“Não se pode ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo”, disse Vera Songwe, salientando que “até agora houve três países que aderiram ao Enquadramento Comum, ao passo que houve 27 que aderiram à DSSI, permitindo libertar 5 mil milhões de dólares”, cerca de 4,2 mil milhões de euros.

A DSSI, apontou, “não afecta directamente o rating, enquanto o Enquadramento Comum, sim, temos de ser muito claros nisto, porque é uma reestruturação da dívida privada e quando se adere, tem de haver obrigatoriamente um tratamento comparável entre os credores privados e os credores públicos”.

Uma descida no rating não é o fim do mundo, defendeu, por isso “quem precisa de uma reestruturação da dívida tem de lhe chamar isso mesmo e dizê-lo, porque há demasiado estigma” à volta da questão, disse a líder da ONU em África, lembrando que vários países na América Latina, como o Equador e a Argentina, já passaram pelo mesmo.

“Se a dívida é insustentável, é preferível aderirem ao Enquadramento Comum do que terem uma evolução desordenada do problema”, afirmou, salientando que o processo está em curso “porque nenhum país completou o Enquadramento Comum”.

Questionada sobre se a UNECA defende um perdão ou um alívio da dívida, Vera Songwe respondeu: “Um perdão de dívida ou uma reestruturação em países com acesso ao mercado leva a uma descida imediata do rating, mas para os muito, muito pobres, continuamos a defender o perdão, porque por exemplo para o Mali o acesso ao mercado não é uma preocupação, porque não têm oportunidades viáveis para cumprir as suas obrigações financeiras”.

O Fundo Monetário Internacional (FMI), lembrou, “já perdoou a dívida aos 17 países de muito baixo rendimento, ao abrigo da Facilidade de Alívio Rápido”, e por isso o alívio de dívida, ou seja, a suspensão dos pagamentos, deve ser para os países que têm um bom enquadramento macroeconómico.

“Convém lembrar que esta crise não é uma crise de África, não surgiu devido a má gestão; África sofreu porque não tem acesso a uma moeda forte, e enquanto os países desenvolvidos deram 20% do seu Produto Interno Bruto em estímulos à economia, com os Estados Unidos a aprovarem um plano de 1,9 biliões de dólares [1,6 biliões de euros], o Japão com 700 mil milhões de dólares [587 mil milhões de euros], os 54 países de África estão a pedir 100 mil milhões de dólares [84 mil milhões de euros] em termos de acesso mais fácil ao mercado”, disse Vera Songwe.

“Não podemos esperar que África colapse, temos de garantir que África não colapsa porque África é parte da comunidade global”, concluiu.

A DSSI é uma iniciativa lançada pelo G20 em Abril do ano passado que garantia uma moratória sobre os pagamentos da dívida dos países mais endividados aos países mais desenvolvidos e às instituições financeiras multilaterais, com um prazo inicial até Dezembro de 2020, que foi depois prolongado até Junho deste ano, com possibilidade de nova extensão por seis meses.

Esta iniciativa apenas sugeria aos países que procurassem um alívio da dívida junto do sector privado, ao passo que o Enquadramento Comum, aprovado pelo G20 em Novembro, defende que é forçoso que os credores privados sejam abordados, ainda que não diga explicitamente o que acontece caso não haja acordo entre o devedor e o credor.

Este Enquadramento pretende trazer todos os agentes da dívida para o terreno, incluindo os bancos privados e públicos da China, que se tornaram os maiores credores dos governos dos países em desenvolvimento, nomeadamente os africanos.

De acordo com um estudo da UNECA sobre o impacto do Covid-19 na actividade económica nos países da África central, Angola poderá enfrentar uma recessão e 10,9% na actividade económica, resultante de uma quebra de 20% nas receitas petrolíferas, assumindo um preço médio do petróleo de 30 dólares durante 2020, a que se somam uma redução no turismo e nas actividades não petrolíferas.

“A situação na África Central é ainda pior do que no resto do continente porque infelizmente a percepção sobre a evolução económica, bem como a guerra de preços no petróleo, a que se junta uma queda do preço do petróleo de 60 para 30 dólares por barril, está a acontecer num ambiente em que vários países africanos já estão sob apoio do FMI”, disse em Maio de 2020 o director do departamento da UNECA para a África Central, António Pedro.

“Os nossos Estados-membros não terão o dinheiro de que precisam para reagir à pandemia, já que enfrentam um duplo perigo: por um lado são atacados pelo vírus e pelo abrandamento do crescimento económico, e depois não têm dinheiro para responder a um agravamento da situação da pandemia”, acrescentou o responsável.

O relatório “mostra os impactos estimados nos países da África Central em percentagem do Produto Interno Bruto num cenário do petróleo a 30 dólares”, confirmou o responsável por esta região que, na divisão da ONU, engloba Angola, Burundi, Camarões, República Centro-Africana, Chade, República Democrática do Congo, República do Congo, Guiné Equatorial, Gabão, Ruanda e São Tomé e Príncipe.

A UNECA alertou, num relatório sobre o impacto da Covid-19 em África, que o crescimento económico de 3,2% previsto para o continente em 2020 pode reduzir-se para 1,8% devido ao abrandamento previsto na procura dos principais países importadores de matérias-primas e à redução do preço do petróleo.

Na apresentação do relatório sobre o impacto da pandemia no continente africano, a secretária executiva da UNECA, Vera Swonge, disse que o facto de a China estar a ser severamente afectada iria inevitavelmente impactar também o comércio em África.

“África pode perder metade do crescimento do PIB devido a um conjunto de razões, que incluem as perturbações na cadeia de fornecimento global”, disse a responsável, notando que o continente está fortemente ligado à Europa, China e Estados Unidos da América.

O continente, acrescentou, vai precisar de mais de 10 mil milhões de dólares (9,04 mil milhões de euros) em aumentos nos gastos de saúde para conter a propagação do vírus e, por outro lado, para compensar a quebra de receitas que pode levar a uma situação de dívida insustentável.

No relatório, explica-se que “assumindo uma exportação de barris de petróleo em 2020 idêntica em volume à da média entre 2016 e 2018, com o preço médio de 35 dólares, a Covid-19 pode fazer as receitas de exploração caírem para 101 mil milhões de dólares [91,36 mil milhões de euros] este ano”, o que representa uma queda de 65 mil milhões de dólares (58,81 mil milhões de euros).

Entre as recomendações apontadas pela UNECA, os peritos salientam que “os governos africanos devem rever os orçamentos para dar prioridade às medidas que possam mitigar os efeitos negativos esperados do Covid-19 nas suas economias”.

A organização considera(va) ainda que os governos devem “dar incentivos aos importadores de alimentos para comprarem rapidamente quantidades suficientes que possam ser armazenadas, financiar a preparação para o impacto, a prevenção e as medidas curativas, incluindo a parte logística”.

Além disso, apontam os técnicos, os governos africanos devem “aproveitar a crise para melhorar os sistemas de saúde, preparar pacotes de estímulos orçamentais como a garantia de salários àqueles incapazes de trabalhar devido à crise e favorecer o consumo e o investimento e manter os investimentos em infra-estruturas para proteger os empregos”.

Manter o empenho no acordo de livre comércio africano para “construir resiliência continental a longo prazo e gestão de volatilidade”, por exemplo apostando no comércio farmacêutico e de produtos alimentares básicos intra-regionais são outras das recomendações dos peritos da UNECA.

Folha 8 com Lusa

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