Patrão manda, sipaios cumprem

O líder do Movimento do Protetorado Lunda Tchokwe (MPLT), “Zeca Mutchima”, e 25 manifestantes envolvidos em protestos em Cafunfo foram acusados pelo Ministério Público do MPLA (Angola) dos crimes de ultraje ao Estado e seus símbolos e associação de malfeitores, refere o despacho de acusação.

De acordo com o despacho do Ministério Público, Mateus “Zeca Mutchima” está a ser acusado num processo único com outros 25 co-arguidos, tendo em comum os crimes de ultraje ao Estado e aos seus símbolos e associação de malfeitores, enquanto os manifestantes vão responder também pelos crimes de rebelião.

Em causa está o incidente ocorrido no dia 30 de Janeiro deste ano, em Cafunfo, província da Lunda Norte, na sequência de uma tentativa de manifestação por populares, que resultou em dezenas de mortos e feridos, na sequência de confrontos entre manifestantes e a polícia.

A defesa de “Zeca Mutchima” disse que aguarda agora a pronúncia do juiz, para a marcação da data do julgamento.

Segundo Salvador Freire, o processo do seu constituinte foi convolado ao dos restantes co-arguidos, “como se Zeca Mutchima estivesse na província da Lunda Norte, pelo simples facto de ser líder dessa organização”.

“Nós vamos rebater isto, estamos a tentar encontrar recursos financeiros para nos podermos deslocar [para a Lunda Norte] a ver se vamos rebater isso”, referiu.

Salvador Freire salientou que “Zeca Mutchima” continua detido em Luanda, frisando que o seu constituinte “nunca esteve na Lunda Norte”. Tenha estado ou não, se o MPLA diz que ele esteve é porque esteve. Todos sabemos que a verdade dos factos é um dom exclusivo dos dirigentes do MPLA, como ficou sobejamente demonstrado nos massacres de 27 de Maio de 1977, então sob as ordens de Agostinho Neto.

“Nem sequer conhece a Lunda Norte, ele é natural da Lunda Sul, mas saiu de lá há muito tempo, foi formar-se no exterior e nunca esteve na Lunda Norte”, disse.

O despacho refere que os 25 co-arguidos e outros, numa composição de 400 pessoas, pertencentes ao denominado MPLT, e que munidos de tudo quanto existe na mente dos carrascos (armas-de-fogo, do tipo AKM, caçadeiras, flechas, ferros, paus, instrumentos cortantes, engenhos explosivos de fabrico artesanal, forquilhas, fisgas, pequenos machados, catanas e estátuas de superstição – vulgo palhaços) se deslocaram às instalações onde funciona a esquadra policial de Cafunfo, com o objectivo de ocupar a mesma.

O documento realça ainda que eram objectivo dos manifestantes fazer a aposição da bandeira do MPT, tendo os factos ocorrido no dia 30 de Janeiro de 2021, cerca das 4 horas, na localidade de Cafunfo.

Sobre o arguido “Zeca Mutchima”, o despacho realça que no mês de Fevereiro de 2018, o mesmo, nas vestes de presidente do MPLT submeteu uma solicitação à Casa Civil do Presidente da República para realizar manifestações nas províncias do Moxico, Lunda Sul e Lunda Norte.

Em resposta, “Zeca Mutchima” foi orientado a solicitar autorizações aos respectivos governos provinciais e municipais.

“E, neste entretanto, a direcção do Movimento do Protectorado Lunda Tchokwe na localidade do Cuango endereçou um pedido à administração municipal respectiva, para que fosse autorizada a realização da marcha no dia 30 de Janeiro de 2021, pretensão negada por aquela entidade, devido ao estado de Calamidade que o país observa”, refere a acusação.

O Ministério Público na sua acusação sublinha que as forças de defesa e segurança, alertadas sobre a intenção dos membros do MPLT, realizaram trabalhos de sensibilização, para chamar atenção “da perigosidade de tal acto, dado o estado de Calamidade sobre a Covid-19, em vigor no país, e o perigo que tal ato podia provocar para a ordem e segurança públicas, que proíbe ajuntamentos de pessoas”.

De acordo com o documento, a resposta negativa da administração não agradou os membros do MPLT e começaram a “realizar actos com a presença de mais de 20 pessoas, sem uso de máscaras”.

“Contrataram um suposto quimbandeiro da República Democrática do Congo com o fito de prepará-los em magia (feitiçaria) para não serem visíveis aos olhos dos membros dos órgãos de defesa e segurança durante os actos que iriam protagonizar, no dia 30 de Janeiro de 2021”, lê-se na acusação.

“Alheios aos conselhos dos membros dos órgãos de defesa e segurança, num trabalho de rotina dos agentes da autoridade, foram surpreendidos numa residência um número considerável de indivíduos, no bairro Elevação/Cafunfo, e, em consequência, foram apreendidos artefactos que usavam na superstição”, expõe ainda o Ministério Público.

No dia 30, os manifestantes “fiéis à sua natureza”, cerca das 3 horas num grupo de cerca de 400 pessoas, munidos de armas-de-fogo e objectos contundentes, garrafas cheias com gasolina, caudas de animais, se deslocaram à esquadra da polícia e no percurso golpearam o corpo do ofendido Alfredo Domingos Ebo, nas regiões da cabeça, dorsal e quadrante superior interno da região nadegueira direita, tendo sido socorrido ao Hospital da Sociedade Mineira do Cuango. A arma-de-fogo que se encontrava em posse do ofendido, do tipo Galili foi apossada pelos manifestantes, refere a acusação.

As primeiras investigações referiam 300 manifestantes e não 400 porque, presume-se, os elementos da segurança tiveram de se descalçar para contar até 20 e todos juntos só chegaram aos 300. Foram então contratados mais alguns…

No decurso da marcha, os co-arguidos lançaram bombas artesanais e deixaram inconsciente e ferido nas regiões da cabeça, nas duas mãos e queimadura no membro inferior esquerdo um oficial das Forças Armadas Angolanas (FAA), com a patente de tenente-coronel, ao qual foi igualmente retirada uma arma-de-fogo do tipo AKM.

Segundo a acusação, um outro ofendido declarou ter visto um grupo de pessoas, entre as quais duas mulheres nuas, a movimentarem-se em direcção à esquadra, munidos de armas-de-fogo, paus, forquilhas, garrafas contendo gasolina, caudas de animais e uma bandeira do MPLT, tendo feito disparos contra a sua viatura e os projecteis danificado os vidros traseiro e lateral da porta traseira direita.

A acusação realça que “as forças de defesa e segurança reagiram à acção dos co-arguidos, tendo como consequência provocado morte e ferimentos dos intervenientes”.

Salienta ainda que “Zeca Mutchima” e oito co-arguidos declararam ser presidente e membros do MPLT, que pagavam uma quota mensal de 500 kwanzas (0,6 euros), tendo a organização como objectivo “dividir o território angolano em Angola e Lunda Tchokwe”.

“Os co-arguidos sabiam que para realizar manifestação pública é necessária autorização da autoridade competente, mesmo sabendo disso, socorreram-se de armas-de-fogo, bombas de fabrico artesanal, catanas, forquilhas, paus, e a acção dos mesmos provocou como consequências a morte de pessoas, ferimentos dos ofendidos, danos materiais, agiram livre, deliberada e conscientemente”, destaca a acusação.

A versão das autoridades angolanas apontava, na altura, para a existência de seis mortos entre os manifestantes e feridos entre as forças de defesa e segurança, mas estes números são contrariados por dirigentes do MPLT, organizações da sociedade civil (entre as quais a própria Igreja Católica) , entidades internacionais que apontam pra números a rondar 100 mortos.

Comandante da Polícia explicou a quadratura de círculo

Recorde-se, para bem do anedotário nacional e internacional (na vertente dos criminosos), que o Comandante-Geral da Polícia (do MPLA), Paulo de Almeida, defendeu o uso de “meios desproporcionais” para responder efectivamente contra ameaças ao Estado. E assim sendo, disse Paulo de Almeida, a resposta da polícia no caso de Cafunfo, bem como nos massacres de 27 de Maio de 1977, foi em legítima defesa.

O comandante-geral da Polícia Nacional afirma (como aliás fez o seu primeiro presidente, Agostinho Neto, ao manda massacrar milhares de angolanos em 27 de Maio de 1977), que na defesa da soberania de um Estado não pode haver proporcionalidade, como defendem as… pessoas.

“Isso é muito bom na teoria jurídica, nós aprendemos isso no Direito. O Estado não tem proporcionalidade, você quando está a atacar a unidade, o Estado, o símbolo, está a atacar o povo“, disse Paulo de Almeida, numa conferência de imprensa destinada a supostamente esclarecer os incidentes na região do Cafunfo, onde o MPLA mostrou mais uma vez – como já fizera Agostinho Neto em 1977 – que não está para perder tempo com julgamentos, razão pela qual mata primeiro e interroga depois.

Paulo de Almeida avisou que “aqueles que tentarem invadir as esquadras ou qualquer outra instituição para tomada de poder, vão ter resposta pronta, eficiente e desproporcional da Polícia Nacional” do MPLA. Por alguma razão a Polícia é tão forte com os fracos mas bate com as patas no mataco a fugir velozmente quando o adversário é forte.

“Você está a atacar o Estado angolano (leia-se MPLA) com faca, ele responde-te com pistola, se você estiver a atacar com pistola ele responde com AKM, se você estiver a atacar com AKM, ele responde com bazuca, se você estiver a atacar com bazuca, ele responde com míssil, seja terra-terra, terra-mar ou ainda que for um intercontinental, vai dar a volta depois vai atacar”, referiu com o brilhantismo de um gorila anão (sem ofensa para este primata) o Comandante Paulo de Almeida.

Compreende-se que os Presidentes, sejam o do MPLA ou o da Republica, tenham dificuldades em encontrar alguém com o mesmo nível de Paulo de Almeida para pôr a comandar a sua polícia. Estamos, contudo, em crer que qualquer descendente do Nkan Daniel conseguiria falar do míssil “intercontinental que vai dar a volta depois vai atacar”.

O comandante-geral da Polícia Nacional rejeitou que houvesse conflito com o Movimento do Protectorado Português Lunda Tchokwe, que luta pela autonomia da região, afirmando que conflito só existe “com alguma coisa legalmente existente”.

“O que aconteceu foram elementos que foram atacar a nossa unidade, às quatro horas da manhã. Não foram fazer uma participação de uma ocorrência, não foram a um banco de urgência, que são as unidades que têm piquete para atendimento ao público. Foram com catanas, armas, meios contundentes, feiticeiros, para atacar a unidade“, disse Paulo de Almeida. Isto, é claro, sem referir os ataques dos catuituís que estavam nas mangueiras próximas e que foram avisados que Paulo de Almeida iria disparar mísseis intercontinentais, os tais que dão a volta (ao bilhar grande) e depois voltam a atacar…

“Eles não foram lá com lenços brancos, ninguém aqui perguntou como é que estão os nossos feridos, o oficial da polícia que apanhou machadada e catanada (…) o oficial das FAA que lhe deram catanadas, queimaram-lhe, ninguém pergunta, não são pessoas”?, questionou.

Por isso, se justificou o fuzilamento já que, segundo Paulo de Almeida, a acção da polícia foi de legítima defesa e “foi assim que houve essas mortes”. Registe-se que, apesar do seu brilhantismo oratório (tipo míssil intercontinental), o Comandante não esclareceu que antes de serem assassinados os angolanos estavam… vivos.

O comandante-geral da Polícia Nacional disse que pelo lado das autoridades não estava a decorrer nenhum inquérito, apenas o processo-crime que foi aberto. Bem visto. Se, até prova em contrário (que só o MPLA pode determinar) todos somos culpados, não há necessidade de inquéritos. Isso só acontece em estados ditatoriais. Nas democracias e estados de Direito que são referência para o MPLA, os inquéritos não existem. Vejam-se os casos da Coreia do Norte e da Guiné Equatorial.

“Vou inquirir o quê? Eu não fui lá [Cafunfo] para fazer inquérito, fui lá para constatar a situação que ocorreu. Há um processo-crime que está a correr os seus trâmites legais, é aí e ponto final, não há inquérito. Se algumas organizações querem fazer isso já é um outro assunto, connosco não há inquérito, fique bem claro”, afirmou Paulo de Almeida. Eventualmente melhor do que Paulo de Almeida para chefiar a Polícia só mesmo uma reencarnação de Idi Amin Dada.

Paulo de Almeida em 2015

Recorde-se que o então Comissário Chefe da Polícia Nacional, Paulo de Almeida, dizia em Dezembro de 2015 que as últimas manifestações convocadas pelos partidos da Oposição tinham como objectivos a tomada do poder, um golpe de Estado, portanto, motivo pelo qual as forças de segurança as impediram. Nessa altura foi “capturado”, tal como agora na Lunda, um vasto arsenal bélico, com destaque para umas centenas de… cartazes contra o regime.

A Polícia Nacional afirma, reafirma, continua a afirmar ter provas mais do que cabais que provam que esses meliantes (hoje já são terroristas) pretendiam mesmo derrubar o regime. Ontem eram uns, hoje são outros, amanhã seremos todos nós.

Entrevistado pela Rádio Ecclésia sobre o balanço das actividades desenvolvidas pela Policia Nacional, eis que o então seu Segundo Comandante Geral sacou da pistola, perdão, da cartola, a mais bombástica revelação:

“Temos provas de que as orientações eram de um grupo chegar ao Palácio do Governo Provincial, outro grupo saía do Baleizão para chegar ao Palácio Presidencial. As provas recolhidas sustentam a tese de que o objectivo da última manifestação era o assalto ao poder”, garantiu na altura (na altura ainda não estavam disponíveis os mísseis intercontinentais) Paulo de Almeida.

A revelação foi de tal modo estrondosa que, mesmo tendo passado muitos dias sobre essa tentativa, Europa e EUA, para além da Coreia do Norte, terão aconselhado o Presidente José Eduardo dos Santos a, imediatamente, fechar a Assembleia Nacional, prender (antes que eles se exilem) os dirigentes golpistas, instaurar um regime de excepção, com suspensão de todos os direitos civis, cancelamento de qualquer calendário eleitoral e imposição do estado de sítio com a necessária lei marcial.

Desconhece-se a razão pela qual, perante as declarações do Segundo Comandante da Polícia Nacional, Eduardo dos Santos não avançou com estas regras basilares de reacção à tentativa de golpe de Estado. Há quem diga, sem fundamento, que muitas delas já faziam parte do dia-a-dia do regime, sendo por isso desnecessárias.

Paulo de Almeida disse que “a lei permite que os cidadãos ou associações cívicas se manifestem. Os polícias não têm nada que impedir. Mas também a lei diz que essas manifestações têm regras, não podem ser próximas de locais de soberania, não podem ser manifestações que perturbem a ordem e a tranquilidade pública, violentas, que criam instabilidade e ameaçam o pacato cidadão que não tem nada a ver com a confusão”. E acrescentou, para que não restem dúvidas quanto à tentativa de tomar o poder pela força, que “as manifestações não podem ser agressivas, não podem ser desordeiras e nós só actuamos quando elas desrespeitam essas situações”.

Então ficamos todos a saber que a presença de mais de dois cidadãos junto aos locais de soberania é um indício de golpe, que se não forem vestidos com as cores do MPLA e dando vivas ao Presidente os manifestantes serão considerados agressivos, que se andarem a colar cartazes entram na categoria, potencialmente golpista, dos desordeiros.

Paulo de Almeida sublinhou também que a Polícia Nacional sabe quais são as intenções dos manifestantes. E sabe com certeza. Se até consegue saber o que os cidadãos pensam… E então no que pensavam esses golpistas? O Comandante responde: “O público pode não saber isso, mas nós sabemos, então agimos em conformidade. Eu sei que isso não vai agradar às pessoas mas a verdade é esta. Nós estamos aqui para garantir a segurança de todos”.

De todos é como quem diz. De todos os bons, os do MPLA, queria dizer Paulo Almeida. Os outros, chamem-se Manuel de Carvalho Ganga, Cassule, Kamulingue ou Sílvio Dala, não contam como cidadãos e, sempre que possível, devem entrar a cadeia alimentar dos jacarés.

Folha 8 com Lusa

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