“Operação Caranguejo”. É preciso morder a pata…

Quatro anos depois do famoso slogan “corrigir o que está mal”, as paredes da Casa de Segurança da Presidência da República foram sacudidas pela pandemia da “Operação Caranguejo” que culminou na detenção do Major Pedro Lussaty e a apreensão de milhões de dólares, euros, kwanzas, carros de luxo e outros bens. O caso acabou por trazer à tona a fragilidade da luta contra a corrupção em Angola, marcada pelo icebergue de esquemas fraudulentos.

Por José Marcos Mavungo (*)

Mal o Major Pedro Lussaty, da Casa de Segurança do Presidente da República foi detido no Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda, a notícia agitou o país, tendo relançado o debate sobre várias questões da actualidade, entre as quais a rotura do sistema de fiscalização nacional, a segurança aeroportuária do país e a delicada questão de mudanças em Angola. Toda a gente dizia tratar-se de um «esquema fraudulento». Consta que, no ano passado, vários oficiais pertencentes a este esquema foram aprisionados e aguardam por julgamento.

Nesta segunda-feira, 31 de Maio, a TPA exibiu uma série de quatro reportagens de investigação intituladas “O Banquete”, que mostrou ao pormenor toda a “Operação Caranguejo”. O trabalho de investigação do jornalista Cabingano Manuel apresenta relatos de esquemas fraudulentos e enriquecimento ilícito de Pedro Lussaty. Os números são surpreendentes: o arguido detinha na sua residência 19 malas com milhões de dólares, euros e ainda 21 caixas seladas com mais de meio bilião de kwanzas. Além disso, o Serviço de Informação e Segurança do Estado (SINSE) e o Serviço de Investigação Criminal (SIC) encontraram na residência de Pedro Lussaty várias marcas de automóveis na sua residência, mais de 30 carros, nomeadamente, Lexus, Volvo, BMW, Land Cruiser VX, Grand Cherokee, Mini Cooper, Mercedes-Benz, Nissan Patrol etc..

Foi preciso a detenção do major Pedro Lussaty, na segunda-feira, 17 de Maio de 2021, para uma fonte da Casa de Segurança da Presidência da República revelar à VoA que a operação integra “um esquema antigo em que estão envolvidos muitas altas patentes” das Forças Armadas Angolanas (FAA). Apesar de todas as leis e discursos de mudança e de perdão em Angola, quase sempre há algo que as contrarie, porque os “poderosos”, mais parvos do que Ícaro o fora, alteram as regras após o jogo ter começado.

A «malha corrupta e corruptora», como dirá o Padre Jacinto Pio Wacussanga, acabou assim por revelar a fragilidade das mudanças em curso, desde Setembro de 2017. Aparentemente, estamos em face a uma associação criminosa que funcionava a escassos metros da residência do Chefe de Estado. Mas, a grande questão colocada pela reportagem da TPA: «De que forma é que as caixas com selo do BNA foram parar nos apartamentos do Major Pedro Lussaty?».

Se por um lado, Pedro Lussaty podia recorrer ao saco azul da Presidência da Presidência, com o qual se fazem diversos pagamentos sem necessidade de justificativos, para colocar o dinheiro fora do sistema bancário, a verdade é que a classe política dominante não parece estar preocupada com a transparência, legalidade e eficácia. Também, muito dinheiro desviado passa pelos aeroportos do país. A este nível, pode-se falar de uma teia, estruturado em «ghetto despótico económico», um poderoso grupo fechado a que só têm acesso os magnatas do regime, envolvendo altas patentes militares e magnatas do país.

O processo dos marimbondos, que, com João Lourenço, assume agora a designação de Caranguejo é afinal um «icebergue», do qual apenas uma pequena parte emerge da superfície da água. A perversão do sistema herdado de José Eduardo dos Santos, não funcionava apenas a escassos metros da residência do Chefe de Estado; ele é sistémico, atinge todas as estruturas de governação do país.

Fiscalizar a legalidade e a eficácia dos gastos públicos e julgar infracções financeiras das altas patentes ligadas à estrutura de controlo da Casa de Segurança da Presidência da República é algo que deixa João Lourenço com os cabelos em pé, sobretudo por tratar-se do actual momento conturbado pelas eleições autárquicas que se avizinham. João Lourenço já “despediu” seis oficiais generais da Casa de Segurança do Presidente da República; e exigiu do general Francisco Furtado, novo Ministro do Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, “mudanças radicais” no cadastro de todos os órgãos de Defesa e Segurança Nacional.

O desvio de milhões no processo “Caranguejo” devia ter séries consequências políticas no “dito actual processo de mudanças”. Mas parece que João Lourenço não está ainda decidido a sepultar, mais uma vez, o antigo regime herdado de José Eduardo dos Santos. Assim como o seu predecessor, João Lourenço tem vindo a consolidar o seu poder, através de um sistema paralelo, no qual as instituições de importância sistémica como as Forças Armadas, a Polícia Nacional e os órgãos de segurança do estado funcionam em regime de excepção, como instituições informais acima da Lei e escapando em muitos aspectos ao Controlo do Executivo e do Tribunal de Contas.

Assim, mesmo se a Lei é clara (e.g. a Lei de Reunião e das Manifestações) a administração formal (Executivo, PGR, Tribunais de Comarca, Tribunal de Contas) emagrece, deixa o que não pode gerir e que não é da sua competência, não se enreda em emaranhadas teias de interesses ligados às instituições de segurança do estado – sobretudo quando se trata de ordens superiores ou de questões de saco azul da Presidência -, que não passam de burocracias ensebadas de odres corruptas, enriquecendo os muitos oportunistas, amigos de estimação e familiares de ocasião que deambulam ou comem na manjedoura das escadas do poder.

É assim que o Estado angolano ficou preso de tanto parasitismo que come a sociedade, sem que esta consiga mais alimento para tanto vício instituído.

Para travar a corrupção em Angola e evitar as consequências nefastas de esquemas fraudulentos e enriquecimento, que estão a revelar-se trágicas na vida das populações, é urgente a implementação de reformas coerentes e consistentes, animadas por consciências lúcidas, e visado uma ruptura radical com a governação de José Eduardo dos Santos. Ser ou não ser, eis a questão (To be, or not to be: that is the question), dizia William Shakespeare.

Parece ser uma opção difícil de ser encarada, por que, sem dúvida, é inevitável que assim seja. Jamais o país se viu confrontado com tanta crise – miséria, fome, doenças, corrupção, injustiças, crimes políticos, abusos de poder, tensões sociais e políticas. Significa que se deve questionar o sistema da governação do país, abordar os actuais dilemas e conflitos latentes (entre os quais «a repartição dos recursos», «a criminalização das manifestações» e «a questão de Cabinda»), o sistema de fiscalização dos actuais órgãos da governação, o papel dos órgãos de defesa e segurança no funcionamento da democracia e no desenvolvimento, do ponto de vista político-jurídico, social, económico e cultural, o que permitiria aprofundar e garantir uma paz duradoira e um desenvolvimento sustentável.

Há quase quatro anos que se fala do famoso slogan “corrigir o está mal, e melhorar o que está bem”; mas a falta de agilidade e de querer político para resolver os problemas do povo, como consequência de uma pandemia que, desde os anos 60, rebentou os alicerces da justiça social e fraternidade do país, não tem conduzido ao seu desbloqueamento.

Observe-se, quando um lobo se desloca cuidadosamente à volta de algum edifício cheio de víveres e acidentalmente tropeça, originando assim um grande ruído, morde a pata afim de aprender a evitar um erro semelhante. É, pois, urgente que, neste momento, se morda na pata.

Se nada for feito, a contestação do sistema, as manifestações continuarão a aumentar; porque as debilidades institucionais, evidenciadas por um elevado índice de corrupção e de injustiças, acabarão por ter um impacto determinante na estabilidade do país. E, ao que tudo indica, o impacto será desastroso.

Mas não tem de ser assim. Angola dispõem de potencialidades humanas e naturais para mudar o rumo. Além disso, depois de tantas guerras e fracassos nestas últimas seis décadas, das compulsões do que se aprendeu nesta experiência permitem ao angolano acreditar que será capaz de inventar instituições estáveis e fortes, capazes de resistir à paixões individualistas.

(*) Activista dos Direitos Humanos

Nota. Todos os artigos de opinião responsabilizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.

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