Em 2006, o regime angolano decidiu (sem o dizer publicamente) que os cabindas já não podiam exercer funções jurisdicionais no seu território. Nesta senda, foram transferidos os três juízes que estavam colocados no Tribunal Provincial de Cabinda: dois por serem de Cabinda, e não poderem continuar a exercer as suas funções naquela província; e a terceira, juíza natural de Luanda e filha legítima do regime, porque há muito reclamava a sua transferência, com o fundamento de que lhe eram confiados os processos mais polémicos e controversos.
Por Franck Raskal
Em substituição dos juízes então transferidos de Cabinda, foram lá colocados outros três juízes vindos da justiça militar: a lei angolana permite a passagem de magistrados dos tribunais militares para os de jurisdição comum. O único facto estranho então registado com a conversão de tais juízes (de militares para civis) foi o insólito caso de todos eles terem sido requisitados expressamente pelo poder político e terem sido colocados no mesmo tribunal, por razões exclusivamente políticas.
À semelhança dos juízes, os procuradores da República receberam também um tratamento semelhante: a direcção da PGR – Procuradoria-Geral da República naquela parcela do território angolano foi confiada a um procurador militar, passado, na ocasião, para a vida civil.
De então para cá, muita água passou debaixo da ponte da justiça em Cabinda: do Tribunal Provincial de Cabinda (então secundado pelo Tribunal Municipal de Buco-Zau), passou-se para os Tribunais da Comarca de Cabinda e de Buco-Zau e da Sala de Competência Genérica de Belize, adstrita a este último tribunal; por outro lado, os juízes de Cabinda voltaram a trabalhar em Cabinda, e podem mesmo presidir aos referidos tribunais.
Em contrapartida, a PGR continua a ser dirigida por um sub-procurador-geral da República angolano de gema. Consta mesmo que, há cerca de dois anos, para substituir o sub-procurador geral da República que lá estava em funções e que devia partir, o Procurador-Geral da República solicitou que lhe propusessem um magistrado que tivesse o perfil e a categoria exigidos e não fosse de Cabinda.
Por outro lado, a gestão dos magistrados judiciais transitou do Ministério da Justiça para o Conselho Superior da Magistratura Judicial. E, nos últimos anos, de três juízes que tinha em 2006, Cabinda chegou a ter cerca de quinze! Mas, muitos desses juízes, sobretudo a partir de 2017/2018, apenas ficavam cerca de doze meses naquele Tribunal (um pouco mais ou um pouco menos, conforme as circunstâncias e as pessoas concreta e criteriosamente consideradas).
E, no curto período de tempo em que exerciam a judicatura em Cabinda, faziam frequentes e (por vezes) longas deslocações para longe do seu posto de trabalho (a Luanda ou à sua província de origem ou de residência habitual), sobrecarregando os colegas que permaneciam em funções e tornando ainda mais aleatória e imprevisível a conclusão de muitos processos que se vão arrastando penosamente, passando de um juiz para outro, e inviabilizando, dificultando ou adiando indefinidamente a administração da justiça!
Compreende-se facilmente que essas colocações eram provisórias e transitórias (contrariamente ao disposto nas leis) e só se destinavam a dar tempo ao amadurecimento do esquema montado ou à confirmação da vaga esperada ou prometida.
No início desta segunda quinzena de Setembro, a prática repetiu-se, mas de maneira mais ousada, imprevista e escandalosa. Duma assentada, foram transferidos (para fora de Cabinda) cinco juízes, num momento em que se registava já uma grande falta deles! E essa insólita medida reduz os magistrados judiciais a três (como se o tempo recuasse a 2006)!
A esses três juízes caberá assegurar a administração da justiça em todo o território e permitir o funcionamento de dois Tribunais de Comarca e de uma Sala de Competência Genérica! A situação é tão grave e delicada que não podem sequer constituir o tribunal colectivo exigido pela justiça criminal!
É claro que a situação tem merecido as análises mais severas e mais jocosas e as críticas mais duras que se possa imaginar.
Para alguns, é a prova mais evidente e cabal duma gestão caótica, incompetente e subjectiva dos magistrados, feita ao sabor dos interesses de grupos dominantes e de esquemas que priorizam o interesse de indivíduos ou de grupos em detrimento do interesse e do bem comum. Outros invectivam uma postura irresponsável e indigna, violadora dos direitos dos cidadãos, ao privá-los dum serviço vital que lhes é devido, lembrando a célebre expressão do Dr. Txipilica, então Ministro da Justiça, de que, antes de mais, o juiz deve ter juízo; e o comportamento denunciado parece ser de juízes sem juízo!
Finalmente, há aqueles que dizem, pura e simplesmente, que o regime já não tem soluções, e que não consegue exercer as competências da soberania que se arrogou em Cabinda! Não está em condições de assegurar e garantir a administração da justiça! Está, indirecta e implicitamente, a incitar o recurso à justiça privada! Então, para evitar males maiores, devem ser notificadas as Nações Unidas e a União Africana de que Angola já não está em condições (como, aliás, nunca esteve) de administrar Cabinda: que devolva o território aos seus filhos, aos seus dignos e legítimos representantes.
Aliás, se as forças de defesa e segurança (espalhadas massiva e intensamente por todo o território) não conseguem mais garantir a protecção e a segurança do seu Chefe, que teve de anular uma viagem anunciada e já em execução (com o protocolo, a logística e a segurança já presentes no território), e agora a justiça se revela incapaz de fazer funcionar os tribunais e de prestar aos cidadãos o serviço de que necessitam, é caso para Angola retirar as suas forças militares, remover a sua administração e entregar o território, sem mais delongas!
Na verdade, 46 anos depois (da ocupação injusta e ilegal, mas apoiada pela comunidade internacional), tornou-se evidente que o regime de Angola está a capitular!