Dois anos a irreconciliar a reconciliação

Angola é hoje um país onde os mandões do regime não se inibem de protagonizar atropelos às liberdades e aos direitos fundamentais quando sentem os seus interesses em perigo. É preocupante o incremento de actos de barbárie contra pacatos cidadãos. O regime continua a sonhar uma estátua com cabeça de ouro e pés de barro.

Por José Marcos Mavungo (*)

Este mês de Abril leva 2 anos desde que foi criada a Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas de Conflitos Políticos (CIVICOP) pelo Presidente João Lourenço.

Na altura da criação da CIVICOP, quando foi emitida a nota da Casa Civil do Presidente da República de Angola, acreditou-se que tinha chegado a hora de obter resposta do Estado à situação dramática das vítimas dos conflitos políticos em Angola. A opinião pública aguardava um diálogo nacional e interessantes decisões na forma como o regime iria interagir com a oposição e a sociedade civil sobre esta delicada questão, que, desde os anos 70, tem vindo a suscitar debates sobre a necessidade de indagar o processo de vitimização, honrar a memória das vítimas e sarar as feridas das mesmas.

Porém, o MPLA, partido mais representado no parlamento angolano, com 150 lugares dos 220 lugares dos deputados durante as eleições (?) gerais de 23 de Agosto de 2017, continuou a apresentar propostas que evitam questionar o seu passivo nestes últimos 45 anos. Não é, assim, de espantar que as atividades da CIVICOP nestes últimos dois anos tivessem sido baseadas não em princípios de consertar o que está errado nestes últimos 45 anos na vida sociopolítica e institucional, em especial em termos relações entre os agentes do Estado e os outros actores sociais/cidadãos, mas em possibilidades efectivas de manutenção do “status quo”.

E, por via disso, a pouca discussão que os membros da CIVICOP tiveram sobre o processo de reconciliação concentrou-se nas questões relacionadas com formalidades administrativas e políticas, como emissão de certidão de óbito e construção de um memorial, deixando à deriva as questões submetidas pela “Plataforma 27 de Maio” que se relacionam com a verdade histórica, como forma de curar as feridas das vítimas, e a adoção de princípios e mecanismos de justiça transicional, definidos pela União Africana.

Já é conhecido de todos que, quando o regime coloca um pote reluzente de diamantes ao fundo do túnel, semeia o caminho até ele com minas. Toda a sua estratégia política prescindiu sempre do diálogo construtivo com a oposição, e nesta negação se encontra a raiz dos erros que cometeram ao longo destes 45 anos de governação do MPLA em Angola.

Dois anos após a criação da CIVICOP, assinalados neste 26 de Abril, sem vontade manifesta de buscar consensos tanto da oposição como da sociedade civil, o foco reconciliatório de João Lourenço está ficando cada vez mais para trás, com o incremento de métodos repressivos e atos de barbárie exercidos sobre pacatos cidadãos no exercício dos seus direitos de cidadania. As declarações de agendas de consenso sempre prometeram, mas… debalde.

Eis que, agora, acreditar numa Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas de Conflitos Políticos em Angola, é ser forçado a dar um salto no vazio. Enquanto o regime vai anunciando mais propostas de mudanças, entre as quais a revisão pontual da Constituição, o pessimismo e a incerteza dominam a opinião pública nacional e internacional – tanto é o cepticismo que, no dia 7 de Março de 2021, a “Plataforma 27 de Maio” decidiu suspender a sua participação nos trabalhos da CIVICOP.

Em toda a parte, sente-se que o regime vai voltando aos poucos ao clima de intolerância política dos anos 60 e 70, que culminou com as peripécias do 27 de Maio de 1977, parecendo não ter aprendido com tantas guerras e fracassos destas últimas seis décadas. Longe de se cumprir o que está estipulado na lei, a lógica das balas substitui o diálogo construtivo; e a repressão tornou-se a única alternativa de conservar o poder de Estado.

O clima de repressão verifica-se, sobretudo, desde a entrada em vigor do Estado de Emergência, na sequência das declarações musculadas do Ministro do Interior, Eugénio Laborinho, na sexta-feira, dia 3 de Abril de 2020, que desencadearam uma onda de detenções em massa dos angolanos, deixando as populações em situação de desespero. Nestes últimos dois anos, chegam-nos todos os dias ecos do uso desproporcional da força e o recurso à violência gratuita por parte da Polícia Nacional e dos militares, seja para fazer cumprir o Decreto Legislativo Presidencial sobre o “Estado de Emergência, seja para impedir uma manifestação, cujos contornos constituem atentado contra a ética e a deontologia dos agentes da ordem pública e das Forças Armadas Angolanas (FAA).

Além disso, a relação explosiva da classe política dominante com os autores sociais nestes últimos dois anos alimenta uma explosão sociopolítica no cenário institucional nacional. Como nos tempos de Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos, João Lourenço faz tudo para ofuscar os espíritos críticos; e está tão fechado à crítica que a vida da oposição é atribulada e oprimida.

Mais grave: O atual clima de repressão é idealizado por políticos que tiveram familiares presos e perseguidos pelo fascismo da PIDE-DGS e eles próprios manifestavam uma vontade patética de modificar esta condição alienante e de orientá-la em direcção a um país cuja razão de ser consiste em não reproduzir as leis e costumes da colonização donde partiu a luta de libertação.

A visão política do MPLA não consegue adequar-se aos desafios de hoje. Motivo sempre presente na sua estratégia política é a manutenção de uma ideologia que, ao deificar a conservação do poder e exaltar o pragmatismo partidocrático, esquece um princípio essencial humano herdado do cristianismo: o respeito pelo homem e pela sua dignidade.

O partido de João Lourenço continua a pensar numa oligarquia imortal do MPLA que, habitando o mundo da economia global de luxo, se fecha no poder e nos activos do estado e usa a soberania nacional sobre ambos para reprimir e exibir o seu poder na cena mundial.

Assim, ao fim de mais de quatro décadas consagradas a oprimir e a arruinar o país, o regime «en place», por não ter feito senão isso, mumificou-se terrivelmente, e adquiriu tiques regressivos de que dificilmente se livrará, o que tem impedido dar passos firmes rumo a reconciliação nacional que traria a verdadeira paz entre os autores sociais na ordem e na justiça.

A respeito desta nova Angola onde os cidadãos esperariam descobrir as coordenadas de uma sociedade melhor, Agostinho Neto escreverá a “Sagrada Esperança”, obra de um sujeito poético que parece bastante comprometido com a humanidade das acções e dos pensamentos. O autor da “Sagrada Esperança” chegou a apresentar-se como aquele “por quem se espera”, indicando que será dele a responsabilidade de resolver o problema colonial.

Porém, este salto qualitativo não se verificou na vida dos angolanos, e, em especial, naquela do povo de Cabinda, cuja causa se inscreve no direito dos povos a dispor-se de si mesmos. O desrespeito, e até a crueldade, dos detentores do poder em relação aos que não têm o poder, sem qualquer consideração pela justiça e dignidade humana é a maior traição ao projecto da independência, que levaria à “grande fraternidade” em Angola.

Infelizmente não podemos atribuir a tão vil condição actual a um descontrolo da liderança angolana. É reveladora de atitudes camaleónicas e de vicissitudes históricas, próprias a dirigentes preocupados em jogar as suas cartadas pessoais e em fazer de Angola propriedade de um poderoso grupo fechado num poder que controla a administração, a justiça e todo o dinheiro do país.

Aliás, nestes últimos 45 anos, ouviu-se frequentemente: “Este país tem dono”.

Perante a indignação da opinião pública nacional e internacional, na sequência de vários casos de repressão brutal das manifestações de rua, tem vindo o discurso oficial de que a obrigatoriedade supunha prender criminosos em várias partes do país, em especial em Luanda, em Cabinda, no Uíge e nas Lundas: é frequente ouvir de que houve a urgência de travar uma «manifestação» que «ameaça a segurança de Estado» ou «viola o decreto presidencial que impõe limites à aglomeração de pessoas e outras restrições», relativas às novas regras definidas para evitar a propagação da pandemia da Covid-19.

No caso de Cabinda, a relação explosiva do regime com as populações autóctones, em especial os activistas dos direitos humanos, tem tido muito a se pensar. Que sentido tem o lado obscuro da colonialidade na governação deste território, cuja vida das populações continua a ser marcada pela fome, doença, pobreza abjeta, prisões arbitrárias, julgamentos injustos, restrições às liberdades e aos direitos civis e políticos, violências e castigos extremamente cruéis? – é a questão que mais uma vez tem sido intrigante ao longo destes três anos sob a liderança de João Lourenço.

O processo de reconciliação está encravado, clamando por iniciativas coerentes. Enquanto não houver encontros e discussões abertas sobre as questões de fundo, que assolam o país, o regime continuará a organizar almoços sem convidados dignos pelo simples facto de os mesmos estarem envenenados com “ódio, vingança e arrogância”, como foi o almoço organizado pelo Presidente da República no dia 2 de Abril de 2021, no Palácio da Cidade Alta, em Luanda.

Todos os governantes têm direito a opções na governação do país. No entanto, quando a vertente governativa em estado de direito democrático já deu provas de mágoa por 45 anos de intolerância e fanatismo partidarista, o chefe de Governo não deveria continuar a tomar partido ao permitir assassinatos de pacatos cidadãos, diabolização da oposição, detenções arbitrárias e criminalização de manifestações, que só desonram a imagem e as instituições democráticas e da administração da justiça do país.

Angola está a viver momentos particularmente dramáticos, o povo remetido a uma infeliz situação de indigência, doença e opressão. E a metáfora fatal da hegemonia duradoira, que significa conservar as instituições herdadas de José Eduardo dos Santos, tem obscurecido completamente a ideia real de mudanças/reformas, que significa deixar para trás a maldade e resolver os problemas do povo criados pela governação anterior.

Se as gentes ensandecidas de hoje viram o bico ao prego e pensam de uma vez por todas que a proclamação da independência foi (talvez) a maior conquista de 11 de Novembro de 1975, difícil é acreditar numa independência marcada por abuso de poder, roubo do erário público e com órgãos de administração da justiça submetidos a instintos políticos e militares.

Diante desta situação, a sociedade civil começa a deixar de ser mansa e já percebeu que, “os angolanos não vão ficar todos bem” – vão ficar bem os de sempre -; pois continua a fragilidade das superestruturas político-jurídicas e económicas herdadas de José Eduardo dos Santos e o peçonhento vírus da corrupção é ainda um grande desafio.

Começa a ser tempo de dizer a João Lourenço que deve operar mudanças profundas que possam pacificar os espíritos, ou suscitar a confiança dos cidadãos nos poderes instituídos; que a insatisfação popular e as tensões sociais aqui e acolá, é algo que precisa de ser resolvido, antes que virem um problema ainda maior.

Por isso, João Lourenço não pode continuar a erguer um Estado inerte e estranho perante as exigências de paz entre os actores sociais no diálogo, na ordem e na justiça. Pensando no rasto do sofrimento e sangue derramado nestes últimos 45 anos clamando por uma governação fundada na fraternidade e liberdade humanas, só uma lógica insensata continuaria a sonhar com uma estátua gigante com cabeça de ouro e pés de barro.

(*) Activista dos Direito Humanos

Nota. Todos os artigos de opinião responsabilizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.

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