A imperiosa busca da verdade histórica

Os homens podem e desaparecem dada a lei natural da vida, mas existem aqueles que mantêm viva a sua chama pela força e convicção das ideias, como Nito Alves. E foi dentro deste espírito que um punhado de persistentes sobreviventes, no 24.07.21, no Auditório da LAASP, visando a manutenção da memória de todos quantos, no longínquo 27 de Maio de 1977, foram barbaramente encarcerados ou assassinados, decidiu lançar uma obra onde constam as “alegações de recurso” de Nito Alves, ao Comité Central do MPLA de Agostinho Neto, naquilo que ficou famoso como as 13 teses, que ganham agora, em livro o título: «MPLA – A REVOLUÇÃO TRAÍDA, 13 TESES EM MINHA DEFESA».

Por William Tonet

A sala da Liga Nacional Africana estava apinhada de gente, na verdade, homens e mulheres, a maioria irmanada pelo sentimento de sofrimento que, pese o COVID-19, sentiu o chamamento de estar presente na sala para testemunhar mais este tributo à memória não só de Nito Alves, como de todos quantos sucumbiram, ante a lógica da intolerância partidocrata.

Nito Alves era um ícone, dividia paixões: amor e ódio, por esta razão os seus escritos ainda que não estejam nos carreiros dos escritores clássicos ou exímios cultores da língua portuguesa, têm um lugar (quanto mais não seja), na estante mental dos homens intrépidos e autodidactas, talhados nos húmus libertários de uma revolução que viria a trair o sonho de milhões, que nela acreditaram devotamente.

A reedição das 13 Teses, não nas páginas de um jornal, mas num livro, são como uma espécie de aproximação ao que o apóstolo Paulo, de nome verdadeiro Saulo, fez quando foi condenado injustamente, como se pode verificar na Bíblia em Actos 24:5-21: “Porque sei que já vai para muitos anos que desta nação és juiz, com tanto melhor ânimo respondo por mim. Pois bem podes saber que não há mais de doze dias que subi a Jerusalém a adorar; E não me acharam no templo falando com alguém, nem amotinando o povo nas sinagogas, nem na cidade. Nem tampouco podem provar as coisas de que agora me acusam. Mas confesso-te isto que, conforme aquele caminho que chamam seita, assim sirvo ao Deus de nossos pais, crendo tudo quanto está escrito na lei e nos profetas. Tendo esperança em Deus, como estes mesmos também esperam, de que há de haver ressurreição de mortos, assim dos justos como dos injustos. E por isso procuro sempre ter uma consciência sem ofensa, tanto para com Deus como para com os homens. Ora, muitos anos depois, vim trazer à minha nação esmolas e ofertas. Nisto me acharam já santificado no templo, não em ajuntamentos, nem com alvoroços, uns certos judeus da Ásia, Os quais convinha que estivessem presentes perante ti, e me acusassem, se alguma coisa contra mim tivessem. Ou digam estes mesmos, se acharam em mim alguma iniquidade, quando compareci perante o conselho, A não ser estas palavras que, estando entre eles, clamei: Hoje sou julgado por vós acerca da ressurreição dos mortos” (…)

Ora como se vê, apesar da injustiça o apóstolo Paulo ainda teve um julgamento, negado, por Agostinho Neto ao homem que dois anos antes o havia salvo de morte política, no congresso de Lusaka, o único conclave democrático do MPLA, ganho por Daniel Júlio Chipenda, mas por elucubrações ideológicas, Nito Alves sugeriu a Neto, não assistir à contagem dos votos e fazer chegar, em jogo de antecipação, uma delegação a Luanda, capital e centro do poder político.

Mas, na verdade, com a célebre frase de Neto, nas vestes de Presidente da República: “Não vamos perder tempo com julgamentos”, foi dado o mote para a decapitação de Nito Alves e todos que, aleatoriamente, eram escolhidos e identificados como seus seguidores.

Um dos problemas de Nito Alves foi o de interpretar e corporizar a Lei Constitucional do próprio MPLA, no Capítulo VI – Organização Administrativa e Corpos Administrativos, quanto ao objecto do pelouro: Administração Interna, que respondia enquanto ministro, com a responsabilidade de administrar os órgãos locais do território de acordo com o art.º 47.º “A administração local orienta-se pelos princípios conjugados da unidade e da descentralização e iniciativa local”.

Acreditando que esta norma seria para levar a sério e corporizar o papel dos órgãos locais e, principalmente, das Comissões Populares de Bairro, Nito Alves foi, na lógica constitucional, implantando os órgãos e monitorando a transparência e lisura das eleições de cidadãos, que viviam no seio das comunidades e mereciam o seu voto, para os representar, como o estipulado nos artigos 50.º; 51.º; e 52.º LC (Lei Constitucional de 1975).

Artigo 50.º

Os Corpos Administrativos do Concelho, da Comuna, do Bairro e da Povoação, são respectivamente a Câmara Municipal, a Comissão Comunal e a Comissão Popular de Bairro ou de Povoação.

Artigo 51.°

As autarquias locais têm personalidade jurídica e gozam de autonomia administrativa e financeira.

Artigo 52.°

A estrutura e a competência dos Corpos Administrativos e dos demais órgãos de administração local serão fixadas por Lei.

Como se pode verificar, em nenhum momento da sua curta passagem pelo Executivo de Agostinho Neto, o intrépido comandante da 1.ª Região Político Militar do MPLA, feito ministro no primeiro governo de Agostinho Neto cometeu um crime cível ou administrativo na gestão da coisa pública, tal como no partido, sendo o seu pecado, tentar questionar os desvios, a que então se assistiam e o presente são a prova acabada da conversão do MPLA num partido de extrema-direita e de opção económica neoliberal.

CRIMES DE GENOCÍDIO NÃO PRESCREVEM

No 27 de Maio de 1977, Agostinho Neto demonstrou todo o seu carácter demoníaco ao liderar uma barbárie monstruosa, que transformou o país num mar de sangue de inocentes. O genocídio do MPLA/Neto, não se distanciou dos praticados por Adolph Hitler, na Alemanha nazista, durante a II Guerra Mundial, daí a cifra se aproximar mais das 80 mil vítimas do que das 30 mil, na visão modesta de alguns…

A questão, ontem, hoje e amanhã, não está em terem sido, em regra e esquadro, 80 ou 30 mil, mas o masoquismo e sadismo que norteou a saga assassina, liderada por um presidente da República, que se dizia médico, socialista e humanista, mas com práticas de verdadeiro genocida.

Esta afirmação: GENOCIDA, longe de ser leviana é a textualização de uma realidade expressa na célebre declaração, que nenhum estadista, Presidente da República deva fazer, em fases conturbadas: “NÃO VAMOS PERDER TEMPO COM JULGAMENTOS!”

A actuação discricionária de denegar justiça aos cidadãos de um país, que estejam justa ou injustamente a ser acusados, não é uma atitude de nobreza republicana, pelo contrário.

A defesa do arguido ou réu é um direito do cidadão, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que não deve ser negado, logo merece um julgamento livre, por um tribunal imparcial, como consta nos artigos 10.º, 11.º e 12.º da DUDH.

Artigo 10.°

Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.

Artigo 11.°

1. Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

2. Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi cometido.

Artigo 12.°

Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.

Diante destes articulados verificamos o que não tiveram as vítimas do 27 de Maio direito a julgamento justo, célere e nos marcos do devido processo legal. Ainda que tivessem cometido algum crime, não se lhes deveria excluir da cobertura das sombrinhas legais e de protecção dos direitos dos cidadãos.

Desta feita, dada a envergadura dos crimes, que não prescrevem e têm, também cobertura constitucional, a todo momento, em nome da verdade, se poderá levar os algozes à barra de um tribunal internacional, na ausência de verdadeiros compromissos extra-judiciais internos, face à CRA

Art.º 61.º

(Crimes hediondos e violentos)

São imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia e liberdade provisória, mediante a aplicação de medidas de coacção processual:

a) O genocídio e os crimes contra a humanidade previstos na lei;

b) Os crimes como tal previstos na lei.

Artigo 65.º

(Aplicação da lei criminal)

1. A responsabilidade penal é pessoal e intransmissível.

2. Ninguém pode ser condenado por crime senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados por lei anterior.

3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas por lei anterior.

4. Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.

5. Ninguém deve ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto.

6. Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

Mas pese estes instrumentos legais do direito internacional e constitucional interno, as vítimas ainda não accionaram na plenitude, esperando, talvez a boa-fé e sensibilidade dos autores, de tão infame acto proibitivo.

A dor, as marcas das sevícias sofridas, que as vítimas carregam e a sua resiliência exaltam a nobreza e o verdadeiro espírito de conciliação, capaz de levar, todos, a uma verdadeira reconciliação.

Nesta tentativa, a resistência repousa, exclusivamente, da parte do regime do MPLA (algozes), cujas mãos estão manchadas com o sangue da barbárie. Eles preferem continuar nos trilhos da mentira, fogem como diabo da cruz da criação de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, em paridade, onde todos se façam ouvir, com humildade e sinceridade, diante das vítimas e, com esse lançar de sementes, se expulsem da memória colectiva dos sofredores, os recalcamentos, que hoje, andarilhamente, teimam em não desaparecer.

NETO, UM VERDADEIRO MONSTRO

Por Amadeu Neves (*)

Uma grande maioria dos “boqueiros”, que até hoje falaram, nenhum tem conhecimento do que aconteceu, antes da hora que iniciou o “designado por 27 de Maio de 1977”, pois, só ouviram falar, porque todos os que estiveram nas reuniões preparatórias e na decisão final, para a execução do 27 de Maio de 1977, foram EXECUTADOS.

Na cadeia da Casa da Reclusão, na cela “14, do meio”, desse grupo, só EU, Amadeu Neves (Dedé), conheci o único homem que estava vivo, depois dos massacres realizados sob “as ordens ditadas pessoalmente por Agostinho Neto, quando afirmou: “NÃO HAVERÁ PERDÃO! NÃO PERDEREMOS TEMPO COM JULGAMENTOS! HAVEREMOS DE DITAR UMA SENTENÇA! NÃO HAVERÁ PERDÃO!”

Após o 27 de Maio, este jovem sobreviveu e nós escondíamo-lo entre a parede da cela e as nossas costas, mas, numa das noites, ele também foi levado, naquelas recolhas, que se realizavam diariamente, sendo uns, imediatamente, fuzilados, enquanto outros, aguardavam a vez da carrinha da morte.

Alguns de nós, depois era transferido para a Fortaleza e, daí, segundo a linguagem dos chefes e torturadores: “os presos têm de ser bem espremidos, torturados até falarem”!

Era o Requim da CHACINA DOS JOVENS QUE LUTARAM NAS MATAS E ESTIVERAM NAS PRISÕES POLÍTICAS COLONIAIS, de algozes, que sob comando de Agostinho Neto, praticaram e cumpriram, na íntegra, a palavra de ordem de Agostinho Neto: NÃO HAVERÁ PERDÃO” e assim foram CHACINADOS MILHARES DE JOVENS ANGOLANOS, que de facto realizaram a luta anticolonial e da 1.ª região, e que “não estiveram a lutar nas chanas do Leste, onde é possível ver um pássaro a mais de 5 km de distância e a OLHO NÚ, e o exército colonial português nunca conseguiu ver esses ditos guerrilheiros das chanas do Leste. E a luta… e a vitória… estamos ainda à espera…

(*) Dedé, sobrevivente do 27 de Maio

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