2021, O ANO DA DESGRAÇA COLECTIVA

O ano de 2021 será lembrado como ano emblemático para o incremento da repressão e das difíceis condições de vida dos cidadãos, que tiveram de lidar com a pandemia e a relativização da fome. João Lourenço (JL) tenta consolidar o poder e retoma o discurso partidarista, de peito aberto perante as tensões sociais; e ergue trincheiras contra a oposição, recorrendo aos instintos políticos e militares para subjugar a razão jurídica.

Por José Marcos Mavungo (*)

Não há resposta do regime sobre como estão as coisas, em especial no tocante ao famoso slogan “corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”. Vai-se andando, sem preocupação em sepultar o antigo regime, nem em se penetrar na realidade e necessidades do país. Nem correcção, nem melhoria do que vai mal, vai-se assim-assim de mal a pior, sob o espectro da perversão e da imposição da classe política dominante.

Talvez este seja este o melhor epíteto para o ano 2021: temos sido governados assim nos últimos 46 anos, foi também assim neste 2021. Como diria Ngadiadia, o cómico da República Democrática do Congo (RDC), «biso si tomesana» (já estamos habituados), a governantes que, um dia, falam de mudanças e de respeito pela vida e dignidade humanas, e vão relativizar os valores constitucionais e da boa governança, ao mesmo tempo que continuam a não disfarçar a aliança tablóide com os órgãos da administração justiça.

Foi assim a nível do funcionamento das instituições democráticas, na actuação dos órgãos da ordem pública e da administração da justiça. O país é o mesmo há 46 anos, nos mesmos termos, ao continuar a ter ainda vítimas, pelos traumas das interdições dos detentores do poder e da violência policial. O silêncio cúmplice e a cobardia dos juízes são os maiores problemas da justiça angolana.

Com a democracia em declínio em várias partes do mundo, se avolumando sinais preocupantes de retrocesso mesmo no interior da União Europeia, JL aproveitou a oportunidade para reforçar o seu poder, acabando assim por conferir maior défice ao processo democrático. Um caso flagrante é o de Adalberto da Costa Júnior, sintoma visível de um país, em que as instituições da administração da justiça continuam servos da classe política dominante.

No retrocesso da democracia que atormenta Angola, trilhou-se algum caminho na Cimeira para a Democracia promovida por Joe Biden, a 9 de Dezembro, mas ficou um travo amargo na boca de João Lourenço: faltaram compromissos para uma vontade patética de modificar e reorientar a actual situação em direcção a uma nova Angola, fraterna e democrática, cuja razão de ser consiste em não reproduzir o actual clima de repressão e de injustiças, os abusos de poder e as impunidades de que gozam a classe política dominante.

No tocante ao processo de reconciliação nacional em 2021, este suscitou a sensação de dar boas notícias, com o pedido de perdão do PR João Lourenço em nome do Estado às vítimas do massacre de 27 de Maio de 1977 (26/05), e a entrega das ossadas do antigo Secretario Geral da UNITA, Adolosi Paulo Alicerces Mango, e do chefe da delegação deste partido na Comissão Conjunta, Salupeto Pena (15/11). Mas, num quadro, onde as instituições de direito democrático funcionam em meio hostil, o processo de reconciliação nacional acabou por ficar constrangido pelos interesses do partido dos camaradas.

O dossiê de Cabinda continuou a ser marcado por momentos controversos da governação de JL. A difícil situação vivida no território de Cabinda foi intensificada com o reforço da relação explosiva com as populações autóctones, em especial os activistas sociais – o incremento da bufaria, interdições de vária ordem, detenções de activistas políticos (dois continuam ainda sob detenção), e incursões de forças de defesa e de segurança do Estado nos dois Congos.

O fracasso revelou-se também na economia, nas empresas, na vida do Zé Povinho. Navegou-se ao longo do ano 2021 ao sabor das ondas, mais uma vez orientados pelos caprichos de um vírus que continuou a pesar drasticamente na já existente debilidade nos serviços administrativos – falta de água, luz, gás, combustível e bens de primeira necessidade – , nas actividades económicas do país e na vida socioeconómica.

Apesar dos esforços do executivo para garantir a vacina para todos os cidadãos, habituou-se a que o novo normal seja esta anormalidade, e a situação agravou-se ao segundo ano consecutivo da pandemia sem fim à vista. Depois da queda de 6,5% do PIB em 2020 (fonte: Alisa Strobel, Consultora da IHS Markit), a sondagem mostra que a economia angolana vai continuar com um crescimento negativo este ano.

Se para combater a pandemia da covid-19 em 2020, procedeu-se ao encerramento (suspensão) de vários negócios (de contratos laborais), destruíram-se empregos e foram proibidas viagens, prejudicaram os rendimentos e devastaram a economia do país, as consequências desta situação se fizeram sentir drasticamente na economia em 2021, situação notória em especial na actual inflação em espiral e suspensão de várias actividades empresariais.

O Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2022 (18,7 bilhões de kwanzas, um aumento de 26,8%, relativamente ao OGE 2021) foi aprovado no dia 14 de Dezembro de 2021, sem que as propostas da oposição tivessem sido levadas em conta. Um orçamento que se foca quase em exclusivo no aumento da despesa no sector social (24,7%) e na educação (24,7%), comparativamente ao de 2021, a “febre eleitoralista” obriga.

A expectativa do governo angolano prevê um crescimento económico do Produto Interior Bruto de (PIB) no valor de 2,4%, em 2022, com maior contribuição a partir do sector petrolífero, com 3, 1%, como apontou a ministra das Finanças, Vera Daves.

A expectativa suscita algum pessimismo para uma economia já doente há décadas, tendo em conta o facto de que foi apenas alocado 7% para esta área.

Porém, longe de defender que os apoios sociais não são necessários no actual contexto, é importante que tenhamos em mente que este aumento de despesa vai ser acompanhado pela queda de impostos cobrados. A este respeito, importa sublinhar que esta situação não significa que as taxas de imposto vão baixar (tirando o malabarismo da redução da taxa de retenção na fonte), mas, antes, que vai cair a colecta de impostos porque a economia contrai.

Como percebemos, se aumentamos a despesa e reduzimos a receita vamos ter défice. E o défice é dívida. É antecipar para hoje o rendimento que iremos receber no futuro, com a agravante de que pagaremos juros. Mais dívida implica mais impostos futuros, numa espiral que não acaba.

Primeiro foi a crise, depois de décadas de desvarios do regime «en place» e de esbanjamento do erário público; agora, é a crise da covid-19… e são sempre os mesmos apagar.

Assim, o ano 2021 não foi muito diferente dos outros anos: adiou-se mais uma vez a recuperação da economia, agravou-se a exclusão social e vincou o salve-se quem puder.

E o realismo leva a dizer que, com uma “economia doente”, Angola vai continuar a atravessar momentos trabalhosos, porque não se pode ainda falar de que o Estado já estancou esquemas fraudulentos e de enriquecimento ilícito, porque o fenómeno Paulo Lussaty continua vivo na administração do Estado.

Além disso, Angola continuará ainda a enfrentar o circunstancial e o precário, por que a função do Estado não está ainda assente (nem que seja um pouco) em investimentos criadores de valores em sectores onde se possa marcar a diferença, como, por exemplo, criação de um apoio para o turismo, medidas eficientes para apoiar as empresas saudáveis e inovadoras para que possam crescer mais, criar mais emprego e mais riqueza.

Os episódios a que assistimos ao longo do ano 2021 – por exemplo, a detenção de jornalistas e activistas sociais, os agentes da Polícia Nacional a prenderem e a matarem manifestantes, a problemática do saco azul da Presidência da Presidência, a farsa revisão constitucional, os assaltos violentos à Igreja Católica e os acórdãos do Tribunal Constitucional sobre o Projecto PRA-JÁ e a eleição da Adalberto da Costa Júnior, o incremento da fome,- são apenas sintomas visíveis de algo mais vasto que, perigosamente, tem vindo a lastrar, politicamente, pelo país: projecto de manutenção eterna do poder, corrupção e tráfico de influências, abusos de poder e perseguição das vozes opositoras, controlo dos média e do sistema judicial e a debilidade das reformas, em especial no apoio à economia e ao serviço público.

Entretanto, as autoridades angolanas prometem recuperação, como se bastasse mandar dinheiro para cima dos problemas para que estes se resolvam. Estão tentando que acreditemos num “milagre económico” angolano, mas tal como a situação se apresenta continuam a dirigir o país para a cauda de África.

Podemos chamar a 2021 o “ano da desgraça colectiva”. Com ele muitos sonhos tornaram-se/tornarão irremediáveis pesadelos. O pior é que, a nível do que deve ser corrigido e melhorado, não se sabe ainda ao certo o que fazer, sobretudo depois de décadas de desvarios do regime «en place» e de esbanjamento do erário público.

Com más chefias, Angola não conseguirá ganhar a guerra do desenvolvimento. Talvez o país não tem ainda chefias natos no poder ou, pelo menos, de instituições que resistam à paixões individualistas, mas de verdadeiros comerciantes, como alguns dos velhos (e dos novos sofistas) que não se guiam por um quadro de valores permanentes, acabando assim por relativizar a verdade das coisas, mesmo aquela da fome.

Nestas circunstâncias, a entrada em 2022 faz-se agora sob direcção de governantes prepotentes com pés de barro e “mixed feelings”: a sensação de que a pandemia, em especial esta da ditadura e corrupção tarda a virar endemia, e que quaisquer previsões são mais da ordem de uma “vida de alternativas” (JES) e de adivinhação. Até lá, é continuar a tentar gerir o caos que se instituiu desde a acessão de Angola à independência.

(*) Activista dos Direito Humano

Nota. Todos os artigos de opinião responsabilizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.

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