“Vamos comer o quê?”

Mais de 330 pessoas foram detidas em Angola nas últimas 24 horas, incluindo 10 pastores, com o porta-voz do Ministério do Interior (MININT) a lamentar que se mantenha a desobediência de muitos cidadãos ao estado de emergência. Registe-se que também há muitos angolanos a chocar com as balas da Polícia ou dos militares… Por sua vez a UNITA pede que o Governo “não deixe a população morrer à fome”.

Valdemar José, o sipaio do general Eugénio Laborinho, que fazia um balanço operacional das últimas 24 horas, em Luanda, salientou que se registou um incremento das detenções resultantes de desobediência e do não acatamento das medidas excepcionais do estado de emergência, que se elevaram a 337. E para pôr ordem e em ordem nada melhor do que, não havendo balas de borracha (muito menos rebuçados e chocolates), usar balas reais para matar todos aqueles que julgam ter direitos.

O responsável do MININT afirmou que continuam a circular cidadãos para utilizar serviços que poderiam ser feitos a partir de casa (isto no caso de terem casa), como o uso de multibanco, enchendo as agências bancárias, sobretudo no exterior, tendo sido identificados também cidadãos que tentam atravessar províncias em camiões de mercadoria.

Valdemar José deixou novamente um apelo aos líderes religiosos para que cumpram as medidas, indicando que foram novamente detidos vários pastores “de algumas confissões religiosos” que teimam em celebrar cultos, que estão actualmente proibidos numa tentativa de conter a propagação da Covid-19.

No Namibe foi detido um pastor da igreja Missão Evangélica Espírito Santo, enquanto na Huíla foram detidos sete pastores que se dedicavam a um culto numa residência, “colocando em risco o pastor e a sua família”.

Em Saurimo, foram detidos um secretário e um administrador de uma igreja que estavam também a realizar um culto numa casa e, no Cuanza Sul, dois pastores e dois fiéis da igreja Evangélica Congregacional, também numa prática religiosa doméstica.

Foram também detidos dois comerciantes por especulação, 167 pessoas por violação de fronteiras, encerrados 23 mercados informais e 11 estabelecimentos comerciais e dispersas quatro partidas de futebol, sendo igualmente apreendidos mais de 300 táxis colectivos e moto-táxis. Foram ainda recolhidos com o natural carinho dos cassetetes, rebuçados e chocolates, 1.146 cidadãos “que persistiam em circular” de forma ilegítima por várias ruas de cidades angolanas.

Entretanto, a UNITA, maior partido da oposição que o MPLA ainda permite que exista em Angola, pediu hoje mais apoio e solidariedade para com as comunidades mais vulneráveis durante o estado de emergência para que o país “não deixe a sua população morrer à fome”.

“É preciso lembrar que o nosso país está cheio de comunidades que, mesmo antes do estado de emergência, padeciam de fome, careciam de produtos da cesta básica”, notou Navita Ngolo, segunda vice-presidente do grupo parlamentar da UNITA, durante uma acção de doação de bens no Cacuaco (Luanda).

A deputada salientou que, devido às restrições impostas, “muitas pessoas já não se podem deslocar até à praça”, comprometendo os seus meios de subsistência, e pediu mais apoio para os mais vulneráveis durante o estado de emergência, que foi declarado a 27 de Março e chegou hoje ao seu 11.º dia.

“Os recursos são poucos, mas não podemos permitir que as pessoas além de morrer da Covid-19 morram à fome. Angola não se pode permitir a isso, não pode deixar a sua população morrer a fome”, reforçou com toda ingenuidade (embora pura) de quem tem a ténue esperança de que o MPLA esteja no Poder para servir os angolanos e não, como acontece há 45 anos, para se servir deles.

Na comunidade de casas de chapa, junto ao bairro Mayé-Mayé, que a delegação da UNITA visitou, falta (quase) tudo. É um aglomerado pobre, no distrito urbano de Sequele (município do Cacuaco) a quase uma hora da cidade de Luanda, sem estrada asfaltada, sem escola, sem transportes, sem infra-estruturas básicas.

A maior dificuldade está na água, queixa-se Esperança da Cruz André, 20 anos, sem deixar ainda assim esmorecer o sorriso. A jovem, que carrega um bebé às costas, diz que são necessárias duas horas a caminhar para ir buscar água, que nem sempre há dinheiro para comprar.

Com a quarentena imposta pelo estado de emergência tudo piorou: “A vida está difícil aqui, às vezes não temos nada que comer”, contou. A dieta pouco varia: “Às vezes quizaca [folhas de mandioca], às vezes bombó [mandioca demolhada]”.

Isaías Bendi relatou as mesmas dificuldades, sobretudo a falta de água e de alimentação e mostrou-se preocupado com o novo coronavírus. Mas mais do que na prevenção, é em Deus que confia: “Temos que agradecer ao Grandioso, que nos cuida”, até porque “a área em que nos encontramos é desfavorável para prevenções”.

Madalena Simão, que recebeu a comida em nome da comunidade, salientou que a ajuda será devidamente repartida, pois “todos estão a passar mal”.

“Aqui a nossa comida é só da lavra. Vai tirar quizaca, vai tirar rama, sem óleo, sem sal, estamos mesmo mal”, lamentou.

“Nós dependemos da praça. Nos outros dias íamos vender, mas agora ninguém pode sair, nós não podemos sair, vamos comer o quê?”, perguntou.

Para a deputada da UNITA, uma vez que muitos não têm outra fonte de rendimento “é necessário accionar o apito da solidariedade”, defendendo que todos, desde igrejas e empresários aos partidos políticos se devem mobilizar e unir aos esforços do executivo.

“Temos todos que nos unir para que possamos ir mitigando algumas necessidades”, afirmou Navita Ngolo, considerando “gritante” a falta de água, tendo em conta que esta é uma das medidas de prevenção mais básicas contra a Covid-19.

Farinha, arroz, óleo e sabão, “que é importante para os cuidados de protecção”, são alguns dos produtos que hoje chegaram aquela comunidade isolada, aliviando a fome por alguns dias.

Folha 8 com Lusa

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