Se o medo acaba…

O activista Luaty Beirão considera que “os crimes” e práticas repressivas da polícia e do Estado angolano (onde há 45 anos só manda o MPLA) “têm os dias contados”, salientando que as pessoas perderam a paciência e o medo. Como responderá o regime? A fazer fé no seu ADN, vai continuar a razão da força, não sendo despiciendo alguns temerem novas purgas, assassinatos e até, quiçá, uma reedição dos massacres de 27 de Maio de 1977 ou de 1992.

“E spero que os dias 24 de Outubro e 11 de Novembro [em que a polícia reprimiu violentamente protestos em Luanda] tenham servido de algum tipo de lição para o poder político deixar de querer impor a sua vontade e usar a Polícia Nacional para servir de tampão, escondendo-se atrás dela para voltar a fazer o que tem feito”, afirma Luaty Beirão.

Desde o mês passado, a polícia reprimiu violentamente duas tentativas de manifestação pacífica em Luanda, para reivindicar (veja-se só o desplante dos manifestantes) melhores condições de vida e eleições autárquicas em 2021.

Na sequência do último protesto, realizado no Dia da Independência, 11 de Novembro, morreu um estudante, Inocêncio de Matos, em circunstâncias ainda por esclarecer por parte do Governo, mas que provavelmente foi por ter tropeçado na sua própria sombra e ter batido com a cabeça na sombra de um polícia que ajudava uma velhinha a atravessar a rua, ou por ter levado um tiro na cabeça… com afirmam testemunhas oculares.

“Estas práticas, estes crimes, têm os dias contados, as pessoas perderam a paciência e estão a perder o mais importante, que mantinha e assegurava essa forma de exercício do poder, que é o medo. Quando as pessoas perdem o medo, o caldo entornou e se o poder político não percebe que as pessoas estão no limite e à beira de perder o medo, o poder político arrisca-se a cair na rua”, sublinhou.

Luaty Beirão assinalou o “escalar evidente” da repressão nos últimos tempos, notando que ao longo dos últimos três anos, altura em que o Presidente João Lourenço chegou ao poder pela mão de José Eduardo dos Santos, sendo que no cômputo desses 38 anos de poder absoluto houve inúmeras manifestações que se realizaram sem problemas de maior.

“Não me lembro de ter havido este rigor, esta musculatura, que remonta a tempos antigos que nós pensávamos que já podíamos considerar que estavam no passado. As pessoas estão a ser de novo alvo de práticas criminosas por parte dos agentes e das instituições do Estado”, lamentou.

Sobre os acontecimentos de 11 de Novembro, de que resultou a morte de um jovem de 26 anos, Luaty Beirão manifestou dúvidas quanto à versão oficial de que o estudante terá morrido no hospital em consequência de agressão com um “objecto contundente”, designação que parece ser – no léxico da Polícia – sinónimo de bala.

“Há vídeos a mostrar a polícia a disparar, podemos dizer que os vídeos não mostram se eram balas reais, mas há cartuchos e balas apanhadas na manifestação por pessoas que estavam em directo. Acumularam-se tantas evidências que é até infantil a polícia negar responsabilidades”, criticou, salientando: “A polícia está a inventar uma história e a tentar furtar-se, como sempre faz, às suas responsabilidades”.

“Se não mataram, quem matou? Foi um colega [do estudante] que foi armado e matou? Qual é a teoria? Se não foram eles, quem foi? Abriu-se um inquérito ou uma investigação? Deu-se voz a outras testemunhas?”, são algumas das perguntas para as quais gostaria de ter resposta.

Luaty Beirão defendeu que João Lourenço se deveria pronunciar sobre o assunto e que o comandante geral da Polícia Nacional, bem como o ministro do Interior, deveriam pôr o lugar à disposição.

“Num país que quer ser considerado normal estas práticas têm de passar a ser regulares, as pessoas têm de assumir as responsabilidade superiormente”, salientou Luaty Beirão, realçando que “o agente que disparou é o responsável material, mas existem outros”.

“Infelizmente, o Presidente angolano, que é o responsável moral disto tudo (…), tem sido omisso quando há este tipo de situações”, que, na sua opinião, “lesam gravemente a imagem do Estado de direito” e “mancham” a liderança e o discurso de abertura e de mudança de João Lourenço, sustentou.

O activista considerou também inexplicável que a Universidade Agostinho Neto, onde Inocêncio de Matos frequentava o terceiro ano de ciências da computação, não tenha permitido homenagens ao estudante.

“Como é que até na Academia se consegue levar a repressão política a impedir simbolismos como estar de roupa preta e fazer um minuto de silêncio, como é que a polícia é chamada e aceita o papel de não permitir a entrada de estudantes no seu recinto escolar? É tão revoltante, é difícil de aceitar”, desabafou.

Luaty Beirão, que também tentou participar na manifestação do dia 11 de Novembro, foi barrado pela polícia que lhe confiscou alguns bens e deu voz de detenção.

Luary questionou os procedimentos das autoridades, que impediram as pessoas de caminhar na via pública e obrigaram a entregar objectos pessoais, como telemóveis, câmara de filmar e até um cartaz de protesto, e apresentou queixa ao departamento de inspecção do comando provincial de Luanda devido ao comportamento dos agentes.

Em causa estão a apreensão forçada dos seus bens (câmara `goPro`, bolsa com chave de casa, um `powerbank` e um cartaz) e as ameaças de morte de que foi alvo.

“É importante que as pessoas forcem as instituições a trabalhar e a dar respostas a que são obrigadas por lei”, afirmou, salientando que estas instituições “estão obstruídas pelo poder político” e que mais importante do que recuperar os bens é que os procedimentos sejam cumpridos.

Estão já previstas mais duas iniciativas de protesto, convocadas para sábado, dia 21 de Novembro, e 10 de Dezembro.

Esta semana, a embaixadora da União Europeia em Angola manifestou “preocupações” com o respeito pelas liberdades e garantias dos cidadãos e os ministros angolanos da Justiça e do Interior reconheceram excessos na intervenção policial.

Folha 8 com Lusa

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