“Liberdade de expressão em Angola está em queda livre”

Sérgio Piçarra é um dos vencedores da edição 2020 do Prémio franco-alemão dos Direitos Humanos e do Estado de Direito. É igualmente um cartunista de nível internacional. À DW África, afirma que em “Angola a liberdade de expressão está em queda livre”.

A propósito da prestigiante distinção que lhe foi, merecidamente atribuída, Sérgio Piçarra afirma: “Foi uma grande surpresa para mim. E é sempre bom quando os nossos trabalhos são reconhecidos. Naturalmente estamos todos felizes e muito honrados. E nos dá mais força de continuarmos a trabalhar e irmos dando voz a outras pessoas e a outros lutadores. E que sirva de exemplo, para que esta luta pelos direitos humanos siga em frente e que seja vitoriosa”.

Cartunista por “mera paixão” ou activismo? “No nosso contexto em Angola pode confundir-se com activismo, porque nós vivemos uma situação muito complexa, ao nível daquilo que são as liberdades, no geral, e, em particular, a liberdade de imprensa e de expressão. Portanto, o meu cartoon, em particular, assume esta dimensão de activismo, quando noutros países do mundo seria apenas, uma mera expressão de opinião do artista. Mas eu estou perfeitamente confortável com estas duas dimensões. Se serve com motivação para que os activistas de direitos humanos e de outras causas possam inspirar-se, fico muito orgulhoso por este facto”.

À pergunta: “Como é que analisa a situação dos direitos humanos em Angola?”, Sérgio Piçarra responde: “Falar dos direitos humanos em Angola é uma das coisas mais complexas e mais complicadas, porque temos tido uma história muito complicada neste sentido, que data desde o período da independência, tivemos um Estado muito fechado e muito repressor, não obstante a Constituição da República referir que somos um Estado direito democrático, mas o que a gente vê na prática é completamente contrário. Há muitos truques para contornar este Estado de direito democrático, essencialmente na questão da imprensa pública que é paga pelos nossos impostos, e no fim de tudo somos manipulados por ela”.

E acrescenta: “Portanto, se estes pressupostos não estão a ser cumpridos, naturalmente que os direitos humanos estão a ser gravemente feridos. E esta é uma das minhas grandes preocupações que expresso no meu trabalho sempre que posso”.

É fácil em Angola para um cartunista expressar as suas opiniões? Sérgio Piçarra responde: “Não tem sido fácil, embora eu não tenha muitas queixas no meu dia-a-dia, como pressão ou outro tipo de ameaças. Mas eu publico em jornais e algumas revistas privadas e nos jornais públicos não sou permitido. Isso é um indicador de que as coisas andam em avanços e recuos”.

Tão incisivo nas respostas quanto nos habituou a ser nas suas obras, respondeu à pergunta: Sente que há uma censura nos órgãos públicos?

“Completamente. E nos últimos tempos a questão tem estado a piorar. Os ciclos de liberdade e de pressão sobre a imprensa têm um bocado a ver com os ciclos eleitorais. Depois das eleições, sentimos que há um pouco de abertura para a imprensa, mas quando nos aproximamos de outro pleito eleitoral a situação agrava-se. Neste momento, aqui em Angola, temos tido uma série de eventos sociais, como manifestações e quando a gente liga a televisão, o que se vê são factos manipulados. E isso é quase uma repetição daquilo que vivemos no regime passado [de José Eduardo dos Santos] e que pensávamos que já não íamos ver mais. E isto é o que mais preocupa, porque neste momento estamos a ver recuos muito graves noutras áreas e, sobretudo, na questão da liberdade de expressão. Preocupa-me ainda que aqui em Angola não existam mais cartunistas”.

Quanto a haver, ou não, alguma autocensura por parte de novos cartunistas, Sérgio Piçarra responde: “Julgo que sim, porque todo contexto não é convidativo para que os jovens cartunistas se aventurem nesta área da crítica aos políticos, pois sabem que de alguma forma vão ter problemas”.

É a primeira vez (e por vontade dos donos do país há 45 anos será a última) que uma personalidade angolana recebe este prémio, atribuído desde 2016 a pessoas “que contribuíram de modo excepcional para a protecção e promoção dos Direitos Humanos e do Estado de Direito nos seus países e a nível internacional”.

A alergia dos dirigentes do MPLA é compreensível (mesmo fingindo o contrário) pois Sérgio Piçarra – como outros – quer proteger, ou ajudar a nascer, algo que em Angola não existe mesmo: Direitos Humanos e Estado de Direito.

Sérgio Piçarra iniciou a sua carreira na década de 1980 e é hoje o mais reconhecido desenhador e autor de banda desenhada de Angola, e um dos mais prestigiados no âmbito da Lusofonia que, como se sabe, nada tem a ver com esse “elefante branco” a que chamam Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Em 1990, iniciou a sua carreira de cartunista, criando a personagem «Mankiko, o imbumbável» [que não gosta de trabalhar] e que constitui hoje a maior referência de caricatura angolana.

Desde a independência do país, em 1975, Sérgio Piçarra produziu de forma ininterrupta desenhos que retratam a actualidade angolana, publicando hoje os seus desenhos nos semanários Novo Jornal e Expansão.

O cartunista já participou em eventos internacionais como a Convenção Internacional de Caricaturistas Africanos na África do Sul e nas celebrações do Dia Internacional da Liberdade de Expressão do movimento Cartooning for Peace, em Adis Abeba, (Etiópia) em 2019.

“É homenageado pelo seu engajamento pessoal e pelo trabalho que contribui para a promoção da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e do Estado de Direito em Angola”, adianta o comunicado da organização, acrescentando que a medalha vai ser entregue pelos embaixadores da França e da Alemanha em Janeiro de 2021.

Os outros vencedores desta edição são Issam Younis (Palestina), Sara Seerat (Afganistão), Nare Baré (Brasil), Ll Yuhan (China), Azza Soliman (Egipto), Iuri Alexeievitch Dmitriev (Rússia), Lorna Merekaje (Sudão do Sul), Nayyab Ali (Paquistão), Rosa Anaya (Salvador), Nagham Nawzat Hasan (Iraque), Mathilda Twomey (Seichelles), José António Zambrano Munguia (Honduras), Zoya Jureidini Rouhana (Líbano) e Mária Patakyová (Eslováquia).

Folha 8 com DW África

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