Estado de coma (e não de emergência) para milhões

O estado de emergência ontem declarado em Angola, para controlar a propagação do novo coronavírus, Covid-19, em vigor a partir de sexta-feira, estabelece restrições de circulação em território nacional e possibilidade de confinamento compulsivo em casa ou estabelecimentos de saúde. Com 20 milhões de pobres, o estado de emergência vai matar mais gente que a Covid-19, tal como vai aumentar a marginalização de milhões de angolanos que fazem da economia informal a alternativa para ter alguma coisa para comer.

O estado de emergência vai ter proporções imprevisíveis por condenar à morte todos quantos, ganhando ao dia, sem esse provento, vão apostar na criminalidade, na indigência, na droga, nos suicídios e na prostituição. As pequenas e médias empresas não aguentarão o sismo e, muito provavelmente, não conseguirão reerguer-se e terão a porta do desemprego como a primeira opção para os seus recursos humanos.

Se sem o estado de emergência nos hospitais falta tudo, desde organização, camas, oxigénio, balões respiratórios, casas de banho, água, sabão, papel higiénico, álcool, lençóis, alimentação adequada, higiene, entre outros, agora será o descalabro total.

Em Luanda iniciou-se hoje a suspensão de, pelo menos, duas semanas nas actividades lectivas, desportivas, culturais e religiosas, bem como de diversos serviços públicos, obrigando muitos cidadãos a ficar em casa.

O decreto presidencial que declara o estado de emergência em Angola, com início às 00:00 de 27 de Março e fim às 23:59 de 11 de Abril, devido a “uma situação de iminente calamidade pública”, pressupõe a suspensão parcial de alguns direitos, desde logo e de forma pragmática pressupõe a suspensão da própria vida por falta de alimentação e de apoios sociais.

O Papa Francisco exortou a que se ouça o grito dos pobres, “cada dia mais forte, mas também menos escutado, sufocado pelo barulho de alguns ricos”. Por cá, 20 milhões de angolanos que já tinham a barriga vazia, serão agora obrigados a (se quiserem continuar vivos) mostrar que conseguem viver sem comer.

“O clamor dos pobres é diariamente cada vez mais forte, mas a cada dia menos escutado, já que é dominado pelo barulho de alguns ricos, que são cada vez menos, mas mais ricos”, censurou o Papa.

“Vamos pedir a graça para ouvir o grito de quem vive em águas tumultuosas”, acrescentou, sublinhando que “é o grito dos muitos Lázaros que choram, enquanto um punhado de ricos se banqueteiam com aquilo que justamente pertence a todos”.

Aos fiéis, Francisco disse que é Deus quem pede que se reconheça “aquele que tem fome e sede, o estrangeiro e o despojado da sua dignidade, o doente e detido”.

Desde o início do seu pontificado, em 2013, o Papa tem vindo a denunciar a “globalização da indiferença” e diz que quer “uma Igreja pobre para os pobres”, daí a escolha do nome Francisco, o “Povorello” [Pobre] de Assis, que escolheu quando foi eleito para liderar a Igreja Católica.

Nós por cá… sabe Deus!

Nós por cá somos cerca de 30 milhões. Pobres? “Só” 20 milhões. Angola é, por exemplo, dos nove Estados lusófonos o país com pior cobertura de serviços básicos de Saúde, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Banco Mundial (BM). Será possível? Independente há 45 anos, tendo no governo sempre o mesmo partido (o MPLA), estando há 18 anos em paz total, sendo um país rico… algo vai mal (muito mal) no reino.

Será então caso para dar os parabéns ao presidente da República, João Lourenço, que apesar de ter chegado ao cargo há quase três anos fez durante anos, muitos anos, parte da estrutura dirigente do MPLA, sendo por isso conivente activo no desastre deste país. País que, aliás, é líder – mesmo sem a Covid-19 – noutros “rankings”, casos da corrupção e da mortalidade infantil.

Nos serviços básicos, o país do MPLA tem uma taxa de cobertura de apenas 36%. De entre as nações lusófonas, seguem-se a Guiné-Bissau, com 39%, Moçambique (42%), Timor-Leste (47%), São Tomé e Príncipe (54%), Cabo Verde (62%) e Brasil (77%). Portugal é o país lusófono com melhor resultado, tendo mais de 80% da sua população coberta.

A criação de pelo menos (pelo menos, note-se, anote-se e relembre-se) meio milhão de empregos, reduzir um quinto à taxa de desemprego e instituir o rendimento mínimo social para as famílias em pobreza extrema (temos apenas e graças à divina actuação do regime do MPLA 20 milhões de pobres) foram propostas solenemente apresentadas e subscritas por João Lourenço.

Não fosse a Covid-19 e o estado de emergência e o MPLA estaria pronto para cumprir, imediatamente, essas promessas. É isso, não é, Presidente João Lourenço?

Mas o MPLA está no poder desde 1975, dirão os mais atentos e, por isso, cépticos. Mas o que é que isso interessa? Desta vez é que estava quase para ser. Os discursos de João Lourenço são marcados por uma insistente propaganda de combate à corrupção (onde Angola está no top mundial dos mais corruptos), que diz colocar em causa “a reputação” de Angola no plano internacional.

“Se tivermos a coragem, a determinação, de combatermos a impunidade, com certeza que conseguiremos combater a batalha da luta contra a corrupção”, apontou João Lourenço que, aliás, ainda não explicou (nem vai explicar) como é que era antes de ser eleito o 21º homem mais rico de Angola.

Não fosse a Covid-19 e o estado de emergência e o MPLA estaria pronto para cumprir, imediatamente, essas promessas. É isso, não é, Presidente João Lourenço?

Reduzir a taxa de incidência da pobreza de 36% (segundo as deficientes contas do regime) para 25% da população, do índice de concentração da riqueza de 42,7 para 38, e “criar e implementar o Rendimento Social Mínimo para famílias em situação extrema de pobreza” eram objectivos.

“Erradicar a fome em Angola”, aumentar em cinco anos a esperança de vida à nascença, elevando-a para 65 anos, reduzir a taxa de mortalidade infantil (uma das maiores do mundo segundo organizações internacionais que não leram o manifesto do regime) de 44 para 35 por cada mil nados-vivos e de crianças menores de cinco anos de 68 para 50 por cada mil nados vivos, foram outras metas do MPLA de João Lourenço.

Não fosse a Covid-19 e o estado de emergência e o MPLA estaria pronto para cumprir, imediatamente, essas promessas. É isso, não é, Presidente João Lourenço?

No plano económico, e com o país a tentar recuperar da crise financeira, económica e cambial de 2015 e 2016 (que só atingiu os angolanos de segunda categoria), João Lourenço avisou que as empresas públicas deficitárias serão entregues à gestão privada, para que deixem de “sugar os recursos do erário público”.

Não fosse apenas mais um capítulo do anedotário do regime e, certamente, os angolanos até ficariam sensibilizados com essa de “sugar os recursos do erário público”. Por outras palavras, promete acabar com aquilo que, ao longo de quase 44 anos, foi a única estratégia do seu MPLA: “sugar os recursos do erário público”.

Entre os fundamentos macroeconómicos, JLo prometia “melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”, assume o compromisso de atingir uma média de crescimento anual “não inferior a 3,1%” do Produto Interno Bruto (PIB), reduzir a taxa de inflação a um dígito ou duplicar a receita tributária não-petrolífera.

Não fosse a Covid-19 e o estado de emergência e o MPLA estaria pronto para cumprir, imediatamente, essas promessas. É isso, não é, Presidente João Lourenço?

Tudo isto já não são bem promessas do MPLA de João Lourenço. São, antes, um atentado à inteligência dos angolanos e a passagem de um atestado de matumbez também às organizações internacionais que dão cobertura ao regime, mostrando que preferem trabalhar com um governo ditatorial do que com um sério e democrata.

Hoje, no plano da transformação da economia, ainda e quase só assente nas exportações de petróleo, é definido pelo MPLA o objectivo de, em cinco anos, elevar a produção anual de cereais em Angola de dois milhões para cinco milhões de toneladas ou a de leguminosas para um milhão de toneladas anuais, “criando excedentes para a reserva alimentar nacional”, e reduzindo em 15% as importações de leite. O oásis está mesmo aí.

No sector da indústria extractiva, além da produção diamantífera, com a perspectiva de 13,8 milhões de quilates por ano, a presente legislatura, segundo o MPLA, ficará marcada pela estreia na extracção de ferro (1,7 milhões de toneladas/ano), de ouro (25,6 mil onças/ano) ou de fosfato (1,3 milhões de toneladas/ano).

Nos petróleos, o compromisso é de apostar no gás natural e na exploração do pré-sal, além de construir pelo menos uma nova refinaria, face às necessidades de produtos derivados, bem como reduzir em 15% a mão-de-obra especializada estrangeira e inserir 30% de novas empresas nacionais na indústria do crude angolano.

Não fosse a Covid-19 e o estado de emergência e o MPLA estaria pronto para cumprir, imediatamente, essas promessas. É isso, não é, Presidente João Lourenço?

São ainda prometidas medidas que permitam, além da diversificação económica, colocar Angola pelo menos 12 lugares acima da actual classificação internacional no ambiente de negócios, para chegar ao 168.º lugar nesta lista do Banco Mundial.

Elevar a 95% a taxa de cobertura do ensino primário a crianças em idade escolar, a 60% no ensino secundário e de 200.000 para 300.000 o número de estudantes no ensino superior no país, são outra metas que o MPLA promete.

Até lá os angolanos continuarão a ser gerados com fome, a nascer com fome e a morrer pouco depois… com fome. E tudo isto acontece porque o Povo é teimoso e não segue com rigor as recomendações do MPLA de João Lourenço. Se o fizesse já teria aprendido, por exemplo, a viver sem comer.

Não fosse a Covid-19 e o estado de emergência e o MPLA estaria pronto para cumprir, imediatamente, essas promessas. É isso, não é, Presidente João Lourenço?

Arrotar à fome e sonhar com uma… refeição

Em 2018, os próprios dados governamentais davam conta que Angola tinha uma taxa de desnutrição crónica na ordem dos 38 por cento, com metade das províncias do país em situação de “extrema gravidade de desnutrição”, onde se destacava o Bié, com 51%.

As províncias do Bié com 51%, Cuanza Sul com 49%, Cuanza Norte com 45% e o Huambo com 44% foram apontadas, na altura, pela chefe do Programa Nacional de Nutrição, Maria Futi Tati, como as que apresentavam maiores indicadores de desnutrição.

“São cerca de nove províncias que estão em situação de extrema gravidade de desnutrição, sete províncias em situação de prevalência elevada e duas províncias em situação de prevalência média”, apontou Maria Futi Tati, em Junho de 2018.

O mais recente relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) indicava que, em Angola, 23,9% da população passa fome. Isso mesmo. Passa fome.

Em Angola, segundo a FAO, “23,9% da população passa fome”, o que equivale a que “6,9 milhões de angolanos não tenham acesso mínimo a alimentos”. Isso mesmo, 6,9 milhões.

Não fosse a Covid-19 e o estado de emergência e o MPLA estaria pronto para cumprir, imediatamente, essas promessas. É isso, não é, Presidente João Lourenço?

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