O vice-Procurador-Geral da República angolano, Mota Liz, desvalorizou as preocupações sobre o artigo 333 do novo Código Penal, que condena tudo o que o regime entenda considerar ultraje ao Presidente da República e órgãos de soberania, referindo que a lei existe há mais de dez anos. A diferença está que, agora, o Presidente é outro e quer – se “haver” necessidade – mostrar que só conhece a razão da força.
Mota Liz, que falava à Rádio Nacional de Angola, manifestou-se surpreendido com a “polémica social que surgiu em volta deste artigo”, que disse tratar-se de uma norma repescada da Lei dos Crimes contra a Segurança do Estado, de 2010, para o novo Código Penal angolano.
“Não compreendo a razão de tanto alarido, esta norma existe há dez anos, como ela é vai completar cerca de dez anos agora em Dezembro desde a sua entrada em vigor em 2010, por via da Lei dos Crimes contra a Segurança do Estado, a Lei 23/10, a norma está lá”, indicou.
Segundo Mota Liz, esta norma tem uma relação intrínseca com os crimes em defesa da honra, os crimes contra a dignidade das pessoas, dos crimes contra a honra em particular, lembrando que o sistema de direito angolano segue o modelo germano-romano, o europeu continental, que igualmente defendem com intervenção de direito penal a honra e dignidade das pessoas.
“O nosso modelo penal é inspirado no Código Penal português e a parte final até foi feita por um penalista português, o professor Figueiredo Dias, e tem norma semelhante que defende a honra do Presidente da República de Portugal e em várias outras latitudes, que com mais ou menos diferença, protegem o mesmo bem jurídico e têm as mesmas penas. Não sei porque é que agora vêm vozes, que isso seria a maior ditadura, que ditadura? Onde é que vão buscar isso?”, questionou.
O magistrado frisou que “o legislador de 2010 quis dar uma protecção especial à figura do Presidente, que, embora a sua honra seja pessoal, mas enquanto titular de um órgão de soberania precisava de uma protecção especial contra os crimes de injúria, difamação, calúnia, para que a função Presidente, essencial para a realização do Estado de direito, esteja mais ou menos preservada”.
Mota Liz observou que esta solução, que não é única no direito penal angolano, “levanta alguma polémica mesmo entre os pensadores do direito penal”.
“Há quem entenda excessiva esta protecção e há quem entenda que não, porque não se defende apenas o Presidente da República, a norma protege os demais órgãos de soberania e os símbolos nacionais”, sublinhou.
De acordo com Mota Liz, o erro dos comentaristas, “as pessoas que vão criando uma espécie de hipocondria à volta disso”, é não perceberem que esta protecção também encontra limites na realização de outros direitos, nomeadamente no direito à liberdade de imprensa, à crítica.
“Não pressupõe, em nenhum momento se pode ler daquilo, que não se façam caricaturas, desde que se façam críticas à actuação do órgão de soberania e do Presidente da República, não está fechado à crítica”, reafirmou.
“O que se quer aqui é que esta crítica seja objectiva e seja ela manifestada em expressões, publicações, escritos, em cartoons, é preciso que ela seja objectiva e se reflicta a factos, a actuações, procedimentos, do Presidente da República ou qualquer órgão de soberania”, acrescentou.
Para Mota Liz, “não se pode é, de qualquer maneira, atirar para a lama a figura do Presidente da República”, embora esteja subjacente uma protecção de um interesse fundamentalmente individual que é a sua honra.
“Desde 2010 que a norma vigora, quem foi preso por fazer um cartoon, por fazer uma sátira? Fazem-se muitas tanto para o actual Presidente como o anterior”, disse.
O vice-Procurador-Geral da República considerou que a norma configura “uma espécie de crime qualificado em relação ao crime geral, daí que as penas no crime contra a honra vão até seis meses, podendo ser agravada de um terço ou de metade em função da publicidade ou da utilização dos meios de comunicação, e aqui vão de três meses a três anos”.
“E a norma nem sequer releva as injúrias em particular, em privado, é publicidade, é preciso que elas sejam publicitadas”, referiu.
Mota Liz disse que as pessoas conheciam a norma, que “esses mesmos juristas — o grosso deles são juristas que têm estado a criar esta polémica social – conheciam a norma da Lei 23 e conheceram a norma na compilação original que se fez do projecto de Código Penal, que foi à consulta pública”.
“As pessoas foram ouvidas, nenhuma voz se levantou, na altura, para dizer não e ele foi apreciado pelo parlamento, os nossos representantes consideraram que sim”, notou.
Instado a exemplificar que casos estão sujeitos à penalização desta norma, Mota Liz indicou: “se volta e meia disser que o Presidente é bandido, criminoso, foi buscar dinheiro de uma organização criminosa, uma série de coisas que não constituam verdade ou que o Presidente está gravemente doente, que vai morrer”.
“Não há coisa de outro mundo, é um falso alarme, não assusta, não atrapalha, não bloqueia, não inviabiliza a realização da crítica social, a realização da liberdade de imprensa, a divulgação de cartoons, de sátiras, pode sempre, mas, claro, nos limites estabelecidos na lei”, realçou.
Folha 8 com Lusa