Crianças (dos outros) são gente?

As agressões sexuais a crianças têm “crescido bastante” em Angola nos últimos anos e ocorrem mais frequentemente no seio familiar, segundo a investigadora Ana Panzo, autora da obra “Agressores Sexuais de Menores”, que será lançada na próxima sexta-feira. Na verdade, tudo o que não devia crescer… está a crescer como nunca. Os pobres são cada vez mais, os desempregados também. Se o Poder corrompe, o Poder absoluto corrompe ainda mais. E por cá o Poder está há 45 anos nas mãos dos mesmos, o MPLA.

Ana Isabel Marques Panzo é psicóloga dos Serviços Penitenciários de Angola e faz parte de uma unidade de investigação da província de Benguela, e decidiu aprofundar este tema, que inicialmente foi a defesa pública da sua dissertação de mestrado, devido à gravidade da situação.

Em declarações à agência Lusa, a autora sublinhou que “o número tem crescido bastante” e que são várias as motivações, sendo a principal a da satisfação sexual, o que a levou a concluir que a maioria dos casos no país são protagonizados por pedófilos, cujo comportamento se difere de um simples agressor sexual, que pratica o ato por se encontrar sob efeito de alguma substância psicoactiva.

“Consegui perceber que a maior parte dos agressores são pessoas muito próximas das vítimas, têm algum grau de parentesco, desde irmãos, pais, padrastos, tios”, referiu.

Em Angola, de acordo com a autora da obra, o seio familiar é onde ocorre a maior parte deste tipo de crime, que também pode acontecer em outros lugares, como escolas ou locais públicos.

A escritora e subinspectora prisional disse que a obra foi elaborada com base numa investigação que realizou a nove estabelecimentos penitenciários nas províncias do Bengo, Benguela e Luanda, iniciada em 2018 e concluída em finais do ano passado.

“Quando vamos para um estabelecimento penitenciário encontramos crime contra a pessoa ou crimes de violência. Então, a minha tarefa, muito árdua, foi a de ter que seleccionar quais são os indivíduos que agrediram crianças e os que agrediram pessoas adultas do ponto de vista sexual. E os agressores que eu encontrei nos estabelecimentos, os que agrediram sexualmente os menores, o número era muito considerável”, indicou.

Segundo Ana Panzo, a obra com 115 páginas traz o contexto e perfil dos agressores sexuais de crianças, uma resenha sobre os vários tipos de maus-tratos a que as crianças estão propensas, onde ocorrem e as causas.

“Falo também um bocadinho sobre o perfil dos agressores sexuais de menores, quem são os indivíduos, como atraem as vítimas para si, quais são os processos que passam até à consumação do ato e falo das consequências da agressão sexual e no final apresento um estudo que foi realizado nos vários estabelecimentos a nível nacional com os agressores sexuais de forma presencial”, explicou.

A crença no feiticismo tem sido muitas vezes evocada por agressores sexuais de menores no país. Questionada se observou respostas como estas, Ana Pazo confirmou, salientando que muitos “alegaram que eram forças ocultas, que não sabiam por que motivo, carga de água, eles agrediram as crianças”.

“Mas com uma intervenção bem mais profunda acabamos por saber que as respostas dadas por eles são simplesmente para tirar-lhes a culpa, então preferem dizer que estavam enfeitiçados, que estavam possuídos por alguma força oculta, do que dizer que é a satisfação sexual”, frisou.

A obra traz relatos de reclusos que agrediram crianças desde os 2 até aos 16 anos.

“É importante realçar que esses indivíduos têm consciência do que fazem, mas ainda assim devemos assumir que são indivíduos saudáveis do ponto de vista físico, mas são doentes do ponto de vista psicológico, o que não lhes retira a culpa”, considerou.

Instada a contar um caso que a tivesse marcado no trabalho, a psicóloga lembrou-se do indivíduo que violou uma criança de 4 anos, alegando que a criança o assediava.

“É impressionante, fiquei de boca aberta, perguntei como é que uma criança de 4 anos o assediava e ele disse que sempre que a criança se levantava – viviam num quintal comum -, saía da casa dela nua e ficava a rodear pelo quintal nua”, disse.

Ana Panzo apontou também como elementos facilitadores dessas situações, principalmente a desestruturação das famílias.

“Temos aquelas famílias em que há um alcoólatra, por exemplo, o padrasto ou o pai, e ele sob efeito dessa substância é capaz de agredir. Temos outros motivos, famílias super alargadas, onde não há controlo, supervisão, onde não há acima de tudo abertura, porque é necessário que haja abertura dentro do seio familiar para que quando acontecer situações desta natureza a criança esteja à vontade e possa encontrar no adulto a possibilidade de falar e não ser por exemplo reprimida”, opinou.

De acordo com Ana Panzo, estes casos atingem todas as camadas sociais, o que difere apenas é que as denúncias acontecem em maior número nas famílias mais carenciadas.

“Tive também um caso de um indivíduo que agrediu sexualmente a sua neta, um indivíduo que ocupava um cargo aceitável a nível social, mas chegou a agredir a própria neta”, indicou.

Uma das recomendações que deixa na obra é sobre a necessidade de se denunciar estas práticas, manifestando satisfação porque tem aumentado a cultura da denúncia pelas famílias.

“Já se está a falar sobre o caso, já se criaram linhas de apoio para as pessoas denunciarem, as famílias já começaram a ter consciência que é um caso que não deve ser gerido internamente, que é uma situação que atinge a todos”, frisou.

Segundo dados divulgados recentemente pelo Ministério da Família e Promoção da Mulher de Angola, de Janeiro a Julho deste ano 2.353 crianças sofreram maus-tratos, entre as quais 575 abusos sexuais.

Crianças que nunca serão gente

Pelo menos cinco mil crianças foram vítimas de violência em Angola, de Janeiro a Outubro de 2019, com Luanda a liderar os casos, sendo crescente o número de menores envolvidos na prostituição.

“Os dados que existem não são só de crianças, são de mulheres envolvidas e que no meio dessas senhoras há crianças, há menores. As menores envolvidas na prostituição existem e a situação é preocupante”, afirmou em Dezembro de 2019 o director geral do Instituto Nacional da Criança (INAC) angolano, Paulo Kalesi.

Sem quantificar, o responsável deu conta que casos de crianças envolvidas na prostituição foram registados no distrito urbano do Zango, município de Viana, em Luanda, afirmando que na globalidade as “estatísticas de violência contra a criança aumentaram”.

Segundo explicou, “só em 2018 havia registo de 4.000 casos, agora só de Janeiro a Outubro de 2019 são já 5.000 casos” com Luanda com o maior registo seguida pelas províncias de Benguela, Huíla, Huambo e Cabinda.

Fuga à paternidade, abusos sexuais, queimaduras nos membros superiores ou inferiores, consumo de bebidas alcoólicas e inclusive mortes constam das tipificações de violência contra à criança em Angola.

Segundo Paulo Kalesi, para dar resposta aos casos, o INAC tinha já elaborado um programa denominado Fluxograma de Resposta de Casos de Violência contra a Criança para “uniformizar os procedimentos para poder atender situações concretas que põem em causa o bem-estar da criança”.

“A nível dos municípios já há estruturas com esse fim e é nessa perspectiva que diria que há um acompanhamento permanente, e por isso é que esses casos vêm à tona”, adiantou.

A problemática de crianças de rua também preocupa o Instituto Nacional da Criança angolano que, só em Luanda, nos locais sob acompanhamento da instituição estavam catalogadas mais de 450 crianças.

“Mas, na generalidade, olhando para há cinco ou seis anos, a nível do país diminuiu muito o número, mas durante o ano passado e este ano, só em Luanda, há um ligeiro aumento, mas não em dimensão grande”, concluiu.

Apenas 25% das crianças angolanas com menos de cinco anos são registadas pelos pais, motivo que levou o Governo do MPLA (em boa verdade desde há 45 anos que Angola só tem governos do MPLA) a lançar uma campanha de incentivo ao registo de nascimento no país. Como se trata de um país pobre (embora tenha o maior número de ricos por metro quadrado), era bom que a comunidade internacional desse mais e mais ajudinhas…

A campanha, denominada “Paternidade Responsável, Eu Apoio“, encabeçada pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos, com o apoio, obviamente financeiro, da União Europeia (UE) e técnico do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) visa fazer frente ao grande número de crianças no país sem registo de nascimento.

No final de 2018, o titular da pasta da Justiça e Direitos Humanos de Angola, Francisco Queiroz, disse que um estudo realizado com o apoio do Unicef dá conta de que poucos pais compareceram nos postos de registo das maternidades para fazerem o registo de nascimento dos filhos, “deixando as mães numa situação de abandono com os filhos nas mãos“.

“Em consequência disso, muitas mães optam por não registarem os filhos sem a presença do pai, porque é uma questão cultural também, por sentirem que incorrem em desobediência ao parceiro, caso façam o registo sozinhas”, referiu o ministro.

A pesquisa foi realizada em 70 maternidades do país e os dados apontam que “poderia haver talvez o triplo de registos, se os pais estivessem presentes”, salientou o ministro.

Francisco Queiroz disse que as estatísticas indicam que, desde a abertura dos postos de registos nas maternidades, a 7 de Julho de 2017, foram registados apenas 128 mil menores, “um número ínfimo para o universo de crianças que nasce todos os anos e para o grande grau de fertilidade que a população apresenta”. “Esperamos com esta campanha influenciar positivamente para uma mudança de atitude, no sentido de os pais respeitarem os direitos dos seus filhos”, disse o governante angolano, apelando à participação de toda a sociedade.

O estudo realizado no âmbito do “Programa Nascer com o Registo” mostrou que a fuga à paternidade é uma das causas do baixo número de crianças registadas.

Em declarações à imprensa, Francisco Queiroz referiu que o registo é gratuito, porque o Governo pretende estimular “o registo, por causo do forte impacto que tem na cidadania”.

Folha 8 com Lusa

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