Juristas angolanos consideraram hoje um retrocesso à liberdade de expressão, o polémico artigo 333º do novo Código Penal do país, que condena o ultraje à figura do Presidente da República e órgãos de soberania. Por outras palavras, o Presidente (na sua tripla qualidade de também Presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo) deixa de ser uma Pessoa Politicamente Exposta e ganha o título de, talvez, o intocável deus dos deuses…
A Lusa ouviu alguns juristas sobre as discussões em torno deste artigo, como Sebastião Vinte e Cinco, que considera esta norma uma ameaça para as liberdades de expressão e de imprensa. Ou seja, nada de novo. Há 45 anos que que que, no caso de Angola, a ditadura quer calar os mensageiros por incapacidade para entender a mensagem.
“É um claro retrocesso, temos de convir que é um retrocesso ao nível dos direitos e garantias, mais em concreto para a liberdade de expressão e de imprensa”, disse o advogado, sublinhando que prevê para os próximos tempos “muitos excessos de poder por conta deste artigo”.
Para Sebastião Vinte e Cinco, neste caso, a oposição e as instituições, que ao abrigo da lei e da Constituição têm a faculdade de requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalidade das normas, “têm de prestar esse serviço e levarem a questão a tribunal, para ver se se declara inconstitucional essa norma”. É claramente inconstitucional, mas como a Constituição é o que o MPLA quer que ela seja…
“Se não ocorrer, estarão a consentir numa medida que é simplesmente retrógrada para o contexto universal”, frisou, admitindo que é necessário “haver sempre regras”, referindo-se ao aumento nos últimos tempos do uso da imagem do Presidente da República nas redes sociais em críticas à situação socioeconómica e política do país.
Contudo, considera que “uma coisa é limitar a liberdade de expressão das pessoas físicas, enquanto individualmente consideradas, e outra coisa é, no exercício de profissões nobres, como é o jornalismo e a reportagem, que têm o dever de trazer informações para todo o mundo”.
“Se amordaço um determinado sector da comunicação social estou a criar condições para trazer um tipo de informação só, haverá um monólogo e tudo o resto que estiver em direcção diferente ou contrária pode ser criminalizado, a este nível temos aqui um receio muito grande e fundado”, referiu.
Já Benja Satula, director do Centro de Investigação do Direito da Universidade Católica de Angola, lembrou que o modelo do novo código estava desenhado para a era do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, e o actual chefe de Estado angolano está a responder como o autor.
Segundo Benja Satula, “como as pessoas que estão a assessorar (o Presidente João Lourenço) são as mesmas, o sistema é o mesmo, ele não teve tempo de ver as repercussões”.
“Se o código tivesse sido aprovado na era de José Eduardo dos Santos, provavelmente eles com toda a máfia que tinham de controlar a comunicação, as pessoas e os movimentos dissonantes, teriam abafado isto, só que o Presidente João Lourenço não tem esta máquina e agora está assumir e vai levar como se tivesse sido ele a chancelar. Ele promulgou é como se estivesse de acordo, esse é que é o grande problema, infelizmente. Isso é azar, é o que eu chamo”, frisou.
Por sua vez, o ex-bastonário da Ordem dos Advogados de Angola, Inglês Pinto, realçou que o código corresponde àquilo que é mais moderno, em termos de doutrina penal, e atende aos novos valores, atendendo a que o código anterior, de 1886, estava desactualizado.
Inglês Pinto considerou que o problema é a sua adaptação à realidade concreta do país, podendo acontecer o mesmo que ao código de 1886, “que tinha institutos que não eram aplicados” e quase ridículos como o crime do adultério. “Aquilo nunca foi aplicado”, sublinhou.
“É o problema da realidade concreta do país, quer da realidade sociopolítico e económica como cultural. É preciso ter muito em atenção a esse aspecto, não obstante o facto de ser moderno, faz parte da legislação de outros países, nós temos uma outra realidade”, disse.
Como exemplo mais concreto da sua apreciação, o jurista falou do artigo 333º, que do ponto de vista político, pode condicionar a actividade dos cartoonistas.
“É evidente que como se protege a honra, o bom nome, de qualquer cidadão, o Presidente também tem este direito mas temos que ter atenção que há entidades, do ponto de vista político, que podem ser submetidas a análises, do ponto de vista literário, de criatividade pela personalidade”, defendeu.
O ex-bastonário da Ordem de Advogados de Angola concorda que se um indivíduo utilizar expressões de injúria, de falta de ética e urbanismo, é legítimo a sua penalização, mas não quando se trata de uma caricatura.
“E o que acontece é que as pessoas vão fazendo interpretação extensiva, vão fazer interpretação de excesso de zelo e podem pôr em causa a liberdade de criação”, realçou.
O novo Código Penal e o Código de Processo Penal foram publicados em Diário da República a 11 de Novembro para entrar em vigor dentro de 90 dias, em Fevereiro do próximo ano.
No MPLA não há PPE?
Falemos de Pessoas Politicamente Expostas (PPE) como se Angola fosse (não é o caso) um Estado de Direito Democrático. Isto porque, com acentuado vigor nos últimos tempos, não há por cá PPE, o que coloca todos os dirigentes (com especial relevo para o Presidente) acima (muito acima) dos cidadãos e, por isso, pertencem a uma casta intocável que apenas pode ser venerada.
Em abstracto, a Constituição consagra a liberdade de expressão e informação e a liberdade de imprensa como direitos fundamentais, não podendo o exercício destes direitos ser impedido, ou limitado, por qualquer tipo ou forma de censura.
Os jornalistas têm (se acaso se falasse num Estado de Direito Democrático) o direito de acesso a locais abertos ao público desde que para fins de cobertura informativa, não podendo ser impedidos de entrar ou permanecer nos locais referidos quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional, sem outras limitações além das decorrentes da lei.
O direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito à imagem encontram-se protegidos constitucionalmente. A extensão do âmbito de tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada varia em função da natureza do caso e da condição das pessoas (notoriedade, exercício de cargo público, Pessoas Politicamente Expostas, etc.).
A foto de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem consentimento dela, não carecendo desse consentimento quando assim o justifique a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
Os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos nos casos expressamente admitidos pela Constituição, sendo que qualquer intervenção restritiva nesse domínio, mesmo que constitucionalmente autorizada, apenas será legítima se justificada pela salvaguarda de outro direito fundamental ou de outro interesse constitucionalmente protegido, devendo respeitar as exigências do princípio da proporcionalidade e não podendo afectar o conteúdo essencial dos direitos.
O que diz a Constituição de Angola
Artigo 32º
(Direito à identidade, à privacidade e à intimidade)
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à nacionalidade, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva de intimidade da vida privada e familiar.
2. A lei estabelece as garantias efectivas contra a obtenção e a utilização, abusivas ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e às famílias.
Artigo 40.º
(Liberdade de expressão e de informação)
1. Todos têm o direito de exprimir, divulgar e compartilhar livremente os seus pensamentos, as suas ideias e opiniões, pela palavra, imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito e a liberdade de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício dos direitos e liberdades constantes do número anterior não pode ser impedido nem limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
3. A liberdade de expressão e a liberdade de informação têm como limites os direitos de todos ao bom nome, à honra e à reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, a protecção da infância e da juventude, o segredo de Estado, o segredo de justiça, o segredo profissional e demais garantias daqueles direitos, nos termos regulados pela lei.
4. As infracções cometidas no exercício da liberdade de expressão e de informação fazem incorrer o seu autor em responsabilidade disciplinar, civil e criminal, nos termos da lei.
5. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, nos termos da lei e em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.
Pessoas Politicamente Expostas (PPE)
As PPE são aquelas pessoas que, segundo a definição do Parlamento Europeu (PE), “podem representar um risco mais elevado de corrupção pelo facto de exercerem ou terem exercido funções públicas importantes”, como chefes de Estado, chefes de governo, ministros, membros dos órgãos de direcção de partidos políticos, juízes de tribunais supremos e deputados, assim como cônjuge, pais, filhos e os cônjuges destes últimos.
É claro que a definição do Parlamento Europeu não se aplica a Angola. Aliás, todo o Direito Internacional só se aplica a Angola no que o regime do MPLA entender que se deve aplicar. E pode mesmo acontecer que se aplique aos partidos da Oposição e não ao partido do Governo.
Dando como válida esta definição do PE, presumimos que a Josefina Zungueira seja uma PPE, ao contrário de João Lourenço que apenas é ao mesmo tempo chefe de Estado, chefe de Governo e líder do MPLA.
A lei das PPE é a principal responsável, por exemplo, pelo aparecimento de boa parte dos inquéritos criminais relacionados com titulares de cargos políticos e públicos de Angola. Manuel Vicente, ex-vice-presidente da República, João Maria de Sousa, procurador-geral, e diversos generais com cargos políticos que começaram a ser investigados pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) por suspeitas de branqueamento de capitais devido às comunicações obrigatórias que os bancos do sistema financeiro português são obrigados a fazer para a Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária – e que levam sempre à abertura de um pré-inquérito para averiguar se existem suspeitas fundadas para uma investigação formal no DCIAP.
A directiva europeia original de 2005 foi actualizada em Maio de 2015 com uma directiva do Parlamento Europeu que alarga de forma significativa o âmbito de quem tem acesso às informações relacionadas com as PPE.
Com as novas regras, os países da União Europeia são obrigados a manter um registo central com informações sobre os beneficiários efectivos de sociedades, fundações e outras estruturas, visando identificar as pessoas que estão, na realidade, por detrás dessas entidades.
Folha 8 com Lusa