O ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, negou hoje que o Governo tenha recebido um protesto diplomático de Angola na sequência dos incidentes ocorridos no passado domingo no Bairro da Jamaica. Bem antes de David Mendes já Bento Kangamba estava farto dos… portugueses.
Questionado sobre se poderia confirmar uma notícia avançada pela Rádio Nacional de Angola (RNA), segundo a qual as autoridades de Luanda enviaram um protesto diplomático ao Governo português na sequência da intervenção policial, da qual resultaram vários feridos e a detenção de um cidadão angolano, Augusto Santos Silva respondeu que podia confirmar “o contrário”.
“Confirmo o contrário, que não houve. Protesto formal apresentado pelas autoridades angolanas junto do Estado português, portanto através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, posso confirmar que não houve, falando como estou a falar, às 13:17, hora de Bruxelas, 12:17 hora de Portugal”, declarou o ministro, que falava no final de uma reunião ministerial da UE com a União Africana.
Questionado sobre se não houve sequer uma abordagem informal, Santos Silva apontou que nesta reunião ministerial Angola fez-se representar ao nível do embaixador, “que aliás é o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros” e seu “colega e amigo Georges Chicoti”, que teve “o prazer de cumprimentar”, mas negou que o assunto tenha sido abordado. Santos Silva concluiu que se houver um pedido de esclarecimentos, os mesmos serão “evidentemente prestados”.
“É natural que qualquer pedido de esclarecimento de autoridades angolanas – da mesma forma que nós fazemos iguais pedidos de esclarecimento quando há cidadãos portugueses que se vêem envolvidos em assuntos de segurança – possam ser apresentados, e serão evidentemente prestados”, afirmou.
Se Angola, nomeadamente a Embaixada em Portugal, não protestou deveria ter protestado. Desde logo porque ficaríamos a saber se os diplomatas angolanos sabem o que é e onde fica o Bairro da Jamaica, podendo assim dizer quantos angolanos ali residentes estão recenseados, explicando também se cidadãos de origem angolana mas nascidos em Portugal são portugueses, angolanos, ou têm a dupla nacionalidade.
A Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa (PGDL) anunciou que o Ministério Público (MP) abriu um inquérito aos incidentes ocorridos no domingo entre populares e elementos da PSP, no bairro social Jamaica.
“Os acontecimentos deste fim-de-semana no Bairro da Jamaica deram origem a um inquérito, o qual é dirigido pelo Ministério Público do Seixal. No âmbito desse processo serão investigados todos os factos que cheguem ao conhecimento do Ministério Público, incluindo os relacionados com a actuação policial. Decorrem, neste momento, diligências de recolha de prova”, refere uma nota publicada na página da internet da PGDL.
A nota indica que, na sequência dos incidentes, “foi efectuada uma detenção, por resistência e coacção sobre funcionário”, acrescentando que o “detido foi sujeito a primeiro interrogatório não judicial”, o qual ficou com a medida de coacção de termo de identidade e residência.
Na manhã de domingo, a polícia foi alertada para “uma desordem entre duas mulheres”, tendo sido deslocada para o local uma equipa de intervenção rápida da PSP de Setúbal. Na ocasião, um grupo de pessoas reagiu à intervenção dos agentes da PSP quando estes chegaram ao local, atirando pedras.
Na sequência destes incidentes, ficaram feridos, sem gravidade, cinco civis e um agente policial, que foram assistidos no Hospital Garcia de Orta, em Almada.
A PSP decidiu abrir um inquérito para “averiguação interna” sobre a “intervenção policial e todas as circunstâncias que a rodearam”, da qual resultaram, além dos feridos, um detido, que saiu em liberdade.
Pelo seu lado, a associação SOS Racismo anunciou que iria apresentar uma queixa ao MP. A fazer fá no nome da entidade (SOS Racismo), esta entende que se terá tratado de um caso de racismo, pois se assim não é deveria estar quieta e calada. É certo que, na sua óptica, foi oportuno confundir a beira da estrada com a estrada da Beira e, assim, conseguir algum tempo de antena.
A SOS Racismo existe desde 1990 e, segundo diz, “propõe uma sociedade mais justa, igualitária e intercultural onde todos, nacionais e estrangeiros com qualquer tom de pele, possam usufruir dos mesmos direitos de cidadania”. Isto significaria que se no incidente só tivessem participado cidadãos brancos, esta organização continuaria impávida e serena sentada na beira da estrada…
Na sequência destes acontecimentos, cerca de duas centenas de moradores do Bairro da Jamaica deslocaram-se, na segunda-feira, até Lisboa, para protestarem contra a actuação policial.
Quatro destas pessoas acabaram detidas pelo apedrejamento de elementos da PSP, durante o protesto, em frente ao Ministério da Administração Interna, para dizer “basta” à violência policial e “abaixo o racismo”.
Poucas horas após estes confrontos, a polícia deteve uma pessoa na sequência de incidentes registados em Odivelas, na Póvoa de Santo Adrião e em Santo António dos Cavaleiros, no distrito de Lisboa, onde diversas viaturas foram incendiadas e 11 caixotes do lixo foram destruídos com recurso a ‘cocktails molotov’, segundo a PSP.
No comunicado, a PSP acrescenta que já durante a madrugada, pelas 03:15, no bairro da Bela Vista, em Setúbal, foram lançados três cocktails molotov contra uma esquadra. Não esclarece, contudo, se os “cocktails molotov” eram brancos ou pretos. Mas se o SOS Racismo não apareceu eram, com certeza… brancos.
Na sequência destes incidentes, a PSP reforçou o dispositivo policial nas zonas abrangidas para garantir o clima de segurança e a tranquilidade e normalidade a todos os residentes.
A tese comum de Kangamba e David Mendes
O general, sobrinho de Eduardo dos Santos, Bento dos Santos Kangamba acusou, no dia 26 de Outubro de 2015, Portugal de ingerência nos assuntos angolanos, avisando que Lisboa não tinha “consciência jurídica e política” e acrescentando que Angola já não era “escravo” de Portugal.
Tudo indica que, na altura, o Estado-Maior das Forças Armadas de Portugal colocou os seus militares em alerta máximo, não fosse o general Kangamba decidir invadir pela via militar (pela económica e financeira já o fez há muito) o Terreiro do Paço.
Sobrinho do ex-Presidente José Eduardo dos Santos e tido ao tempo como o homem forte da mobilização das estruturas acéfalas do partido no poder desde 1975, Bento dos Santos Kangamba falava (sim, é verdade, o general também fala) sobre o caso dos 15 activistas detidos desde Junho e o apoio público e mobilização portuguesa.
“Se eu fosse português pensava 20 ou 30 vezes antes de falar sobre um estrangeiro. Primeiro tenho que arrumar a minha casa e depois falar sobre os outros. Portugal é um grande país, tem grandes políticos, mas neste momento está em debandada, não tem consciência jurídica e política para se defender nem defender os angolanos. Há necessidade de haver calma que a Justiça será feita”, apontou o general, empresário e figura de topo no que (não) tange a honorabilidade cívica, política, social e militar.
Isso mesmo foi, aliás, reconhecido pela própria Interpol que o incluiu no “quadro de honra” dos procurados por tráfico de mulheres e prostituição.
Também a Polícia francesa atestava que o general Kangamba era um impoluto cidadão. Segundo a Polícia, em 14 de Junho de 2013, dois carros foram apreendidos, com poucas horas de diferença, em portagens no sul de França. Num deles, foram encontrados dois milhões de euros, em quarenta sacos de cinquenta mil cada. No outro, foram encontrados mais 910 mil euros. Oito homens foram detidos. Pelo menos cinco deles, angolanos, cabo-verdianos e portugueses, estariam relacionados com o general Kangamba. Racistas, estes franceses.
“Presos políticos não há, nunca existiram. Não vejo a UNITA, a CASA-CE, a FNLA, o PRS, a reclamarem os seus militantes presos. Os que estão presos são jovens que algumas pessoas estão a incentivar para fazerem arruaça que não está prevista na nossa Constituição”, afirmou Kangamba em Julho de 2015, acrescentando – certamente à procura da 13ª estrela de general – que na base da agitação “com cinco ou seis miúdos” estão “outros partidos que querem subir no poder a todo o custo”.
Desta vez estava em causa o apoio de vários sectores da vida portuguesa à situação destes 15 activistas detidos, incluindo Luaty Beirão, que nesse dia cumpria o 36º dia em greve de fome exigindo aguardar julgamento em liberdade.
Em Portugal sucederam-se – sem a devida autorização de Kangamba e seus cangaceiros – vigílias e manifestações de apoio aos activistas detidos, invocando sempre a situação de Luaty Beirão, inclusive com protestos junto à embaixada de Angola em Lisboa, que não se situa no Bairro da Jamaica, apelando à libertação dos 15 elementos.
O também, na altura, secretário do comité provincial de Luanda do MPLA para a Área Periférica e Rural, cargo de relevância nacional e internacional, acusou Portugal de continuar a ingerir-se nos assuntos angolanos.
“As pessoas são as mesmas, tirando duas figurinhas bonitinhas que estão a aparecer aí no Bloco de Esquerda. Mas as pessoas que foram contra Angola são as mesmas [agora]. Eles acham que Angola até hoje é escravo, que nós somos escravos de Portugal (…) não podemos ser ouvidos e que Portugal é que manda, que Portugal é que diz e que Portugal é que faz. Os portugueses têm que saber que Angola é um Estado soberano”, apontou Kangamba em declarações à Lusa.
“As estruturas da Justiça [angolana] funcionam. Deixem que a Justiça faça o seu julgamento e o resto vamos ver. O que não se admite é o que os portugueses estão a fazer. Estão a acudir a um que tem a mesma cor e os outros que têm cor de carvão ninguém está-lhes a acudir. Isso é feio e é uma coisa que aqui em Angola já não se vive”, disse ainda o general sobrinho do “querido líder”.
Kangamba referia-se em concreto aos apelos à libertação de Luaty Beirão, luso-angolano, que devido ao estado de saúde fora transferido há duas semanas para uma clínica privada, sob detenção.
“Vocês estão a falar do Luaty Beirão, mas estão a esquecer-se que Angola também tem muita gente presa, pessoas com nome. Até generais que estão acusados em crimes, à espera que a Justiça decida e ninguém sai para se manifestar”, criticou.
Reafirmando que o tempo é para “deixar a Justiça trabalhar”, o dirigente do MPLA apelou a Portugal para “acompanhar os angolanos como irmãos”, ao mesmo tempo que rejeita as acusações de ingerência política neste processo.
“Isto não tem nada a ver com o Presidente da República, não tem nada a ver com nenhum partido. Isso tem a ver com a Justiça. A justiça é autónoma”, atirou, garantindo que em Angola “há democracia e liberdade”.
“Todos aqueles que estão falar em Portugal têm uma faca no coração, que eu e outras pessoas é que ficamos com as coisas dos pais desses senhores [com a independência de Angola]. É claro que fomos nós”, rematou.
E com o aparente mudar da maré, Bento Kangamba passou o testemunho a David Mendes que, em Dezembro, disse “Estou farto dos portugueses em Angola”.