O hino, o MPLA e a PIDE

A proposta de letra para o Hino Nacional, elaborada por Eduardo do Nascimento, em 1975, foi rejeitada, por unanimidade, pelo Bureau Político do MPLA, porque o autor foi considerado um “colaborador da PIDE”, afirma o antigo primeiro-ministro Lopo do Nascimento. E então, por exemplo, Manuel Pedro Pacavira?

Lopo do Nascimento reagia a uma notícia publicada no Jornal de Angola, no dia 25 de Novembro, na qual João Gonçalves destacava a figura de Eduardo Nascimento como um “patriota” que “fez o primeiro esboço para o Hino Nacional”, que só não veio a ser entoado por razões ainda desconhecidas.

Segundo Lopo do Nascimento, na altura secretário do Bureau Político do MPLA e primeiro-ministro do Governo de Transição, foi realizado um concurso para a recepção de propostas para a letra do Hino, quando o país se tornasse independente. Na referida reunião, explica, a proposta de letra apresentada por Eduardo do Nascimento “foi considerada aceitável para o futuro hino, mas foi rejeitada, por unanimidade, pelo BP, porque o mesmo, face aos documentos apresentados pela Segurança, foi considerado um ‘colaborador da PIDE’”.

Manuel Pedro Pacavira (que faleceu em Lisboa a 12 de Setembro de 2016) foi membro do Comité Central do MPLA e deputado à Assembleia Nacional. Mas, ao contrário das louvaminhas do regime (e da tese de Lopo do Nascimento) e na esperança de que um dia o MPLA compreenda que a verdade dói mas cura, relembremos outros dados históricos. A verdade exige-o.

Recordemos, tratando-se de uma relevante figura do MPLA e do regime, alguns apontamentos da sua biografia.

Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de Havana, foi Ministro da Agricultura e dos Transportes. Foi, ainda, Representante de Angola na ONU, Governador do Cuanza Norte e Embaixador de Angola em Cuba e em Itália.

No entanto foi, antes de tudo isso, colaborador da PIDE como consta da folha 84 do Processo-Crime nº 554/66 existente na Torre do Tombo, em Lisboa.

Pacavira terá começado a colaborar com a PIDE por volta de 1960, pois, quando, em Março daquele ano, se deslocou a Brazzaville para se avistar com Lúcio Lara, que vinha de Conakry mandatado pelo Comité Director do MPLA, já prestava serviços à polícia política portuguesa.

Por isso, no trajecto até à fronteira do Congo, terá sido acompanhado pelo sub-inspector Jaime de Oliveira que ficou inteirado da documentação que levava. O mesmo aconteceu, no regresso, já no mês de Maio.

Aquele oficial da PIDE aguardava-o no posto de fronteira e ali mesmo tomou conhecimento de toda a papelada trazida. Os papéis não foram retirados a Pacavira mas sim reproduzidos. De modo que, a 8 de Março, na reunião do MINA (Movimento pela Independência Nacional de Angola) realizada na sua residência e em que esteve presente Agostinho Neto, os papéis foram exibidos aos membros da direcção daquela organização. Entretanto, as cópias tinham passado a figurar nos arquivos da PIDE.

No final de Maio realizou-se uma segunda reunião, desta vez em casa do Fernando Coelho da Cruz. Nessa altura, Joaquim Pinto de Andrade, membro da direcção, ter-se-á apercebido da presença da PIDE nas imediações por sinais considerados suspeitos: ao entrar na casa, foi ofuscado pelas luzes de um automóvel, o que o impediu de ver fosse o que quer que fosse em seu redor. [Testemunho do próprio Joaquim Pinto de Andrade, nos anos noventa, em Lisboa].

As detenções de Joaquim Pinto de Andrade e de Agostinho Neto ocorreram no dia 8 de Junho. No decurso dos interrogatórios e, principalmente, na sessão de acareação com Pacavira, Joaquim Pinto de Andrade afirmava não ter a mínima dúvida de que o denunciante de todos eles fora o “Pakassa”, nome de código de Pacavira [Testemunho do próprio Joaquim Pinto de Andrade, nos anos 90, em Lisboa] .

Num processo existente nos arquivos da PIDE depositados em Lisboa, na Torre do Tombo, consta uma nota que reza o seguinte: «Por divulgação de Lourenço Barros [não se sabe quem seja] teria sido o Patrício de Carvalho Sobrinho [outro desconhecido] a pessoa que denunciou o dr. Agostinho Neto».

Ora a folha do processo com aquela nota é apenas uma fotocópia, em que o nome do informador está expurgado. Conclusão: nem o Lourenço Barros nem o Patrício de Carvalho Sobrinho devem ser figuras reais. E a nota em causa parece ser estratagema frequentemente usado pela PIDE para encobrir os seus informadores. Claro que, na folha original, deve constar o nome de Pacavira [Torre do Tombo, Lisboa, Arquivos da PIDE, Processo nº 11.15, MPLA, pasta A].

Pacavira foi membro fundador da «Tribuna dos Musseques». A denuncia, feita por Nito Alves nas «Treze Teses em Minha Defesa», pode ser confirmada nos arquivos existentes na Torre do Tombo.

O jornal foi programado por São José Lopes, o responsável máximo pela PIDE, num relatório em que declara estar totalmente de acordo com as soluções apresentadas pelo «grupo de trabalho» que estudara os vários aspectos sociais e políticos dos musseques de Luanda.

No que respeitava à propaganda, além da realizada pela rádio (que não alcançaria os objectivos desejados pelos colonialistas), São José Lopes propunha que se lançasse um jornal do musseque [Torre do Tombo, Lisboa, Arquivos da PIDE, Processo 7477 CI(2), Comando de Operações Especiais, pasta 22, fls. 4 ss.).

Aí está, pois, a célebre «Tribuna dos Musseques», um jornal da PIDE, como afirma a Embaixada de Angola na biografia do embaixador Adriano João Sebastião.

De resto, nas declarações que faz e assina no dia 7 de Junho de 1966, Manuel Pedro Pacavira diz estar «totalmente regenerado, com arrependimento sincero e completo, de todos os seus erros» e oferece à PIDE «toda a sua colaboração, estando pronto a obedecer, leal e cegamente, a tudo o que lhe for ordenado».

E para provar a sua lealdade afirma não se importar «de falar em público contra as organizações subversivas que lutam pela independência de Angola». E até «gostaria de redigir e fazer publicar, sob a sua autenticidade, artigos de carácter patriótico, em repulsa das falsas promessas dos pretensos libertadores de Angola» [Torre do Tombo, Lisboa, Arquivos da PIDE, Processo Crime nº 554/66, f. 84].

Pacavira seria, pois, um agente duplo, simultaneamente elemento do MPLA e informador da PIDE, ora trabalhando para uns ora servindo outros. Mas a polícia não lhe perdoa a duplicidade. De modo que, volta e meia, o mandam de novo para a cadeia.

Facto saliente prende-se com a figura de Cândido Fernandes da Costa, que pertenceu ao elenco directivo do MINA. Há muitos anos que, em Luanda, a morte de Cândido, ainda antes da independência nacional, terá envolvido Pacavira, se bem que, neste caso, possa ter agido a mando de alguém.

Mas Pacavira foi o braço executor. Tal como no fuzilamento em praça pública do Virgílio Francisco “Sotto-Mayor”. Um e outro, ao que parece, seriam figuras muito incómodas, especialmente o Cândido Fernandes da Costa, executado numa tocaia.

Com efeito, em 1975, segundo se lê numa autobiografia do antigo embaixador Adriano Sebastião, Pacavira mandou fuzilar um antigo companheiro de prisão, Virgílio Francisco (Sotto-Mayor), com base numa falsa acusação [«Dos Campos de Algodão aos Dias de Hoje»].

Fiel aos princípios de denunciante, Pacavira terá sido «dos primeiros a denunciar a existência de uma conjura “nitista” no interior do MPLA» (Mabeko Tali, O MPLA perante si próprio, II, p. 202). E ter-se-á destacado depois como mandante do terror.

No dia 29 de Outubro de 2008, Pacavira foi um dos presos angolanos a intervir no Colóquio Internacional sobre o Tarrafal, colóquio este promovido pelo movimento «Não Apaguem a Memória» e pela Associação 25 de Abril e realizado na Assembleia da República Portuguesa.

É autor do livro “José Eduardo dos Santos, uma vida dedicada à pátria” (2006).

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