MPLA no banco dos réus

A defesa do ex-governador do Banco Nacional de Angola, Valter Filipe da Silva, que começou hoje a ser julgado por uma alegada transferência irregular de 500 milhões de dólares, quer ouvir o ex-Presidente, José Eduardo dos Santos, para apurar se orientou a operação. Também não seria despiciendo ouvir (se tal fosse possível) alguns ministros do anterior governo, caso de João Lourenço.

O caso, em que são também co-arguidos o filho do antigo chefe do Estado José Filomeno “Zenú” dos Santos, o empresário Jorge Gaudens e o ex-director do Departamento de Gestão de Reservas do BNA, António Samalia Bule, envolve uma suposta transferência de 500 milhões de dólares (452 milhões de euros) do Banco Nacional de Angola para um banco britânico, em Setembro de 2017, para financiar uma operação ligada à constituição de um fundo estratégico

José Filomeno dos Santos, na altura presidente do Fundo Soberano de Angola, foi constituído arguido em Março de 2018, na mesma altura que o antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA) Valter Filipe da Silva.

Na primeira sessão do julgamento, que começou hoje em Luanda, o advogado de Valer Filipe, Sérgio Raimundo, solicitou ao tribunal a audição de José Eduardo dos Santos, uma diligência que entendeu que deveria ter sido desencadeada “antes do procedimento criminal” e que entende agora “imperiosa” para a defesa do seu constituinte, que considera ter agido “no cumprimento da obediência hierárquica”.

Face à ausência do ex-Presidente do país, por razões de saúde, o causídico solicitou ao tribunal que lhe faça chegar um conjunto de questões “por forma a que possa confirmar ou não se deu orientação à operação realizada pelo constituinte e se sim, para que fim e em que termos”. O objectivo é confirmar também que se o arguido se “excedeu, ou não, no cumprimento do mandato que lhe foi conferido”.

O juiz João Pitra, que preside ao colectivo, aceitou o requerimento, solicitando ao tribunal que sejam criadas as condições legais para que se concretize a pretendida audição a José Eduardo dos Santos, na condição de declarante, e não testemunha.

Nas questões prévias, foi ainda solicitada pelo procurador do Ministério Público a junção de um documento “de importância extrema para prova dos autos” redigido em língua estrangeira, sem fornecer mais detalhes, o que foi aceite pelo juiz, apesar da contestação dos advogados de defesa.

Justiça já nasceu partidarizada

O ex-presidente do Conselho de Administração do Fundo de Desenvolvimento Soberano de Angola, José Filomeno dos Santos, e o ex-governador do Banco Nacional de Angola, Valter Filipe, são formalmente acusados pelo Ministério Público dos crimes de burla por defraudação, peculato, associação criminosa, tráfico de influência e branqueamento de capitais.

O Direito impõe e o Direito Processual determina aos magistrados judiciais e do Ministério Público, independentemente da inclinação ideológica (ou partidária), uma actuação nos processos, em análise, com espírito de isenção, ética, profissionalismo e imparcialidade. Por mais intricado que seja, um dossier é mister os magistrados erguerem a balança, na óptica da “deusa da justiça”, vendada (cega), demonstrar a veia de actuação, geral e abstracta, carimbando sempre, o princípio da mais ampla defesa, a todas entidades e cidadãos, como postula o art.º 29.º CRA (Constituição da República de Angola).

O brocardo romano que diz “nem tudo que brilha é ouro”, aplica-se na perfeição em Angola, principalmente, no sistema judiciário, “colonizado” pela força de um poder político, que “ab initio” macula e manieta a independência deste órgão, colocando-o, face à falta de dignidade intelectual e pobreza material de muitos dos seus agentes (juízes e procuradores), como “manus ideológico” do senhor e do partido dominante. Recorde-se que o MPLA está no poder, ininterruptamente, desde 1975.

Angola vive, com a transição de poder, um momento de expectativa, entre a mentira e a verdade, entre a mentira e uma outra forma de mentir que, por ser diferente, se confunde com verdade, face ao domínio absoluto da política partidária, sob o sistema judicial e judiciário, fruto de uma Constituição atípica (Fevereiro de 2010), que é um autêntico atentado a um Estado que se quer de Direito e Democrático.

A concentração de poder num homem só, nominalmente não eleito, para a Presidência da República, mas na qualidade de cabeça-de-lista de um partido político, como deputado, em respeito à interpretação linear do art.º 109.º CRA, subverte o carácter de separação e equilíbrio dos órgãos de poder de Estado preconizados, em 1789, por Charles Louis de Secondant “Barão de Monstesquieu”, como lamparina constitucional.

A subversão do texto, transformando um regime parlamentar em unipessoal, inclusive em desrespeito pelo n.º 3 do art.º 114.º: “A eleição para o cargo de Presidente da República é causa justificativa do adiamento da tomada do assento parlamentar”. Isso sustenta o atrás vertido da condição parlamentar do cabeça-de-lista, cuja eleição deveria ser interpares, no seio da Assembleia Nacional, onde deveria renunciar ao mandato de deputado (não o tendo feito, continua a ser deputado), para receber a faixa presidencial (ninguém pode exercer dois cargos electivos no aparelho do Estado).

Filho não pode negar quem é o pai

Por muitas voltas que se queira dar, outra interpretação inexiste, salvo a atipicidade da bajulice constitucional, por parte dos mentores da CRA, que a fizeram à medida de José Eduardo dos Santos e, que, agora, assenta, também na perfeição, a João Manuel Gonçalves Lourenço, ou não fosse este um “filho” do MPLA.

A democracia só é uma luz de equilíbrio e alternância plena de regime se os poderes Legislativo, Executivo e Judicial, forem verdadeiramente independentes e sem nenhum se subjugar ou superiorizar ao outro. Havendo o pré-domínio ideológico, partidário ou económico de uma força partidária, detentora do poder temporário e desmorona-se, na prática, a eficácia da separação dos três poderes. Aliás, desde a nascença, essa separação de poderes foi um mero formalismo académico para contentar a opinião pública, sobretudo a internacional.

A desgraça, principalmente de países subdesenvolvidos, onde Angola não foge à regra, prende-se com a fragilidade das instituições estatais, dominadas por agentes partidocratas, ciosos na subversão da coisa pública e indiferentes aos pergaminhos da boa gestão e plena administração da justiça. Para eles, tal como lhes foi ensinado ou exigido, o Estado é o MPLA e o MPLA é o Estado. O resto é folclore.

Desde 1975, portanto há 44 anos, o MPLA nunca apostou na formação de órgãos do Estado fortes, com agentes de carreira pública, desligados da sua cartilha ideológica-partidária. Com base neste desiderato, foram afastados todos quantos tivessem comprometimento em servir, imparcialmente, os órgãos de Estado e a cidadania pátria.

Quando hoje, o Titular do Poder Executivo (TPE), no pedestal da sua legitimidade e soberania unipessoal, faz alarde ao combate à corrupção, por necessário, muitos duvidam da eficácia do propósito, face ao seu excessivo poder, em contraste com o residual e apenas decorativo dos órgãos legislativo e judicial.

Com esta dependência, ao invés de interdependência e independência serão combatidos, todos quantos não sejam aliados do dono da bola, uma vez as sondagens apontarem o MPLA como o partido, no mundo, com mais políticos, corruptos e ladrões, por metro quadrado.

Assim, não é sem nexo de casualidade, que se assiste ao Ministério Público, no “cafrique” da discricionariedade do TPE, a fazer gincana partidária e pirotecnia jurídica, anunciando em praça pública, num claro e mediático pré-julgamento, elementos e contornos de processos, então ainda em segredo de justiça, em clara contravenção ao n.º 2 do art.º 67.º CRA: “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

Quando o Procurador-Geral Adjunto da República, Mota Liz, conhecedor da lei, a despropósito, desfraldou um processo sensível, como se tivesse necessidade (se calhar está lá para isso) de fazer banga pública, colocou em cheque o carácter imparcial do órgão de instrução: PGR.

Recorde-se o facto de, no caso angolano, o Ministério Público ser parte formal e não material, no processo, por carecer de interesse parcial (como se fosse particular), apesar de encarnar a defesa dos interesses do Estado, que ainda assim se lhe exige a máxima probidade na actuação ao longo de toda a investigação e instrução processual.

A Procuradoria-Geral da República, ao agir emotivamente ou no cumprimento de “ordens superiores” sem rosto declarado, mostrou ter lado, ainda que no subconsciente do procurador, quisesse transmitir ao público a tese de que o órgão está a fazer um trabalho hercúleo e imparcial, mas o acto configura, sentença adesão, segundo art.º 158.º do Código de Processo Civil, dever de fundamentar.

O facto do ex-presidente do Fundo Soberano, Zenú dos Santos (filho do ex-presidente da República, José Eduardo dos Santos), e Valter Filipe, ex-governador do Banco Nacional de Angola, estarem a ser acusados de prática delituosas, por alegada tentativa de burla ao Estado, no montante de 500 milhões de dólares, não lhes retira (não lhes deveria retirar) direitos, ainda que tivessem sido condenados, como elucida o n.º2 do art.º 66.º CRA: “A titularidade dos direitos fundamentais, salvo as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução”.

Todos os poderes num homem só

O procurador Mota Liz poderia ser acusado de ofensa à honra e bom nome dos arguidos, ainda que haja fortes indícios de prática contrária à lei.

Num cenário em que o novo Titular do Poder Executivo, também presidente do MPLA, também Presidente da República, hasteia a bandeira da luta contra a corrupção, alojada, exclusivamente, no seio da sua família partidária, as práticas da condução dos processos não devem deixar de estar sob escrutínio de toda sociedade, em defesa do controlo correcto e imparcial das normas restritivas de direitos fundamentais, alvos de interpretações enviesadas de leis e práticas de viés partidocrata, como foi, por exemplo, a condução carcerária do ex-ministro dos Transportes, Augusto Tomás, e de Walter Filipe, ex-governador do BNA.

O TIR (Termo de Identidade e Residência), nesta fase, não seria bastante? Há perigo de fuga dos arguidos? Há perigo de perturbação da investigação? Agora tudo incrimina…

Se hoje os cidadãos se deixarem anestesiar, ficando calados, mesmo ante eventuais injustiças, má instrução processual e fuga de informação de processos, sob alegação de ser um problema entre “larápios da mesma família”, amanhã com os demais será o esfolar total.

É que, quando se trata da liberdade alheia, não pode existir um dono da bola, como canta o kota Bonga Kwenda, que mande no jogo e seja o único incapaz de receber cartão amarelo, mesmo fazendo falta para expulsão.

Verdadeiras ou não, eficazes ou frágeis, estes casos parecem mais uma moeda de troca, para deleitar os estrangeiros, do que para moralizar o crime organizado, alojado nas entranhas do Estado, que levado a sério, poucos, pouquíssimos ou ninguém do partido no poder (desde 1975, repita-se), sairá impune.

E tudo isto acontece num país que esquece pobres encarcerados por roubo de galinhas e botijas de gás, motivados pelo desemprego galopante, mas que, ao mesmo tempo, aplaude maldosos, detractores e mentirosos contumazes como se fossem heróis de um país onde reina a arbitrariedade de um poder absoluto, o amiguismo, um novo estilo de vassalagem, assente na ferocidade da justiça, o culto ao chefe mau, quando tudo tresanda a bafio.

E, por este andar, sem uma verdadeira pressão dos partidos políticos e a sociedade civil, ante o arbítrio, deste “show-off” de alegado combate à corrupção, para uma séria e profunda reforma do sistema judicial e judiciário, Angola não se desenvolverá e a oposição pode correr o risco de ser (ainda mais) amordaçada, pois a Justiça está sob a bota exclusiva do Presidente da República.

Todos têm de ter consciência que o direito à defesa e à liberdade é uma pedra fundamental da democracia, não devendo existir um dono da bola, por o jogo ser colectivo. Mas, no caso, da corrupção, no seio do MPLA, não existe a equipa dos maus corruptos e dos bons corruptos, todos não parecem imunes ao mesmo carimbo, logo, não existem virgens inocentes, nem ídolos impolutos.

Isto não significa que as autoridades judicias abdiquem do importante papel de investigar e julgar, mas devem fazê-lo de forma técnica, respeitando sempre e sendo mesmo a própria expressão da defesa do direito de defesa, quando em causa está a preservação da tranquilidade social e da incipiente democracia.

Artigos Relacionados

Leave a Comment