Minas (ainda) andam por aí

Verbas do Orçamento Geral do Estado diminuíram, assim como financiamento internacional. Estima-se que existam em Angola entre 40 a 60 mil vítimas de minas, número que o Governo quer apurar com mais rigor mas que, certamente, precisam do reforço orçamental que o Executivo diz não ter.

Angola tem ainda mais de mil campos minados para eliminar, mas perdeu cerca de 90% do seu financiamento internacional para combater o flagelo, o que torna mais difícil cumprir a meta de libertar o país destes engenhos até 2025. Sucedem-se, aliás, as metas, as promessas e as garantias por cumprir.

Em entrevista à Lusa, o chefe do gabinete de Intercâmbio e Cooperação da Comissão Intersectorial de Desminagem e Assistência Humanitária (CNIDAH), Adriano Gonçalves, assume o problema: “Há cerca de dez anos que vimos sofrendo declínios de financiamento à desminagem em Angola”, na ordem dos 90%, o que tem tido impacto directo nas actividades de limpeza de campos minados que tem sido “consideravelmente” reduzida.

Além da redução dos financiamentos dos doadores internacionais, que têm de acudir “a muitas prioridades” também as verbas provenientes do Orçamento Geral do Estado diminuíram bastante, penalizadas pela queda dos preços do petróleo em 2014, uma razão que tem servido às mil maravilhas para justificar tudo, até mesmo o que é injustificável. “Gostaríamos que a desminagem fosse feita com maior celeridade e maior intensidade”, admite o responsável.

Por isso, a visita do Príncipe Harry a Angola, que passará por locais onde esteve a sua mãe, Diana de Gales, em 1997, é vista como “uma das grandes oportunidades para mostrar” no terreno os resultados da acção contra as minas no país.

Os longos períodos de conflito, primeiro no período colonial, iniciado em 1961 e logo após a independência, em 1975, numa guerra civil que só teve fim em 2002, deixou espalhadas pelo país milhares de minas e outros engenhos explosivos por detonar que, apesar das operações de limpeza, continuam a fazer vítimas.

Apesar de o número de acidentes com engenhos não detonados ter vindo a reduzir-se, registaram-se no primeiro semestre deste ano, 37 casos, dos quais nove pessoas morreram e as outras ficaram gravemente feridas, números que Adriano Gonçalves considerou “preocupantes”.

Isto levou a que o Governo investisse numa campanha de sensibilização para o risco de minas e outros engenhos explosivos, que foi lançada no mês passado e está a ser liderada pelo Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, para “reforçar” a prevenção.

Adriano Gonçalves justifica também este aumento com a “maior mobilidade das pessoas” que voltaram a encarar a agricultura quase sempre como único meio de subsistência e procuram terrenos agrícolas, já sem receio das minas, regressando “de forma um pouco desorganizada”.

As minas afectam fundamentalmente os civis e, neste grupo, mulheres e crianças são as principais vítimas, pois “andam pelas lavras e estão susceptíveis de encontrar a qualquer momento os engenhos explosivos”.

Estima-se que existam em Angola entre 40 a 60 mil vítimas de minas, um número que o Governo quer apurar com mais rigor. “Estamos a fazer um levantamento a nível nacional sobre as pessoas portadoras de deficiência vítimas de minas”, um projecto que já permitiu contabilizar 10 mil vítimas em nove províncias menos afectadas pela guerra.

As restantes nove são aquelas onde Adriano Gonçalves acredita que existam números mais elevados: “Estamos a falar do Cuando Cubango, Moxico, Bié, Malanje, Cuanza Sul, entre outras, que tiveram um impacto maior da guerra”, exemplificou. Entre estas está também Luanda, onde se estima “que haja um número elevadíssimo de pessoas com deficiência” devido a este tipo de armamento.

O Estado angolano é o principal financiador das actividades de desminagem em Angola, através de quatro operadores públicos (Instituto Nacional de Desminagem, Brigadas da Casa de Segurança da Presidência, as Brigadas da Polícia de Guarda Fronteira e as Brigadas de Engenharia das Forças Armadas Angolanas), existindo ainda quatro operadores internacionais (Halo Trust, Mine Advisoy Group, Norwegian Peoples Aid e APOPO).

Desde 2002, mais de 108 mil quilómetros de estradas e quase dez mil quilómetros de extensão de linhas de transporte de energia foram desminados no país. “Nós tínhamos um país numa situação caótica, em que as províncias não se podiam comunicar por via terrestre porque as pontes e estradas estavam destruídas, cerca de 72% das infra-estruturas estavam completamente destruídas”, recorda o responsável da CNIDAH. Foi este o cenário que encontrou a princesa Diana quando visitou Angola em Janeiro de 1997 numa viagem que serviu para chamar a atenção da comunidade internacional para as vítimas inocentes deste tipo de armamento, que viria a ser banido pela Convenção de Otava.

“Foi de facto uma visita histórica, numa altura em que a situação estava caótica, tínhamos zonas muito minadas e a sua presença fez com que criássemos consciência, não só Angola, mas o mundo em geral” para o problema das minas, que tem “de voltar a ser pensado”, defende Adriano Gonçalves.

Signatária da Convenção de Otava, Angola comprometeu-se a eliminar as minas antipessoais no seu território até 31 de Dezembro de 2025, mas o dirigente da CNIDAH encara este prazo com cepticismo. “Estamos cientes de que a dimensão do problema não é igual em todos os Estados-partes e no que concerne a Angola temos a certeza de que teremos grandes dificuldades em cumprir este desiderato até 2025”, afirmou, salientou que o Governo “fará todos os possíveis” para ter a maior redução possível de campos minados, “que ainda são muitos”.

No entanto, três províncias — Malanje Namibe e Huambo – poderão ser declaradas descontaminadas até ao final do ano. “Somos cautelosos”, disse Adriano Gonçalves, admitindo que esta é a sua expectativa, mas sem querer dar garantias.

Além das actividades de desminagem, a CNIDAH aposta noutras vertentes, desde a educação e prevenção para o risco dos engenhos explosivos remanescentes da guerra à assistência às vítimas.

A comissão “intervém para que este grupo alvo tenha uma assistência médica e medicamentosa aceitável”, incluindo acompanhamento psicológico “para quem de repente se vê numa situação adversa” e formação profissional para dar novas competências às vítimas de minas, adiantou o responsável.

Faltam muitos milhões

O Governo necessita, segundo revelação feita a 27 de Agosto de 2019, de 300 milhões de dólares (269,7 milhões de euros) para se ver livre de minas até 2025, quando ainda tem cerca de 1.220 áreas do seu território afectado por este tipo de artefactos explosivos, afirmou Adriano Gonçalves, que falava à margem do seminário sobre a Estratégia Nacional do Sector de Acção Contra Minas em Angola.

O mesmo responsável realçou na altura que “Angola ainda não é um país livre de minas”, possuindo ainda “105 milhões de metros quadrados afectados” por este tipo de material explosivo.

De acordo com Adriano Gonçalves, há 12 anos, Angola tinha 3.600 áreas minadas e hoje conta com apenas 1.220 áreas, salientando que há províncias que já podem ser consideradas livres de minas, nomeadamente Malanje, Namibe e Huambo.

Regressemos a 7 de Junho de 2019. “Estamos entre os países considerados com alto nível de contaminação e ainda não saímos dessa área”, disse nesse dia, em Luanda, Adriano Gonçalves, que falava à margem de um encontro de Coordenação e Avaliação do Programa de Desminagem em Angola, tendo em conta a Agenda 2025, estabelecida para os países concluírem a desminagem, assumindo que, “realisticamente, Angola não poderá atingir a meta”.

Segundo o responsável, nos últimos dez anos o sector tem registado um “decréscimo de financiamento” a nível dos doadores, entre o Estado angolano e os parceiros internacionais, que já atingiu um “nível de quase 90%”.

“O que levou a que muitos operadores que estavam a fazer um trabalho muito valioso em Angola tiveram de se retirar e os que permanecem estão com níveis muito baixo de actividades, em termos de recursos humanos e materiais”, adiantou.

“Estamos conscientes de que esta data [2025] não será tão realística para nós, porque precisaríamos de 350 milhões de dólares [308 milhões de euros] para libertar cerca de 450 áreas afectadas por ano, que seriam cerca de 15 milhões de metros quadrados por ano, para que chegássemos, em 2025, e tivéssemos o problema completamente resolvido”, referiu.

Adriano Gonçalves recordou que em 2017 Angola fez um pedido de extensão do prazo, mas o mesmo ficou limitado a 2025, admitindo que o seu alcance é “quase impossível” devido às “limitações de recursos humanos e financeiros”.

“O que nos satisfaz é que estamos num bom caminho, estamos a fazer todo esforço para que pelo menos ao chegarmos a esta data tenhamos o máximo possível feito”, disse.

Acreditamos em quem? No Governo não, certamente

Angola “limpou” mais de 2.000 campos de minas desde 2002, quando acabou a guerra civil, estando ainda identificados outros mil, razão pela qual o Landmine Monitor ainda classifica como “grave” a situação, segundo o director do INAD angolano.

O director do Instituto Nacional de Desminagem (INAD) angolano, brigadeiro José Domingos de Oliveira, referiu em Maio de 2019 que o processo de desminagem em Angola já custou, desde 2002, mais de 500 milhões de dólares (446 milhões de euros).

Domingos Oliveira ressalvou que, apesar da diminuição no número de campos com minas de diversas tipologias, o Landmine Monitor coloca ainda Angola no grupo de países com a classificação “grave”, devido ao elevado número de campos minados, cerca de 1.000, no país, fruto da guerra civil (1975/2002).

Além do milhar de campos de minas, prosseguiu, existem também outras zonas que, pelo seu historial, não oferecem a segurança necessária para a implementação de projectos de reconstrução e desenvolvimento nacional.

“Ao contrário do que muita gente pensa, ainda há muito trabalho para ser feito, porque o solo angolano foi densamente minado”, acrescentou.

Domingos Oliveira realçou que, só em 2018, as minas provocaram 28 acidentes, que causaram a morte a 19 pessoas, oito delas crianças, e ferimentos, alguns deles graves, noutras 45, um terço delas, 30, também crianças.

O processo conta com o desempenho de cerca de 5.000 técnicos de desminagem (sapadores), entre militares e civis, que ainda não têm seguro de vida, usufruindo apenas do seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais, lamentou Domingos Oliveira.

A 20 de Novembro de 2018, após a divulgação, em Genebra, de um relatório do Landmine Monitor, Angola pediu uma extensão do prazo até Janeiro de 2026 para eliminar 1.465 áreas minadas, totalizando 221,4 quilómetros quadrados.

Em 2017, cinco países que apoiam financeiramente processos de desminagem apresentaram pedidos de extensão de prazos para completar as suas obrigações ao abrigo do Artigo 5 (Destruição de minas antipessoal em áreas minadas) em que cada país se compromete a assegurar a destruição de todas as minas em áreas minadas.

Segundo o relatório do Landmine Monitor, elaborado pela organização não-governamental Campanha Internacional para a Abolição de Minas (ICBL – Internacional Campaign to Ban Landmines), os cinco países solicitaram que Angola fornecesse um plano de trabalho actualizado e detalhado, proporcionando maior clareza sobre a quantidade de terrenos e marcos contaminados.

Em Novembro de 2018, na 17ª Reunião dos Estados Partes, Angola comprometeu-se a apresentar esse plano de trabalho actualizado.

Em Abril de 2018, Angola reportou um total de 147,6 quilómetros quadrados de áreas minadas – 89,3 quilómetros quadrados de áreas perigosas confirmadas e 58,3 quilómetros quadrados de áreas suspeitas perigosas, indica o relatório.

A Campanha Internacional para a Abolição de Minas é uma rede global com presença em cem países e com o objectivo de erradicar minas antipessoais e explosivos remanescentes de guerra.

Criada em 1992, a ICBL recebeu em 1997 o Prémio Nobel da Paz pelo reconhecimento do seu esforço para colocar em prática um tratado internacional para banir as minas.

Em 2017, os Estados Unidos da América anunciaram a doação de quatro milhões de dólares para o programa de desminagem de Angola, mas o país precisava – segundo estimativas então feitas – de 246 milhões de dólares para cumprir o objectivo de concluir a limpeza até 2025.

O anúncio da disponibilização desta verba pelo Departamento do Estado, a aplicar em 2017, foi feito no Huambo por Constance Arvis, ministra conselheira da embaixada norte-americana em Luanda, no âmbito das cerimónias evocativas dos 20 anos da visita de Diana de Gales àquela província, colocando então Angola em destaque nas necessidades internacionais de desminagem.

“Esta assistência, implementada através de organizações não-governamentais e em parceria com o Governo de Angola, permite a mais e mais angolanos voltar a casa em segurança, reconstruir as suas comunidades e cuidar das suas plantações”, enfatizou a diplomata.

Numa altura em que as doações internacionais para a desminagem em Angola caíram 80%, Constance Arvis recordou que os EUA são “parceiros empenhados nessa luta” e que desde 1995 já tinham investido mais de 124 milhões de dólares no programa angolano de remoção e destruição de minas terrestres, engenhos não detonados e munições.

Presente no dia 14 de Janeiro de 2017 no Huambo, o general britânico James Cowan, director-geral da Halo Trust, uma das maiores organizações não-governamentais internacionais da área da desminagem, disse que o país ainda tinha necessidades estimadas de 246 milhões de dólares de financiamento internacional para conseguir cumprir a meta de concluir a desminagem do país até 2025, conforme a convenção de Otava, a que Angola aderiu.

Apesar de se tratar de uma verba “elevada”, o responsável da Halo Trust, que assegurava a desminagem em várias províncias do centro e sul de Angola, afirmou que, “dividida pelos próximos anos, por vários países doadores e pelo Governo angolano”, é uma “meta alcançável”.

Como exemplo, a Halo Trust apontou o caso do Huambo, onde se registaram intensas actividades militares durante a guerra civil, e que poderia ser a primeira província do país a ser declarada como totalmente livre de minas, já em 2018.

“Em memória da princesa Diana, deixem-nos acabar o trabalho”, concluiu James Cowan.

Folha 8 com Lusa

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