Nos últimos trinta dias, as autoridades policiais angolanas em Cabinda têm procedido a dezenas de detenções de pessoas directa ou indirectamente ligadas ao MIC – Movimento Independentista de Cabinda.
Por Franck Raskal
As detenções parecem ter como objectivo o desmantelamento do referido MIC, considerado como associação criminosa pelas autoridades angolanas. Por vezes, as detenções têm sido acompanhadas ou seguidas de abusos (maus-tratos, espancamentos, violências) da parte dos agentes da Polícia. Tem sido referida, quase sempre, a “esquadra do Ngomá”, situada no bairro 1º de Maio.
As detenções ocorreram em duas vagas sucessivas: a primeira, organizada nos dias 28 e 29 de Janeiro, abrangeu 28 pessoas. A operação foi desencadeada pela Polícia, na tarde do dia 28 de Janeiro. Aparentemente, destinava-se a prender os dirigentes do MIC para frustrar a realização da marcha que estava a ser preparada para o 1º de Fevereiro, em comemoração do aniversário do Tratado de Simulambuco, assinado entre o reino de Portugal e autoridades do então reino do Ngoyo, em Cabinda, a 1 de Fevereiro de 1885.
O primeiro alvo da operação era o Engº. Maurício Bufita Baza Gimbi, presidente do MIC. Para o efeito, elementos da Polícia Nacional dirigiram-se à sua casa (ou melhor, à casa do seu pai, onde residia). Não o tendo encontrado, espancaram e detiveram a sua irmã (mais nova), Madalena Marta Zovo Gimbi.
Em seguida, dirigiram-se à casa da irmã mais velha, pensando encontrá-lo lá. Não o tendo encontrado, prenderam João Zau Mambimbi, marido da dona de casa e, portanto, cunhado de Maurício.
Entretanto, António Víctor Tuma (Nelinho Tuma) tinha sido já detido por volta das 16:00 horas, quando caminhava pela Rua das Forças Armadas (antiga «Rua Nova», área «do Pio»). Foi detido com a tia que o acompanhava, e ambos conduzidos à unidade da PIR (Polícia de Intervenção Rápida), situada nas imediações do «antigo farol». Em seguida, foi levado a casa, onde foram feitas buscas à sua casa e à casa vizinha, sendo esta da sua mãe. Seguiram-se algumas apreensões de documentos e objectos (nomeadamente um megafone).
Ao anoitecer, uma outra equipa policial foi ao Povo Grande com a intenção de prender Daniel de Oliveira Buzi Bumba, conhecido como «Kota D.I.A.B.O.). Não conhecendo a sua residência, prenderem e espancaram o seu primo Afonso Kiama Kiungo, por volta das 20:30 horas, e obrigaram-no a conduzi-los à casa daquele. Chegaram à residência do Kota Diabo perto das 21:00 horas. Encontraram-no na companhia de Sebastião Sungo Batala: ambos foram presos.
No dia seguinte, 29 de Janeiro, pelas 04:00 horas da manhã, foi a vez de João da Graça Mampuele (filho do «histórico» sindicalista da UNTA, João Baptista Mampuele, no período marxista-leninista; por sinal, sobrinho do antigo bispo D. Paulino Fernandes Madeca, de feliz e saudosa memória…). Bateram-lhe ruidosa e insistentemente à porta, e identificaram-se como agentes do Serviço de Migração (e Estrangeiros). Ao abrir a porta, cerca de uma dezena de agentes invadiram-lhe a casa. Reviraram e basculharam tudo o que se encontrava no quarto, à procura de material afecto ao MIC. Procederam à apreensão de alguns panfletos, de documentos, material informático e telefone. Por fim, foi levado ao SIC (rima com MIC) – Serviço de Investigação Criminal.
Na manhã do mesmo dia, foi também detido o senhor Bernardo Pedro Gimbi, pai de Maurício Gimbi. Diz que não é militante do MIC e que as suas relações com o filho se tinham deteriorado nos últimos tempos por causa da militância e do activismo político do filho. Mas, com ou sem o seu consentimento, as reuniões partidárias decorriam em sua casa, que passou a ser vista como «sede do MIC».
Na manhã desse dia, decidido a entregar-se às autoridades policiais, Maurício Gimbi avançou da «paragem do Yabi» (Rua Nova/bairro Gika) até à sede do SIC (antigas instalações da PIDE, primeiro; da DISA, depois), acompanhado de cerca de vinte membros do MIC. Envergavam as camisolas do MIC, confeccionadas para a marcha, e gritavam palavras de ordem a favor do MIC e da independência de Cabinda e contra as autoridades angolanas, maxime o Presidente da República (João Lourenço), o governador provincial (Laborinho) e o delegado do Ministério do Interior e Comandante provincial da Polícia Nacional (Almeida e Costa).
Foram todos detidos pelo SIC e posteriormente apresentados ao Ministério Público que, a 1 de Fevereiro, aplicou a todos eles (28), a medida de coacção de prisão preventiva, por alegada detenção (de todos) em flagrante delito.
Entretanto, a segunda vaga de detenções iniciou-se a 31 de Janeiro, dia em que foram detidos: Carlos Manuel Cumba Vemba, secretário-geral do MIC, atraído a uma cilada. Pensa-se que Nicolau Muyombo Baza Gimbi, irmão de Maurício Gimbi, tenha sido usado como isca. Os dois foram detidos naquela noite, por volta das 20:30 horas.
No dia seguinte, foram detidas cerca de 30 pessoas: umas na chamada «parada dos fiéis» (antigo cemitério do Zangoyo) ou nas suas imediações: É o caso de Alberto Puna Buzi Cibi, Maria Mambo Manda Deca, Sebastião Alexandre Sango Buio e Geraldo Nduli que, depois da detenção, foram levados à unidade da PIR, onde foram espancados, antes de chegarem ao SIC; José Massiala Bungo e Rafael Júnior Bungo, que depois de detidos foram conduzidos à esquadra do Ngomá, antes de serem entregues ao SIC; Júlio de Nascimento Pau, cuja residência se situa nas imediações da referida «parada dos fiéis», local donde devia partir a marcha, detido apenas por prepotência do «chefe Tony», da esquadra do Ngomá.
Os outros participaram na marcha desde a «parada dos fiéis», seu ponto de partida, até ao início da Rua das Forças Armadas, defronte às instalações do SIC, onde ela foi «parada», e todos os seus integrantes detidos.
Os 34 detidos nessa segunda vaga de repressão foram por sua vez apresentados ao SIC, constituídos arguidos no mesmo processo dos 28 primeiros, e como estes colocados em prisão preventiva no dia 7 de Fevereiro. Como aqueles, estes também são dados como detidos em flagrante delito e igualmente indiciados por alegada prática dos crimes de associação criminosa, ultraje ao Estado, rebelião, resistência e arruído.
O último da lista, até agora, o 63º detido, é o Engº Sebastião Macaia Bungo, preso na noite de 11 de Fevereiro, salvo erro.
São estes os únicos detidos no processo «MIC»: são 63, e não 77 ou 80, como por vezes se alega. Destes, três são mulheres e sessenta são homens. A maioria é de idade jovem, entre os 39 e os 19 anos, sendo poucos aqueles cuja idade ultrapassa os 40 (cerca de 10).
A associação criminosa, principal crime pelo qual estão indiciados, refere-se à criação do MIC – Movimento Independentista de Cabinda, em Novembro de 2017. O seu objectivo é prosseguir a independência de Cabinda, por meios pacíficos. Não aceitam que Cabinda seja província da República de Angola (e se o é, é apenas politicamente, e não jurídica, histórica e geograficamente, fazem eles valer).
Confessam que o MIC não está legalizado porque nenhum governo reconhece e/ou legaliza um movimento (de libertação) que o combate. Mas explicam que se o MIC não está legalizado, tem a legitimidade do Povo.
Quanto à Constituição angolana, não a reconhecem porque é imposta.
Portanto, a associação criminosa não existe para praticar crimes comuns: é um instrumento de luta política, um instrumento de emancipação ou autodeterminação, destinado a libertar Cabinda do «Estado invasor-ocupante e colonialista angolano», como se lê na convocação da marcha.
Embora estejam a ser tratados como «presos de delito comum», é inegável a vertente política do processo; do objectivo político das acções programadas; do carácter eminentemente político do seu programa e da sua luta: a independência de Cabinda. Têm de ser tratados como «presos políticos», como houve em Angola, no seu passado colonial (e não colonialista).
Cedo ou tarde, este processo levará à suscitação da verdadeira questão: Cabinda é verdadeiramente uma província angolana? Se o é, como lhe pode ser reconhecida (como, efectivamente, foi) uma especificidade histórica, geográfica e cultural? Na verdade, a especificidade não tem nada a ver com a (chamada) descontinuidade geográfica. A descontinuidade é um mero facto (material), geográfico, sem consequência ou sanção jurídica. A especificidade já é totalmente diferente: é o reconhecimento, a aceitação duma identidade própria, diferente, autêntica.
Uma simples província dum Estado (unitário) qualquer pode ter, com toda a normalidade, uma especificidade em relação a esse Estado? Essa é a questão que deve ser colocada, fria, calma e serenamente. A ver, vamos. Enquanto se mantém o status quo, os jovens (maioritariamente) mantêm-se presos, e bem presos: em prisão preventiva porque, diz-se, foram todos presos em flagrante delito, por mais diferentes e díspares que tenham sido as circunstâncias da sua detenção. E porque foram todos presos em flagrante delito, não foram necessários quaisquer mandados: nem de detenção, nem de busca, nem de apreensão.
Mas um dia, há-de se impor a necessidade de conhecer individualmente cada um dos detidos; de considerar a sua personalidade «própria», as reais circunstâncias da sua detenção e os objectivos que entendia (e poderá ainda entender) prosseguir com a sua mobilização e acção políticas.