A ambulância

Mão amiga fez-me chegar esta imagem de Angola, e com ela vinham alguns comentários de incredulidade sobre eventuais deficiências ou falhas que pudessem levar à situação retratada. Bom, eu pessoalmente não vejo nada de grave. Julgo que os comentários de quem me enviou a foto, se devem à sua juventude e inexperiência, por muito bem-intencionada que essa pessoa tenha sido.

Por Carlos Pinho (*)

Mas trata-se de uma pessoa jovem e bem formada, que inicia agora a sua vida profissional, daí o seu espanto. Eu, que sou burro velho, e ando nestes temas da engenharia há mais de quarenta anos, vejo coisas que a minha longa experiência permite aquilatar de outro modo.

O que eu vejo, de facto, é uma amostra do génio ímpar angolano. Vejo uma ambulância tecnicamente revolucionária, compatível com uma sociedade baseada nos valores do desenvolvimento sustentável e economia circular.

O que eu vejo, é uma ambulância projectada e concebida em Angola, logo uma vantagem inquestionável em termos de balança de pagamentos do país, embora logicamente o chassis base tenha sido importado. Vejo uma ambulância com um sistema de ventilação último grito. Estando a viatura parada a ventilação é natural, estando a viatura em movimento a ventilação é forçada, sendo que a taxa de ventilação será proporcional à velocidade do veículo.

Nada de se ter uma ambulância parada num cruzamento, com o ar condicionado no máximo. Nada disso! Aqui não há gastos excessivos ou supérfluos! É tudo com conta, peso e medida. Se a urgência for grande, certamente que a velocidade a que a ambulância se irá deslocar será maior e consequentemente a ventilação do doente será, proporcionalmente, mais elevada. Como se pode constatar é tudo muito sustentável.

Os doentes após grandes períodos de internamento hospitalar apanham pouco sol acabando por apresentar um ar pálido e macilento. Ora, com esta técnica revolucionária, o doente sempre apanha sol na pele durante a sua deslocação. O sol, com conta peso e medida, é como todos sabemos, fundamental para a síntese da vitamina D. De facto, a síntese de vitamina D ocorre por meio da acção dos raios ultravioletas na pele e, por isso, a exposição ao sol de forma controlada é fundamental para a saúde. É isso que se passa nesta ambulância. Os prestimosos técnicos que acompanham o doente tratam cuidadosamente da regulação da posição do lençol. Controlo automático à angolana.

Mas há mais, todos sabemos que os hospitais são fontes de bactérias multirresistentes, e que estas são um perigo muito difícil de combater, são mutações de bactérias mais convencionais que, entretanto, ganharam resistência à maioria dos antibióticos convencionais. Uma passeata por algumas zonas de Luanda é páreo para estas bactérias multirresistentes, que acabam assim por ser exterminadas. De facto, uma passeata por muitas zonas de Luanda é um desafio à saúde de muito boa gente, mas no caso presente, de quem está bem acompanhado e tão bem protegido, apenas as ditas bactérias multirresistentes se tramam. E assim os tratamentos poderão continuar com os antibióticos convencionais, mais uma vantagem para a balança de pagamentos angolana.

O nosso paciente, à medida que faz a sua viagem na ambulância, também faz uma espécie de vacinação, pois tudo que é bactérias ou vírus que deambulem pelas zonas visitadas irão inoculá-lo. E se chover sempre há um duche grátis. Como sabemos em muitos edifícios públicos em Angola há falta de água. Mais vantagens. É a velha questão de se saber se o copo está meio cheio ou meio vazio.

Ou seja, uma deslocação na maravilha tecnológica, que é esta ambulância, é bem melhor que o uso daqueles shampoos dois em um que são anunciados na TV. Aqui é um quatro ou até mesmo um cinco em um.

E é também evidente que em termos de economia circular o nosso doente irá bem servido. Digam lá se de facto após uma viagem destas o nosso paciente não irá ficar com a cabeça a andar à roda? Ora andar é roda é seguir uma trajectória circular. Lógico e simples.

Podemos, por antítese, considerar o caso dos carros dos deputados à Assembleia Nacional. Neste caso temos trabalhadores incansáveis em prol da nação. Arranjaram, para cada um deles, um carrão, assim a modo de guarda-fatos com rodas e vidros fumados.

Já o doente é um preguiçoso sem vergonha. Vai ali todo refastelado e ainda ocupa, pelo menos, quatro funcionários. Os três à vista, mais o motorista. E não sabemos se leva ainda um trintanário. É só desperdício de mão-de-obra.

Mas atenção, nem tudo são rosas para os deputados. Os vidros fumados são um problema de saúde pública. Os queridos deputados passarão a ter graves problemas de raquitismo por ausência de condições inerentes à síntese da respectiva vitamina D. Eu sei, eu sei! Os vidros fumados têm a ver com a modéstia de quem tão altas funções exerce em prol dos seus semelhantes. Para que os seus semelhantes, como aquele doente da ambulância supracitada, possam usufruir do último grito em termos de tecnologia de transporte de doentes.

Já eles deputados, pobrezinhos, estando doentes terão de ser desterrados para a Europa ou para a África do Sul. Coitados! Poderão de ter de ir morrer longe da pátria amada.

Os mais de setenta milhões de dólares americanos, gastos nos tais guarda-fatos rolantes, são compreensíveis. Têm a ver com o prestígio e competência de quem tão nobre cargo exerce. Aliás, isso foi claro quando um certo deputado do partido do governo, deputado esse com prestigioso nome de família, dizia ter mais do que direito ao dito guarda-fatos, em vez de ir para a assembleia no seu velho carro do dia-a-dia. De facto, os deputados angolanos não têm nada a ver com os miseráveis dos escandinavos que vão para os respectivos parlamentos em transportes públicos, ou com os forretas dos tugas que têm um automóvel por grupo parlamentar. Estes últimos devem atirar a moedinha ao ar a ver quem anda no carro do grupo parlamentar. Os pobres dos escandinavos nem isso.

Eu ingenuamente pensava que isto dos carrões para os deputados era uma idiossincrasia angolana. Mas nos últimos dias, terminei de ler um livro fabuloso, “Congo: The Epic History of a People” escrito por um belga, David Van Reybrouck, e vejo que a situação é recorrente em África. Presumo por isso que o resto do mundo, ou pelo menos os petulantes lá pelas Europas, estejam errados.

Pensando bem é isso! Por terem sido gastas verbas obscenas em favor dos popós dos deputados angolanos criaram-se condições excepcionais para se desenvolver em Angola uma fileira tecnológica, vou referir um palavrão, um cluster, no projecto e construção de ambulâncias sustentáveis e perfeitamente inseridas nos conceitos da economia circular. E certamente que vista esta foto, irão chegar, dos quatro cantos do mundo, dezenas, quiçá centenas, de pedidos de informações e propostas de fornecimento desta novel ambulância.

E Angola, certamente, irá facturar “para caramba”. Mais uma vantagem para a sua balança de pagamentos.

Apetece-me repetir, “Ditosa pátria, que tais filhos tem.”.

(*) Professor da FEUP – Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

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