Rastos das ascendências
nas fogueiras anti bruxas

O ambiente cultural, o cabedal civilizacional que suporta todo um característico modo de estar, de viver na carícia da transmissão e no prosseguimento dos sentimentos das comunidades e sociedades falantes da língua portuguesa, sob o indicativo partilhado da boa-fé, da moral e dos bons costumes, fruto de uma coexistência secular, de um caminhar pungente e dolorido, cúmplice aprendizado pelos tempos históricos, corre o sério risco de ficar arruinado, esvaziado de sentido, com as tentativas de assassinato que tantas vezes aqueles valores e modos estruturantes dos relacionamentos humanos são alvo.

Por José Gabriel Mariano

Antes mesmo de prosseguir o processo progressista do enraizamento, já o estão a atirar rasgado, perdido ao vento.

A boa-fé que nos devia construir, que deveria estar na base indiscutível de qualquer relacionamento, o acreditar no próximo que deveria ser o ponto de partida e aproximação entre as gentes, constituindo-se no suporte de qualquer relação material e imaterial é arruinado pelos próprios educadores, dirigentes e descendentes continuadores. Os rastos das ascendências foram atirados para fogueiras anti bruxas, cumprindo-se neste galopar suicida os ritos e o ritual inquisitorial.

A fé humana está abalada. O crer, o querer acreditar está no seguimento da extinção. Desconfia-se desrazoavelmente de quem atravessa a rua do lado de fora da janela, já que para o lado interno dela a infidelidade, a mentira e a traição, a trama mesquinha e maldosa fizeram-se quotidianos rotineiros.

Que talvez este lado interno se resuma a curtas e breves referências largadas ao critério interpretativo, arbitrário de cada um. E que cada um considere seu valor próprio, guardado, continuado no respeito, consideração das lições transmitidas e recebidas pelo interior defenestrado. Atirado ao abandono!

Os mais indignos, os mais repugnantes, cultural e politicamente observando, são aqueles que – sob a capa e o manto do uso inapropriado, ilegítimo de valores e de acções políticas, referências morais, de pensamentos de Políticos e de lutadores pela Liberdade e pela Democracia – cometem as maiores ignomínias, as maiores traições e deslealdades. Embandeiram em arco quem os formou e educou político-moralmente, por cumprimento obrigacional das circunstâncias, na forma e formalidade preenchida apenas, para, na imagem social e pública, se acharem, se insinuarem como os fiéis seguidores e substantivos representantes daqueles, aproveitando-se deste contexto sinuoso para camuflar todas as desconsiderações, desrespeitos, desprezos, atrocidades cometidos e que, na verdade, nutrem, praticando na sua relação com terceiros sistematicamente.

Não será a desistência pela boa convivência, nem a destruição ou o descrédito da fé na alma humana, ou almas pensantes, como se ouse melhor achar. A verdade das realidades apontadas é real, visível, palpável, efectiva e intrometida, capaz de produzir profundas alterações com graves e perigosas consequências para o convívio entre diferentes comunidades e sociedades que se encontram física e geograficamente afastadas. Sociedades e comunidades compostas por seres que por ora limito-me a qualificá-los como seres viventes pensantes, evitando atribuir-lhes o substantivo humano. A Humanidade está a esvaziar o seu significado. Ela vai desaparecendo ou mostrando-se o que autenticamente é. Vai ganhando mais livre arbítrio e revelando de facto o seu sentido idiossincrático.

Esta constatação existencial faz lembrar o que vem dito na Bíblia Sagrada (Antigo Testamento, Genesis 8, 21), pelo seu Deus hebreu, sobre o carácter humano, após o Dilúvio, quando é referido que «E o Senhor cheirou o aroma agradável e disse o Senhor em seu coração: “NÃO TORNAREI A AMALDIÇOAR A TERRA POR CAUSA DO HOMEM; PORQUE A IMAGINAÇÃO DO CORAÇÃO DO HOMEM É MÁ, DESDE A SUA MENINICE, NEM TORNAREI MAIS A FERIR TODO O VIVENTE, COMO FIZ». O aroma agradável aqui destacado pelo Senhor é dos assados. Dos holocaustos de animais por Ele sugeridos, pedidos e impostos.

Não que se perceba o ser humano mau naturalmente, mas que se consiga entender que o Humano é por natureza defeituoso, é constitucionalmente imperfeito. Nasce, desenvolvendo-se com defeitos intrínsecos, com limitações físicas, morais e éticas quando se propõe relacionar com todo um Universo infindável, inteligente, místico, desconhecido e actuante. Pelo que lhe é imposta a evolução, o melhoramento e a perseguição sem fim do que se quer perfeito, sem defeito.

A consciência assumida de que o humano é um vivente pensante limitado e com defeitos intrínsecos é já um porto de abrigo para a partida em busca das nossas ignorâncias e reconhecimento humilde das nossas estupidificantes arrogâncias. A consciência do erro e do defeito é passagem de esperança para praticar-se melhor Mundo. A maldade é que é capaz de provocar um sentimento de eliminação de quem é alvo ou vítima de actos e condutas prejudiciais ao seu semelhante e a todo um meio ambiente concedido pela Natureza. Mas não devemos agir como o Deus hebreu que arrependeu-se, depois dos actos destruidores da maldade. Não devemos aceitar esta indiscutível evidência sem antes a cocar sob o julgamento da crítica. A maldade desentranha-se para educar. Oferecemos a face da bondade no desentranhamento do que é malefício, maligno?

Não se desiste, nem se mata! Não é passível de destruição o que existe e o que já existiu, bem como o que tem sido materializado ao longo de milénios de civilizações, guerras, matanças, catástrofes, holocaustos humanos, ocupações, domínios, colonizações, escravaturas e escravidões, espoliações, explorações e abusos ao seu semelhante. Apenas alerta-se para a falsidade e para as mentiras das palavras, acções e condutas que minam qualquer relação, seja ela familiar, grupal, social, nacional, estadual, sentimental, profissional ou política, com consequências dramáticas, mediatizadas na temporalidade das relações e repercutidas no médio-longo tempo social, cultural e histórico. Minam um país, vários Estados e as suas vidas internas e externas.

Porque uma sociedade política não é apenas o somatório de grupos ou de famílias. Vai muito além. Não é o cúmulo aritmético de núcleos orgânicos. Mais se apresenta como um aglomerado de núcleos e indivíduos inconsciente, onde cada um vive por si e para si, na sua manutenção e sobrevivência, numa quimérica, fantasiosa relação gregária de solidariedade, complementaridade comprometida e altruísmo, prosseguindo fins comuns e válidos.

Na verdade, propugna-se, propagandeando-se a finalidade comum e altruística. Mas o que se vê e vive-se diariamente é a concretização de fins particulares, demonstrados através de condutas egoísticas, gananciosas, cobiçadoras que são perniciosas à boa evolução, ao bom progresso humano em sociedade, à sua moral, à sua ética e à sua busca pela correcção na compreensão das suas limitações e defeitos intrínsecos. Perniciosas ao melhoramento, à elevação dos estágios evolutivos espirituais. Perniciosas à detecção das imperfeições e ao reconhecimento da humildade humana. Condutas que levam ao impedimento do conhecimento da autêntica condição humana perante si próprio, perante os outros e a diferença, perante o Cosmos universal. Impedem o movimento de libertação do ego e condenam o regresso si próprio. Regresso que nunca existiu.

Já foram percorridos muitos tempos, muitos milénios sobre os mesmos espaços geográficos de civilizações humanas, sem evolução moral e espiritual. Carnívoros e viciados, homicidas selectivos e invejosos nos perpetuámos, sem nada aprender com tanto erro cometido e desgraças vislumbradas e factualmente assistidas. Vamos vivendo o baile dançante, recíproco e multilateral, do engano. Da pregação generalizada do conto do vigário! Da segregação, da eliminação e da matança quando torna-se imperioso ao séquito da Ditadura. Vamos impavidamente assistindo ao tombar da dignidade!

A abstracção factual de uma comunidade geral ou de uma sociedade na sua configuração constituinte – entendendo-se aqui o ente sociedade como universalizante, generalizado, amplo, abstracto, entrecortado por uma rede de relações humanas e sociais intangível, intrigante, mística e transcendental – será pois um aglomerado de pessoas, um conjunto de grupos, subgrupos, famílias e indivíduos com sentido identitário, mas que depois difere do grupo e do indivíduo – tornando-se numa realidade que escapa à absorção e observação directa do seu pulsar e desenrolar vivencial -, essencialmente nas suas relações intergrupais de domínio, subjugação, rivalidade, discriminação e de segregação, nas relativas e absolutas proporções, nas suas dimensões, nas suas multiplicações relacionais que são geométricas, quânticas e reais, materiais, sentidas e valorativas, com a correspondente medida nas consequências, sejam elas positivas ou negativas.

Mentiras destapadas
I
Aos poucos se percebe qual o mal-estar
De onde veio, por onde vem
O peso da imagem ludibriada é imenso
Este manto daninho que ainda persiste
Mas não devia
Que tanto incómodo e prejuízo transferiu
A quem nada de ruim pediu
II
Às mentiras destapadas
A verdade é que vão chupando o sangue
Roendo o osso do esqueleto
Mastigando o saboreio da fibrosa carne
Implodindo as células vivais, multiplicadoras
Que pelas vias correm perdedoras
Para retirar na condução indiscreta
Por paulatinos movimentos usurpadores
Dignidades e direitos que noutros são de fluir
Refulgir!

Marasmo lamacento da indecência humana
O marasmo lamacento da indecência humana
Ressalta.
Ressalta no dizer da simples frase trabalhar em prol de um país
De uma sociedade de pessoas
Elas riem-se, acham desusado
Projectam impossível qualquer conduta aproximada
Parece-lhes ridículo alguém afirmar
Quero trabalhar em prol …
Parece-lhes ridículo. Sim!
Pois entendem e arrogam-se no seu íntimo
– Ó Paupérrima Arrogância!
Arrogam-se no seu espírito
Trazidas nas suas condutas do dia
Que o trabalho não é público, social e altruísta
– Pois todo ele é! Mesmo o mais privatístico! Se não, não é!
Sim, elas acham que deve ser individual, egoísta, invejoso
Cobiçador
Por isso algumas daquelas pessoas
A quem pretende-se prestar a prestação altruísta
Olham rumando ar incrédulo, percepcionando realidade que não existe
No seu real mundo não existe sociabilidade
Esta sociabilidade desconcerta toda a lógica racional
De uma intelectualidade despedaçada em subornos e corruptores do social
Que se vê carbonizada na toxicidade de barbitúricos farmacêuticos
Nas receitas etílicas de psiquiatria enjoada por ondas de uma maré…
São o limbo da indefinição entre a Pessoa e o Diabo
No marasmo lamacento da indecência humana

Limpeza ambiental
Necessário isolar o turbilhão da insensatez da desfaçatez insana
Necessário desligamento absoluto e total das realidades que nos levam a definhamento
Isolá-las é um dever
É um saber cauteloso de observação
De acção ulterior
O tombo moral é imenso
Ameaça alastrar-se para bandas disformes da convivência
A ofensa aos desígnios, ao tirocínio cultural é profunda
Irreversível. A mancha afirmou-se em nodosidade, nodou
Não se limpa a mancha que encastrou – encrostou – encoscorou
Que entrou aos tecidos com relevo eruptivo
Desentranha-se a mancha
Num único ato de imperativo moral
Impõe-se o isolamento
No horizonte curto da excomungação
Na limpeza ambiental

Salivar da espuma invisível
O problema não está
Por enquanto
Na aparência dos seres pensantes
No seu aspecto físico que ressalta à vista viva e olhada
Não, não é esse o problema
O problema é essencial
Vem da essência
O salivar da espuma invisível sai desordenado
Desligado na sua partida, esquecido
Não uniforme
Arbitrário e especulativo
Vem já precário em potência
Não sabemos quem são os outros
Até ao tempo sem espaço chegar
Onde os conheceremos, os saberemos da sua essência
A diferença entre os pensantes não é apenas aparente
Colorida, étnica, cultural, social, económica, civilizacional
Ela chega antes da partida sem ordem
A diferença toma conta de nós na pré-transcendentalidade da existência
Não é a Civilização!
Ela é antes essencial
É o que não deixa de ser-se
Dir-se-ia de onde se congemina a linguagem
É nela, por ela que perscrutaremos a nossa diferença
Saberemos que somos
Quem são
Perante uma igualdade reclamada mas a que não chega a quem a clama
Raphael d’Andrade,

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