Greves vieram para ficar?

Angola já viveu, pelo menos, 34 dias de greve em vários sectores do Estado, em nove meses de legislatura, mais do que em qualquer outro período, situação que os sindicatos explicam com o novo “ambiente político”.

De acordo com o levantamento feito pela Lusa, em causa estão greves que paralisaram, essencialmente, escolas, tribunais, conservatórias ou centros médicos, envolvendo vários sindicatos, e que coincidem com a chegada ao poder, no final de Setembro, de João Lourenço.

O terceiro Presidente da República de Angola sucedeu a 38 anos de liderança de José Eduardo dos Santos e ao fim de três meses já via os funcionários da Procuradoria-Geral da República cumprirem duas semanas de greve, contestando a não aprovação, desde a legislatura anterior, dos diplomas legais sobre remunerações, reconversões e promoções.

Para Manuel Viage, secretário-geral da União Nacional dos Trabalhadores Angolanos – Confederação Sindical (UNTA-CS), a maior de Angola, os problemas que levam os funcionários públicos à greve, com uma regularidade e intensidade que antes não acontecia, são os mesmos do passado e que ficaram por resolver.

“Acho que o que mudou foi o ambiente político, que se calhar é agora de maior abertura”, reconhece o sindicalista angolano,.

Além dos funcionários da Procuradoria-Geral da República, com uma paralisação que inicialmente era de três semanas, entre Janeiro e Fevereiro, Angola viu escolas do ensino geral fechadas durante cinco dias de greve nacional em Abril, convocada pelo Sindicato dos Professores, e conservatórias encerradas em Maio, também cinco dias, pela greve do Sindicato dos Oficiais de Justiça.

Somam-se a paralisação dos enfermeiros de Luanda, em Junho, que durante três dias condicionou os serviços de saúde da capital, com mais de sete milhões de habitantes, até chegarem a um entendimento com o governo provincial.

Tónica comum foi o motivo destas greves, genericamente reclamando melhores condições salariais e laborais, conforme cadernos reivindicativos com vários anos, que, apesar de aceites pelas entidades patronais, acabam por ficar na gaveta.

“O que temos assistido é que o nível de execução dos entendimentos anteriores, as cláusulas dos acordos, é que se mostra bastante baixo, o que faz com que os trabalhadores recorram à greve. Os últimos cadernos reivindicativos não incluíram pontos novos, mas reportam reivindicações com cinco, seis ou sete anos. Chegava-se a acordo, mas não passam à prática”, explicou Manuel Viage.

Durante estes últimos meses, assistiu-se ainda a três dias de greve na função pública da província de Cabinda e de quatro dias entre os professores e enfermeiros da província do Huambo. Nestes casos, em protesto por milhares de funcionários públicos terem ficado, desde Abril, sem salário, ao serem retirados das folhas de pagamento por estarem, segundo o Ministério das Finanças, em “situação de irregularidade”, no âmbito do processo de recadastramento.

Paralisações que, para o secretário-geral da maior confederação sindical angolana, estão a “surtir efeito”, na medida em que, “pelo menos, têm propiciado que as partes se sentem a negociar”.

“O ambiente político actual faz com que, depois de muitos dados que vão aparecendo, que estavam escamoteados no passado – como o fenómeno da corrupção, que se branqueava -, as pessoas hoje pensem que, afinal, há possibilidade para se ir um bocadinho mais longe”, remata Manuel Viage.

Nesta altura continuam pendentes novas paralisações dos enfermeiros e dos professores, tendo o Sindicato dos Oficiais de Justiça de Angola convocado uma nova greve, de 15 dias, a partir de 29 de Agosto, caso o Governo angolano não responda entretanto às suas reivindicações, nomeadamente de aumento salarial e promoção de categoria.

Ligeiramente… antes

Abril de 2017. A Central Geral de Sindicatos Independentes e Livres de Angola (CGSILA) acusava as entidades patronais de terem “imensas dificuldades de encarar o direito à greve”, que é agora vista como “oposição ou rebeldia” dos trabalhadores. Ou seja, o patronato para agradar ao regime adopta a mesma estratégia do MPLA: todos são livres para pensar da mesma forma que o Presidente pensa.

Aposição foi expressa pelo secretário-geral da CGSILA, Francisco Jacinto, comentando as sucessivas declarações de ilegalidade, pelas entidades patronais, a greves convocadas por sindicatos e colectivo de trabalhadores.

“Não estamos surpreendidos, por saber que nunca houve nenhuma greve nesse país que não fosse ilícita na visão do empregador. A verdade é que temos uma lei, a Lei 23/91, que consagra o exercício da greve por parte dos trabalhadores, sempre que se cumpram de facto os pressupostos estabelecidos”, recordou.

Francisco Jacinto pensava que Angola era aquilo que não é – um Estado de Direito. Segundo o regime, as leis existem para formalmente o país parecer uma democracia de um Estado de Direito. De facto de nada serviam porque acima delas estava a lei unipessoal de sua majestade José Eduardo dos Santos. Hoje, até ver, está uma lei – igualmente unipessoal – que, contudo, parece mais maleável. Veremos sé é para valer.

Segundo o Secretário-geral da CGSILA, mesmo sendo um direito Constitucional, algumas entidades ainda “têm dificuldades imensas de encarar essa realidade”, atitude que aquele sindicato condena.

“O que deviam fazer é cumprir, discutir com as associações sindicais, aquilo que os funcionários e trabalhadores reivindicam, encontrar os meios de solução”, disse na altura.

“Isso é que é verdade e temos que reconhecer que hoje no nosso país a situação está tão difícil, o salário que já é irrisório ainda perdeu o seu poder de compra face a uma inflação que está acima dos 40 por cento e nunca houve, mesmo na função pública, ao longo dos últimos quatro anos algum ajuste salarial”, acrescentou.

Francisco Jacinto considerou injusto que os trabalhadores sejam sempre submetidos a sacrifícios, chegando a hora de serem colocados de lado para “trazer alegria, na realização pessoal, familiar, colectiva, da sociedade e satisfação do homem”.

“Se com a desgraça que temos hoje dessa crise, com os preços dos produtos básicos com o valor que têm, em diversas superfícies comerciais, e um salário que nunca houve qualquer mexida, é claro que as pessoas hoje têm imensas dificuldades”, salientou.

“Não podemos estar aqui a criar ilusão de que nós estamos a crescer, mas de facto o homem está em último lugar. É preciso que isso seja dito, as pessoas não podem trabalhar por cima dessas tantas dificuldades, o salário é baixo e todo o mundo reconhece”, reforçou Francisco Jacinto.

O sindicalista reconheceu algum esforço feito pelo Governo para a estabilização de preços, sobretudo da cesta básica, contudo “ainda não satisfazem aquilo que é preocupação geral”.

“E os trabalhadores, em particular, estão imbuídos nessa desgraça, efectivamente o seu salário já não tem qualquer poder de compra, quer dizer que não cobre sequer dez dias mensais, tanto na realização das despesas familiares ou relativamente à saúde, educação, entre outras”, referiu.

De acordo com o líder daquela central sindical, os trabalhadores angolanos ainda vivem nesta época situações que já não são compreensíveis, “mesmo atendendo as dificuldades existentes”.

“Até a água que devia jorrar nas torneiras, compra-se em cisternas, todo o mundo hoje quando constrói uma residência tem que fazer um reservatório de água, para depois ter as despesas mensais das cisternas de água”, exemplificou.

Acrescentou que qualquer reivindicação que vise melhorar as condições dos trabalhadores terá a solidariedade da CGSIL, reprovando “a atitude dos empregadores de que todas as greves são consideradas ilícitas”.

Folha 8 com Lusa

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