O principal problema da dívida pública de Angola, como de outras nações, com especial incidência em África, é exactamente o mesmo que se passa – salvaguardadas as devidas proporções – com as contas de cada família. Ou seja, as receitas geradas ficam abaixo, muito abaixo, do que é necessário para pagar o fiado (empréstimos mais juros).
“O problema do aumento com despesas de investimento, para mais de 21% do PIB desde 2007, face aos 18,5% do PIB de 1990 a 2006, é que muita desta inovação pode surgir porque os termos de pagamento implicam uma subida do serviço da dívida externa sem que aumente a capacidade de geração de receita no mesmo montante”, dizem os analistas do Standard Bank.
Numa nota sobre a evolução da dívida pública externa africana enviada aos investidores, os analistas do banco explicam que, assim, “não é surpresa que a relação entre o custo dos pagamentos da dívida externa e as receitas tenha subido notoriamente”, originando aquilo que vários analistas chamam de ‘nova crise da dívida’ em África.
O Standard Bank admite que “é possível que muitas infra-estruturas económicas e sociais construídas pelos governos aumentem a sua capacidade de gerar receitas orçamentais”, mas dizem que “é duvidoso que esse aumento de receitas seja equiparado ao acréscimo de obrigações sobre essa dívida externa”, ou seja, o que os governos conseguem arrecadar em impostos por via desses investimentos é menor que o custo de pagar esses empréstimos, desequilibrando ainda mais as contas públicas.
Isto, apontam, “torna inevitável que o serviço da dívida externa continue a aumentar”, o que fez com que, nos anos recentes, o nível de dívida pública externa face ao PIB tenha subido para níveis comparáveis aos de meados de década de 2000, quando várias instituições financeiras multilaterais lançaram um megaprograma de perdão de dívida aos países africanos mais pobres.
As consequências negativas deste aumento do endividamento em África notam-se também na incapacidade dos governos africanos de assegurarem que as amortizações da dívida não ficam concentradas de forma a chegar a valores elevados que desequilibram os orçamentos.
“Em princípio, as amortizações tornam mais fácil pagar as dívidas, mas isto só é verdade se as amortizações forem pequenas, não quando chegam às centenas de milhões de dólares por ano”, dizem os analistas.
No relatório, o Standard Bank conclui que “se houver uma dívida problemática generalizada nos próximos anos no continente, isso estará relacionado com a incapacidade dos governos de cumprirem os pagamentos de amortizações da dívida externa, como aconteceu em Moçambique” há dois anos.
De acordo com um relatório da consultora Capital Economics, os custos de servir a dívida subiram em todo o continente, e “são agora mais altos do que em qualquer outra parte do mundo emergente; enquanto a maior parte dos governos africanos costumava dedicar 10% das receitas ao pagamento aos credores, estes níveis subiram para 20 ou 30% na maior parte dos países”, lê-se na análise assinada por John Ashbourne.
Angola, por exemplo, tem uma dívida pública que ronda os 71% do PIB, enquanto Moçambique tem uma dívida que equivale a 112% da riqueza nacional, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional, divulgados este mês.
O que é a dívida pública
Existem várias formas de medir a dívida pública. Em Portugal, e nos outros países da União Europeia, por exemplo, utiliza-se uma definição harmonizada que é, muitas vezes, designada por “dívida de Maastricht”.
De acordo com esta definição, a dívida pública corresponde ao montante contratualmente acordado pelo qual as administrações públicas terão de reembolsar os credores na data de vencimento.
Engloba as responsabilidades em depósitos e equiparados constituídos junto das administrações públicas (como são os certificados de aforro ou do Tesouro), os títulos de dívida emitidos (destacando-se, entre outros, as obrigações e os bilhetes do Tesouro) e os empréstimos obtidos por estas entidades.
Segundo a definição harmonizada, a dívida pública não engloba alguns instrumentos financeiros, nomeadamente os derivados financeiros e os outros débitos (nos quais se incluem as dívidas comerciais).
A dívida pública é compilada de forma consolidada, pelo que não inclui as dívidas de entidades das administrações públicas que sejam detidas por outras entidades das administrações públicas.
A dívida surge e aumenta sempre que o governo gasta mais do que arrecada. Assim, quando os impostos e demais receitas não são suficientes para cobrir as despesas, o governo é financiado pelos seus credores (pessoas físicas, empresas, bancos etc.), dando origem à dívida pública.
Assim, como o bom uso do crédito por um cidadão facilita o alcance de grandes conquistas (a compra de própria, por exemplo), o endividamento público, se bem administrado, permite ampliar o bem-estar da sociedade e favorece o bom funcionamento da economia.
Especialistas costumam destacar a importante função que o endividamento público exerce ao garantir níveis adequados de investimento e de prestação de serviços pelo governo à sociedade, ao mesmo tempo em que propicia maior equidade entre gerações.
As receitas e as despesas de um governo passam por ciclos e sofrem choques frequentes. Em momentos de crise, por exemplo, a economia produz menos e a arrecadação de impostos cai. Ao mesmo tempo o número de desempregados sobe e os gastos do governo com subsídios de desemprego aumentam. Com isso, a conta do governo fica mais apertada. Na ausência do crédito público, esses choques teriam de ser absorvidos por aumento na carga tributária ou por cortes noutros gastos, penalizando, demasiadamente, em ambos os casos, a geração actual.
Além da suavização, ao longo do tempo, do padrão de gastos de consumo e investimento do governo, o acesso ao endividamento público permite atender a despesas emergenciais (tais como as relacionadas a calamidades públicas, desastres naturais e guerras) e assegurar o financiamento racional de grandes projectos com um horizonte de retorno de médio e longo prazos (nas áreas de infra-estruturas, por exemplo). A história está repleta de exemplos nesse sentido, não sendo surpreendente o uso disseminado do endividamento por praticamente todos os países do mundo.
Um exemplo de projecto com alto custo, mas com benefícios de longo prazo, é a construção de hospitais. Um hospital vai durar muitos anos e será utilizado por muito tempo, inclusive por pessoas que ainda nem nasceram. Nesse caso, é justo (e eficiente) que o custo de construção do hospital seja divido por todas as gerações que vão utilizá-lo. Por isso, ao invés de cobrar uma grande quantidade de impostos extras dos cidadãos que estão vivos durante a construção do hospital, o governo pode financiar a obra e pagá-la em várias parcelas, dividindo, assim, o seu custo com as gerações futuras, também beneficiadas.
Por meio do endividamento público, o governo poderá utilizar apenas parte da arrecadação actual e parte da arrecadação futura para pagar as parcelas relativas ao custo de construção do hospital. Assim, a dívida pública permite dividir os custos de um investimento com todas as gerações que irão beneficiar dele.
O endividamento público pode exercer funções ainda mais amplas para o bom funcionamento da economia, auxiliando a condução da política monetária e favorecendo a consolidação do sistema financeiro.
Títulos de dívida pública são instrumentos essenciais na actuação diária dos Bancos Centrais para o alcance do objectivo de garantir a estabilidade da moeda, servindo de lastro para as operações típicas de política monetária, além de representarem referencial importante para emissões de títulos privados. O desenvolvimento do mercado de títulos, público e privado, pode ampliar a eficiência do sistema financeiro na alocação de recursos e fortalecer a estabilidade financeira e macroeconómica de um país.
O fundamental é zelar pela qualidade do crédito público. Só assim se pode valer do endividamento e das suas funções de forma eficiente. Aqui, mais uma vez, a analogia com o cidadão comum é válida, pois ele deve manter um bom crédito para garantir permanentemente melhores condições de financiamento (por exemplo, via menores custos e maiores prazos para pagamento).
No caso do governo, o mesmo ocorre, embora não de maneira tão simples. As suas condições de financiamento estão intimamente relacionadas com a sua credibilidade, com a sua capacidade de pagamento e com a qualidade de gestão da dívida. Por isso, a utilização responsável e consciente do endividamento público é importante para o bom desenvolvimento de um país.
Folha 8 com Lusa