O suíço-angolano Jean-Claude Bastos de Morais garante não ter tomado parte na transferência, alegadamente ilícita, de 500 milhões de dólares de Angola para um banco britânico, que envolve o sócio José Filomeno dos Santos, filho do ex-Presidente da República.
A posição consta de uma declaração escrita enviada hoje à Lusa por Jean-Claude Bastos de Morais, Presidente do Conselho de Administração (PCA) do Quantum Global Group, empresa que está a gerir 3.000 milhões de dólares do Fundo Soberano de Angola (FSDEA), até Janeiro liderado por José Filomeno dos Santos, filho de José Eduardo dos Santos, ex-chefe de Estado angolano.
“Gostaria de afirmar categoricamente que nem eu, nem o Grupo Quantum Global, empresa que dirijo como PCA, fizemos parte da transacção de 500 milhões de dólares, actualmente sob investigação das autoridades angolanas”, refere a declaração.
“Não tive conhecimento prévio desta transacção antes de ser divulgada nos meios de comunicação social e posteriormente confirmada pelo Ministério das Finanças de Angola. Além disso, em nenhuma ocasião fui interrogado pelas autoridades angolanas ou por qualquer órgão regulador, em torno da referida transacção”, garante ainda.
Contudo, nesta declaração, Jean-Claude Bastos de Morais não faz qualquer comentário ao facto de as autoridades financeiras das Ilhas Maurícias terem anunciado a 9 de Abril o congelamento de sete fundos geridos pela empresa que dirige, no seguimento de uma reunião do primeiro-ministro com um representante do Governo de Angola.
Os sete fundos cujas contas foram congeladas estavam em três bancos e eram propriedade da Quantum Global Group, que está a gerir mais de metade dos 5.000 milhões de dólares de activos do FSDEA.
As ligações entre o antigo presidente do FSDEA e o gestor com nacionalidade suíça e angolana têm sido alvo de críticas por parte da oposição política e de várias organizações que questionam os montantes envolvidos e a aplicação das verbas sob gestão da Quantum Global, que cobrará entre os 60 a 70 milhões de dólares por ano.
José Filomeno dos Santos e o ex-governador do Banco Nacional de Angola (BNA) Valter Filipe, além de outros três angolanos, foram constituídos arguidos pela Justiça de Angola, pela prática suspeita de crimes de defraudação, peculato e associação criminosa, entre outros.
O Ministério das Finanças de Angola confirmou na segunda-feira, em comunicado, já ter recuperado os 500 milhões de dólares, acrescentando que as autoridades angolanas estão “empenhadas na recuperação da totalidade dos valores pagos” no âmbito da estruturação da operação financeira alegadamente fraudulenta. Nomeadamente, a recuperação de 24,85 milhões de euros, “indevidamente transferida para a conta da empresa Mais Financial Services, resultante de uma prestação de serviços não realizada”.
No mesmo comunicado, o Governo angolano esclarece publicamente, pela primeira vez, os contornos desta operação polémica, explicando que tudo começou antes da realização das eleições gerais de Agosto, quando a empresa Mais Financial Services, que refere ser administrada pelo cidadão angolano Jorge Gaudens Pontes e auxiliado por José Filomeno dos Santos (ambos constituídos arguidos na investigação a esta transferência em Angola), “propôs ao Executivo a constituição de um Fundo de Investimento Estratégico” que mobilizaria 35.000 milhões de dólares (28.500 milhões de euros) “para o financiamento de projectos considerados estratégicos para o país”.
“Note-se que toda a operação seria intermediada pela Mais Financial Services que contava, alegadamente, com o suporte de um sindicato de bancos internacionais de primeira linha”, afirmou o Ministério das Finanças.
O negócio envolvia como “condição precedente” a capitalização de 1.500 milhões de dólares (1.218 milhões de euros) por Angola, acrescido de um pagamento de 33 milhões de euros para “montagem das estruturas de financiamento”.
Entre Julho e Agosto de 2017, foram pagos 24,8 milhões euros à Mais Financial Services, para a montagem da operação de financiamento. Em Agosto do mesmo ano foram transferidos 500 milhões de dólares (406 milhões de euros) para a conta da PerfectBit, “contratada pelos promotores da operação”, para fins de custódia dos fundos a estruturar, refere o ministério.
Uma investigação ordenada pelo novo Presidente angolano, João Lourenço, concluiu pela “falta de capacidade dos promotores e da empresa contratada para estruturar e mobilizar os fundos propostos ao Executivo”. Também “não foi confirmada a idoneidade da empresa PerfectBit” e verificou-se a “não existência de qualquer sindicato de bancos internacionais”, pelo que “a operação tinha fortes indícios de ser fraudulenta”.
Paradise Papers
Recorde-se que, em Novembro do ano passado, a UNITA, maior partido da oposição, pediu a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito para averiguar “responsabilidades políticas e administrativas” no “descaminho de verbas” do FSDEA, no âmbito da investigação jornalística internacional denominada ‘Paradise Papers’.
Em causa, na investigação jornalística entretanto revelada, estão as relações entre o FSDEA e a empresa suíça Quantum Global, de Jean-Claude Bastos de Morais – alegadamente sócio de José Filomeno dos Santos em vários negócios em Angola -, empresa especializada na gestão de activos, tida como responsável por parte dos investimentos do fundo nas Ilhas Maurícias.
As denúncias sobre o recurso do FSDEA a paraísos fiscais foram divulgadas através de documentos revelados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (CIJI), ao abrigo da investigação ‘Paradise Papers’.
A administração do FSDEA garantiu anteriormente que todas as operações que realiza são feitas de “forma legítima”, ao abrigo dos “mais altos padrões regulatórios”.
De acordo com o jornal suíço Le Matin Dimanche, que revelou documentos dos ‘Paradise Papers’, dos 5.000 milhões de dólares atribuídos inicialmente, pelo Estado, ao FSDEA, cerca de 3.000 milhões (2.500 milhões de euros) terão sido investidos em sete fundos de investimento sediados nas Maurícias, através da Quantum Global.
A Quantum Global, revela ainda o jornal suíço, receberá entre dois a 2,5% do capital por ano, o que desde 2015 corresponderá a um valor entre 60 e 70 milhões de dólares (50 a 60 milhões de euros) anuais.
“Todos os investimentos em ‘private equity’ executados são obrigados a cumprir os requisitos das directrizes de investimento definidas pelo conselho de administração do FSDEA e aprovado pela Comissão de Serviços Financeiros da República das Maurícias para cada investimento colectivo”, refere, por seu turno, a administração daquele fundo do Estado angolano.
Magnífica e miserável
Vejamos o que no livro “Magnífica e Miserável, Angola desde a Guerra Civil”, publicado em 2015, Ricardo Soares de Oliveira afirmava sobre este assunto:
“O FSDEA foi criado com base nos critérios de referência internacionais e nas melhores práticas em matéria de governação. As actividades do FSDEA respeitarão os princípios fundamentais de responsabilização e transparência”, lia-se no comunicado de imprensa divulgado por altura do seu lançamento.
Apesar dos compromissos assumidos, o FSDEA foi imediatamente objecto de publicidade negativa. O aspecto mais polémico foi a escolha de José Filomeno dos Santos, também conhecido por «Zenú», o filho mais velho do Presidente e, de acordo com rumores persistentes, a sua escolha para sucessor, para ser um dos três elementos que compõem o conselho de administração do Fundo.
(…) Zenú marcou presença em órgãos de comunicação internacional, como a CNN, onde defendeu, num inglês correcto e fluente, que a sua nomeação se baseava nas suas qualidades pessoais e experiência. “Eu estou aqui como eu próprio”, declarou, podendo ler-se no portal do FSDEA na Internet que a nomeação assenta “unicamente no mérito”.
Não obstante a experiência de Zenú na área empresarial e os diplomas atribuídos por universidades britânicas, a sua nomeação foi acolhida com cepticismo. Outro ponto de discórdia é a relação entre o Fundo Soberano e a Quantum Global Investment Management, uma empresa suíça especializada na gestão de activos com ligações profundas à família dos Santos e dirigida por Jean-Claude Bastos de Morais, um empresário suíço-angolano que é amigo pessoal de Zenú.
(…) Sem que se tenha realizado qualquer concurso público para o efeito, a Quantum Global foi incumbida da gestão de uma parte significativa do Fundo (segundo algumas notícias, um total de três mil milhões de dólares dos cinco mil milhões inicialmente atribuídos ao Fundo Soberano; o FSDEA receberá também outros montantes adicionais provenientes dos excedentes anuais da Reserva Financeira Estratégica Petrolífera de Angola, embora, no momento da redacção deste livro, os pormenores a este respeito não tivessem sido ainda esclarecidos). Por fim, as promessas reiteradas de transparência viriam a revelar-se evasivas, já que remetem para a adopção de códigos voluntários difíceis de aferir.
O cepticismo inicial manteve-se vivo em 2013. Apesar das repetidas garantias de altos responsáveis governamentais de que a Sonangol deixaria de exercer funções próprias de um Fundo Soberano para voltar a dedicar-se à sua actividade principal, a verdade é que a empresa continuou a ter o controlo da já referida carteira de investimentos estrangeiros.
Tal significa que, nos próximos anos, Angola disporá, na prática, de dois Fundos Soberanos. Não existiu qualquer fricção com o FSDEA, pois o Fundo manteve-se praticamente sem actividade no período em causa, sendo a única excepção os rumores que davam conta da aquisição de imóveis caros no bairro londrino de Mayfair; a publicação da estratégia de investimento do Fundo Soberano foi adiada por diversas vezes. Após uma remodelação governamental que conduziu à nomeação de Armando Manuel, o primeiro Presidente do Fundo Soberano, para ministro das Finanças, Zenú assumiu a presidência do Fundo.
Na sua primeira intervenção pública nesta qualidade, Zenú anunciou finalmente a tão aguardada estratégia de investimento, não faltando a habitual declaração de compromissos no que se refere a uma série de investimentos de médio e longo prazo, tanto em Angola como no estrangeiro. Contudo, o investimento com direito a destaque — a construção de uma cadeia de hotéis — é um empreendimento com uma rendibilidade duvidosa que dificilmente se coaduna com o compromisso de promoção do desenvolvimento social assumido pelo Fundo. Em suma, não se sabe ainda se o Fundo terá uma função de desenvolvimento, qualquer que seja a sua definição. Todavia, considerando apenas os recursos que lhe serão afectados, o FSDEA será, decerto, um elemento fundamental da economia política de Angola.”
Folha 8 com Lusa