Um país, várias Constituições

Em 2014, com o intuito propagandístico típico dos regimes autocráticos, o Ministério dos Assuntos Parlamentares promoveu simultaneamente em Luanda e no Huambo debates sobre a Constituição, integrados, de acordo com a versão oficial, nas comemorações do quarto aniversário da promulgação daquela que, apesar de feita à medida e por medida de sua majestade o rei, José Eduardo dos Santos, deveria ser a lei fundamental do país.

Rosa Micolo, ministra dos Assuntos Parlamentares afirmou na altura ao órgão oficial do regime, o Jornal de Angola, que um dos grandes objectivos das jornadas, que decorrem sob o lema “Vamos fazer da Constituição um instrumento de trabalho”, “é reforçar o sentimento patriótico, o respeito pelos símbolos nacionais e incutir nos angolanos a consciência da importância do primado da Constituição”.

“Trata-se da lei de todas as leis e por isso as outras devem subordinar-se-lhe”, disse Rosa Micolo, que sublinhou o interesse de se “divulgar a importância da Constituição” e de a tornar “numa espécie de livro de bolso”.

Das duas, uma. Ou a ministra não sabe o que diz ou não diz o que sabe. Rosa Micolo sabe bem que, para além do seu Ministério pouco mais ser do que uma figura de estilo, uma formalidade, a Constituição só é “a lei de todas as leis” quando isso interessa ao regime. Quando não interessa, outros valores prevalecem. Basta ver que quando a Oposição chama à colação o articulado da Constituição logo aparecem, sob o manto da segurança do Estado, arautos a dizer que quem tem sempre razão são os donos do poder.

A ministra referiu também ser importante que os angolanos, independentemente de onde estejam, “dominem os princípios e valores constitucionais para fazerem prevalecer direitos e liberdades fundamentais e vincarem a cidadania”. Bem que Rosa Micolo poderia, como lhe mandam, fazer a apologia da Constituição de José Eduardo dos Santos sem ter, ao mesmo tempo, de gozar forte e feio com a chipala dos angolanos. É que essa de dizer que os cidadãos devem “fazer prevalecer direitos e liberdades fundamentais e vincarem a cidadania” não lembraria nem aos jacarés que se alimentam dos corpos daqueles que tentaram usar a Constituição como “uma espécie de livro de bolso”.

A ministra considera, segundo relata o órgão oficial, que o desconhecimento do real significado da Constituição leva a que seja mal interpretada e a atitudes erradas.

“Há pessoas que nem sequer sabem que a liberdade de escolha decorre da própria Constituição, que consagra e garante direitos políticos, sociais e culturais a todos”, explicou a ministra, acrescentando que “os nossos direitos e liberdades económicos, políticos e culturais estão previstos e plasmados na Constituição e apenas conhecendo-a é que se percebe que ninguém está excluído, que é de todos e para todos”.

Por outras palavras, a ministra dos Assuntos Parlamentares diz que o Presidente da República, o Governo, os deputados do MPLA e restantes órgãos se soberania não conhecem a Constituição, tal a violação sistemática que dela fazem. Se conhecessem saberiam, de acordo com a ministra, que a lei das leis consagra “os nossos direitos e liberdades, que ninguém está excluído, que é de todos para todos”.

Esta iniciativa de debater o assunto, de acordo com Rosa Micolo, destinava-se “a desmistificar a ideia de Constituição” tida como “um mito ou um bicho-de-sete-cabeças”. De facto, e de jure também, para os milhões de angolanos que são gerados com fome, nascem com fome e morrem pouco depois com fome, é mesmo um mítico bicho-de-sete-cabeças. Para os que tentam cortar a cabeça a essa hidra, o resultado tem sido desastroso. Por cada cabeça cortada nascem mais duas.

A ministra recordou ao JA que o analfabetismo impede que se consigam “resultados mais imediatos”, mas referiu estar “animada porque os órgãos do Estado e as organizações da sociedade civil têm trabalhado de forma exemplar para os cidadãos, sabendo ler e escrever, tenham melhores condições de defender os direitos reconhecidos na Constituição”.

A ministra não só goza com os desgraçados como, teimando em dizer que a Constituição é igual para todos, parece estar num qualquer transe hipnótico ou, quem sabe, num sádico orgasmo alimentado pela desgraça dos escravos.

“Em muitos países os cidadãos evocam normas e princípios constitucionais em defesa de situações do dia-a-dia”, afirmou a ministra, dizendo mesmo que estão “a trabalhar para que entre nós suceda o mesmo, pois queremos que os cidadãos tenham uma convivência sã na sociedade, conheçam e exerçam os seus direitos, mas também respeitam os dos outros”.

Rosa Micolo não explica porque é que, sempre que procuram “exercer os seus direitos” à luz da Constituição, os cidadãos são ameaçados, detidos, torturados e assassinados. Talvez devesse explicar que, com esta lei das leis, o Presidente da República não é eleito de forma nominal e que, apesar disso, é ele que escolhe o Vice-Presidente, todos os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da Republica, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas e os Chefes do Estado Maior dos diversos ramos militares.

Rosa Micolo rejeita, com a liberdade que tem para – de acordo com a Constituição – pensar da mesma forma que os seus superiores, a tese da “partidarização da Constituição”, que “é soberana e não tem partido”.

Mais tento na língua e bom senso não ficaria mal à ministra. Afirmar que esta Constituição “é soberana e não tem partido” é como dizer que os rios nascem no mar ou, melhor, como obrigar a UNICEF a entrar na cadeia alimentar dos jacarés porque diz que Angola lidera o ranking mundial da mortalidade infantil.

Sobre a suposta separação de poderes, a ministra diz que “em Angola estão bem definidos”, que há o legislativo, que é do Parlamento, o exercido pelo Presidente da República enquanto titular do poder executivo, e o judicial, o dos tribunais”.

Que boa novidade nos deu Rosa Micolo. Todos sabemos que, em teoria, os poderes estão separados. Na prática todos sabem, incluindo a ministra, que quem manda no Parlamento é o MPLA e quem manda no MPLA é José Eduardo dos Santos. Todos sabem, incluindo a ministra, que o Governo executa o que o seu líder, José Eduardo dos Santos, manda. Todos sabem, incluindo a ministra, que o poder judicial, os tribunais, a PGR existem e que quem neles manda – por força da Constituição – é José Eduardo dos Santos.

Tratando-se de um entrevista a uma espécie de jornal, não dá para ver – o que é pena – o gozo que com certeza estaria a cobrir a cara de Rosa Micolo quando, por exemplo, diz que o processo de aprovação das leis no Parlamento é um “bom exemplo” de como se materializa a separação de poderes. Não se esqueceu, inclusive e de forma pedagógica, de referir a aprovação democrática das leis que o Executivo propõe para “cumprir o programa eleitoral que vai até 2017”. É obra.

Noutro rasgo digno de capítulo específico no anedotário nacional, a ministra referiu que, apesar da maioria parlamentar do MPLA conquistada nas eleições gerais, a Assembleia Nacional regista “discussões acesas nas comissões de trabalho e nas sessões plenárias”.

“Há debates políticos acalorados, como em qualquer parte do mundo, mas depois há o consenso e saímos todos de mãos dadas porque somos irmãos, filhos da Pátria, embora com diferentes ideologias partidárias”, sublinhou a ministra. De mãos dadas? Somos irmãos? Filhos da Pátria? Se a funcionária de Eduardo dos Santos assim o diz…

A ministra sublinhou ainda os progressos no poder judicial e a independência dos juízes: “O poder judicial cabe aos tribunais, designadamente aos juízes que devem obediência unicamente à lei e à própria consciência, mas realço que as decisões têm de respeitar a Constituição, pois ninguém está acima dela”.

Pois é. É aí que a hiena chora. O poder judicial cabe aos tribunais. E quem escolhe quem manda nos tribunais? Os juízes devem obediência à lei. E quem faz, de facto, as leis? Ninguém está acima da Constituição. Ninguém?

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