Ontem, reclamava uma certa fadiga mental à tia São, depois de uma semana de pouca saúde. Pelo meio, falámos do sistema actual de saúde, das batalhas diárias do cidadão comum para sustentar a família e de como a crise económica tende a piorar, asfixiando cada vez mais os angolanos que não têm os privilégios do poder.
Por Rafael Marques de Morais (*)
A tia São aproveitou então para reiterar a sua pregação de há muitos anos: “Meu filho, temos de entregar tudo nas mãos de Deus.” Respondi-lhe com o mesmo argumento de sempre, segundo o qual Deus age por via da bondade dos homens que lhe são leais e se dedicam a mostrar o melhor caminho aos outros. Moisés, David, Jesus Cristo foram exemplos disso mesmo.
Discutimos um pouco sobre a Bíblia, com a tia São a insistir que devemos esperar pela intervenção de Deus. Eu insistia na intervenção dos homens enquanto cidadãos com responsabilidades individuais e colectivas no que diz respeito à nossa sociedade. Como acontece desde há anos, não houve aproximação entre as nossas posições distintas e, como não sou passivo, conformista, cúmplice ou conivente, prefiro assumir as minhas responsabilidades enquanto cidadão e rezar em privado.
De certo modo, é o pensamento da tia São que me faz entender melhor a mentalidade dos dirigentes do MPLA e dos seus militantes, que carregam nas mãos o destino De Angola. José Eduardo dos Santos é o deus pagão do MPLA, é o deus a quem os dirigentes e militantes do partido entregaram o destino do país. Isabel dos Santos agora é a menina Jesuína, que veio salvar, ao mesmo tempo, Luanda e a Sonangol. Nem sequer teve tempo de implementar o tal Plano Metropolitano de Luanda, deixando o trabalho de recolher o lixo ao general Higino Carneiro, fiel apóstolo.
Pouco depois, falei com um amigo do MPLA. No gozo, fez questão de sublinhar o MPLA como o partido do seu coração. Falou-me de alguns veteranos que lhe têm confidenciado qual é, na sua opinião, a melhor solução para o país: aguardar que o presidente cumpra a promessa de abandonar o poder em 2018. E se não abandonar? E se subir ao poder a filha ou o filho ou o afilhado ou quem JES decidir? Esperamos mais 30 ou 40 anos para afirmarmos que o país é de todos os angolanos e que todos temos o direito de exigir mudanças, reformas na administração do Estado e pôr fim à impunidade dos dirigentes-ladrões?
Vende-se a ideia de que o deus pagão decide e o povo se submete. E assim se vai criando a aura para que Isabel dos Santos chegue à presidência enquanto eleita de deus. Mas não do Deus com D maiúsculo.
Angola não pertence ao MPLA, nem aos seus dirigentes. Mas milhões de angolanos, milhões de soberanos desta pátria apoiam o pai, a filha e a família Dos Santos.
Em Agosto próximo, o MPLA realizará o seu congresso com um candidato único à presidência: José Eduardo dos Santos. Nem sequer há um candidato fantoche para disfarçar o regime totalitário no seio do partido. Só há fantoches para aplaudirem e para se deixarem manipular.
Agosto é o mês do presidente. Completa 74 anos a 28 de Agosto. Essa data já rivalizou com o 11 de Novembro, o dia da independência de Angola, em termos de celebrações nacionais.
Dos Santos preside simultaneamente ao partido no poder e ao país há 36 anos. Só o seu amigo Obiang, o ditador da Guiné-Equatorial, supera o chefe angolano, por escassas quatro semanas, como o presidente há mais tempo no poder, no mundo inteiro. Será esse um motivo de orgulho para os angolanos e, para o MPLA, a medalha de prata de longevidade actual no poder? Será que aguardamos pela reforma ou pela morte de Obiang para conquistarmos a medalha de ouro com o presidente há mais tempo no poder em todo o mundo?
Hoje, o povo angolano e o MPLA, em particular, terão motivos para celebrar uma tal medalha? Há emprego para os jovens? O povo tem saúde? O povo tem educação? Há qualidade nos serviços básicos de saúde e de educação que se prestam ao povo? Há prestação de serviços públicos de qualidade aos cidadãos?
O interior de Angola, onde não há arranha-céus como em Luanda, está a desenvolver-se? E mesmo em Luanda, onde os vidros espelhados dos altos edifícios projectam a nossa ilusão de modernidade, há saneamento básico aceitável para a maioria da população? Qual é o nosso termo de comparação? A época colonial, o Zimbabué ou a Guiné-Equatorial?
Quando eu era criança, acreditava que o MPLA era o mesmo que o Estado e que o povo. Bastava defender o MPLA, que se estaria a defender a pátria e o povo. Mas o que era o MPLA? O que é o MPLA hoje? Quem eram os dirigentes do MPLA, quem são hoje os seus dirigentes?
Quais são actualmente os ideais do MPLA? Os seus militantes defendem ideais ou defendem os interesses da família presidencial e dos seus comandados? O que é hoje o povo para o MPLA? Os militantes do MPLA acreditam em quem, no quê e por que razões, se hoje já não se defende o que é melhor para o povo?
Coloco estas perguntas a mim mesmo, porque hoje vejo mais fantoches do que militantes no MPLA. Vejo indivíduos sem capacidade de crítica ou autocrítica, sempre refugiados em argumentos vazios e falsos para não assumirem quaisquer responsabilidades. Lutam apenas por benesses e aguardam de mãos estendidas a generosidade do chefe. Passaram de soberanos a mendigos.
O povo angolano nunca viveu em democracia. Habituou-se a obedecer às ordens do colonizador português e da ditadura do MPLA que o substituiu. Durante e depois da guerra civil, José Eduardo dos Santos foi tomado como o único líder que salvaria os angolanos das garras de Jonas Savimbi. Todos os que se opuseram à submissão e ao conformismo nas diversas circunstâncias da história de Angola independente foram sendo derrotados ou mesmo aniquilados.
Partilho estas questões como um apelo aos militantes do MPLA, camaradas e compatriotas. Por um momento, coloquem o cinismo e a fantochada política de lado. Respondam: por que é que o MPLA não defende o povo em tempos de paz?
É hora de pensarmos enquanto angolanos e não enquanto militantes de partidos. Temos de pôr termo aos actos delinquentes da família Dos Santos, arrancá-los do pedestal do poder. Cabe a cada angolano capaz e consciente contribuir para a definição das balizas necessárias para a construção de uma nação inclusiva, com base na lei, na moral e nos bons costumes.
Ser angolano é também ter coragem.
(*) Maka Angola