Os 15 detidos em prisão domiciliária desde Dezembro regressam esta segunda-feira a tribunal, meio ano depois de terem sido detidos e acusados de quererem derrubar o regime.
Por Joana Gorjão Henriques (*)
A o fim de cerca de três semanas em prisão domiciliária, os 15 activistas acusados de quererem derrubar o Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos, deverão regressar ao banco dos réus esta segunda-feira. O retomar do processo dos 17 (duas activistas aguardaram sempre o julgamento em liberdade) está marcado para mais de meio ano depois de terem sido presos, a 20 de Junho.
Em Dezembro, em protesto contra a morosidade do processo, Sedrick de Carvalho, o jornalista do semanário Folha 8 de 26 anos, entrou em greve de fome com outros dos detidos, incluindo Luaty Beirão, o músico que esteve 36 dias sem comer e chamou a atenção internacional para o caso. Pouco depois dessa nova onda de greves de fome, o Ministério Público angolano pedia a prisão domiciliária dos 15.
Todos os réus já foram ouvidos desde o início do julgamento, a 16 de Novembro. Com base no cruzamento de informações de fontes que não podem ser identificadas, o PÚBLICO conta agora mais pormenorizadamente o que se passou desde 20 de Junho,
Nesse dia, 13 dos detidos estavam reunidos pela sexta vez numa das salas de aula ligadas à residência em Luanda de Alberto Neto, líder do agora extinto Partido Democrático Angolano e o terceiro candidato mais votado nas eleições de 1992. Além de residência, o edifício tem uma biblioteca, um instituto de línguas e era a sede do partido. O também professor tinha cedido aos jovens a sala para os debates.
Como condição prévia para participar nas discussões, o grupo tinha imposto a aceitação do activismo político e cívico com base na filosofia da não-violência. Discutiram hipoteticamente se métodos como a queima de pneus em manifestações deveriam ser considerados violentos, não tendo chegado a nenhuma conclusão nem decisão sobre se iriam adquirir pneus para incendiar na manifestação que eventualmente organizassem.
Numa das seis sessões, dois jovens que estavam a participar pediram a palavra e defenderam que só a violência resultaria em mudanças. Os líderes deixaram-nos falar mas logo de seguida disseram que quem achasse que a não-violência não funciona deveria encontrar outro grupo para debater – essa era a única cláusula não discutível. Pediram mesmo aos jovens para não regressar se não mudassem de ideias, já que isso atrasaria o ritmo dos debates.
Na semana anterior à detenção, os activistas já tinham sido alertados pelos vizinhos de que havia gente “estranha” a cirandar nas redondezas. Habituados a serem espiados, e com a certeza de que não estavam a fazer nada de ilegal, desvalorizaram os alertas.
O dia da detenção
No dia da detenção estavam menos pessoas do que o habitual. O debate, marcado para as 13h, começou às 13h30. A discussão seria à volta do capítulo do livro/brochura Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura – Filosofia Política da Libertação para Angola, do académico Domingos da Cruz, que aliás o tinha proposto como tema de debate com o objectivo de incorporar ideias na sua obra.
Porém, o grupo começou por falar de assuntos que estavam pendentes da semana anterior, nomeadamente de uma palestra que queriam organizar em data próxima. Discutiram também a necessidade de criar um movimento estruturado.
Não tinha passado uma hora do início do debate quando cerca de dez homens armados entraram na sala, com um aparato que foi descrito como sendo de filme: deram-lhes ordens para deitarem a cabeça nas carteiras e levantarem as mãos. Houve mesmo, entre esse grupo de homens, quem filmasse a operação.
Na sala estavam 13 activistas: Sedrick de Carvalho, Fernando Tomás “Nicola Radical”, Luaty Beirão, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, Hitler Jessy Tshikonde “Samussuku”, José Gomes Hata, Benedito Jeremias “Dito Dali”, Nelson Dibango, Arante Kivuvu, Nito Alves, Nuno Álvaro Dala, Inocêncio António de Brito “Drux” e Albano Evaristo Bingo Bingo. Lá fora, estavam mais de 10 viaturas, entre mini-autocarros, jipes e carros com polícia de intervenção rápida a vedar o acesso a rua. Sem mandado de captura, anunciaram aos jovens que tinham sido presos em “flagrante delito”.
Isolamento e transferências
Imediatamente separados, os detidos passaram alguns dias em celas de várias esquadras de Luanda. Houve quem tivesse ficado sozinho numa cela quando o habitual é que num espaço com menos de dez metros quadrados se amontoem entre dez e treze pessoas, muitas vezes sem colchão ou lençóis. A água jorrava duas vezes por dia durante 30 minutos, altura em que aproveitavam para encher os bidões. Os mosquitos atacavam.
Houve transferências sem ninguém ter sido informado, feitas de noite e sem que soubessem para onde se dirigiam. Seis dos 15 detidos foram colocados em celas de isolamento na prisão de Calomboloca e aí ficaram até 25 de Setembro, com direito a uma hora de “banho-de-sol” diário, algo que não aconteceu todos os dias.
Algumas celas foram descritas como sendo autênticas casas-de-banho e nem todas tinham luz. Durante três meses não puderam contactar uns com os outros nem com os outros reclusos, foram privados do acesso à informação e tudo o que escreviam era recolhido. Houve detidos que fizeram acusações de tortura física.
Luaty Beirão, filho de um homem próximo do regime, João Beirão, que morreu em 2006, chama a atenção internacional para o caso ao prolongar uma greve de fome por 36 dias em protesto contra o tempo de detenção – termina-a a 27 de Outubro. Multiplicam-se as notícias na imprensa internacional e as vigílias em solidariedade com os presos. O julgamento é finalmente marcado para 16 de Novembro.
As botas e o penteado
Na primeira sessão, os arguidos entram descalços e com as camisolas pintadas com inscrições – nas costas de Benedito Jeremias podia ler-se: “Nenhuma ditadura impedirá o avanço de uma sociedade para sempre”. Luaty Beirão explica, em tribunal: “Estivemos cinco meses à espera de botas. Chegaram hoje às 4h, antes de virmos para aqui. Já não precisamos.”
Na sala de audiências, o juiz faz perguntas como “quem é o ditador” e observadores e jornalistas são deixados à porta. Uma das procuradoras, Isabel Nicolau (Isabel Fançony antes do casamento), entra na sala com um penteado que lhe tapa totalmente os olhos, provocando uma onda de indignação e gozo nas redes sociais.
O penteado é contestado pelo advogado David Mendes, que diz: “Meritíssimo, isto não se permite. Eu não sei quem está debaixo dessa mascara aí. O Ministério Público representa o Estado e o Estado não pode se esconder. Nesta sala podemos ver o rosto de todos menos o dela”. A procuradora responde: “Este é um simples penteado como outro qualquer. Os incomodados que se retirem.”
Foram até agora apresentadas como provas de “actos preparatórios” de rebelião e atentado contra o Presidente vídeos dos debates, que os réus dizem ter sido editados pelos serviços secretos; fotocópias da brochura/livro de Domingos da Cruz (ainda não editada); uma lista de nomes que alguns consideraram competentes para governar, proposta por um internauta e fruto de uma discussão em comentários num post de Facebook no seu mural, e um quadro de sala de aulas, que tinha as iniciais JES ao centro.
Um dos nomes que constava naquele post, Julino Kalupeteca, é o líder de um grupo milenarista dissidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia, apresentado como o presidente interino do Governo de Salvação Nacional. Os jovens são acusados de desenvolver acções de “consciencialização e mobilização da população, extensiva a mulheres, crianças, estudantes universitários, moto-táxis, estivadores, zungueiros, entre outros”.
Ordens superiores
O pedido do Ministério Público para a prisão domiciliária, ainda antes da entrada em vigor da lei que o permitia, é lido como tendo seguido uma ordem superior de José Eduardo dos Santos por causa da greve de fome de Sedrick de Carvalho, que ameaçou não ingerir nem sólidos nem líquidos (o que lhe provocaria a morte e seria lido como tentativa de suicídio)
A opinião entre os réus é de que este processo é um embuste mas muito mal preparado. Agora vão ser chamados nomes como Julino Kalupeteca, o general José Maria, chefe dos serviços secretos militares, que alguns acusam ser o arquitecto deste processo, o homem que fez as filmagens e o que fez a denúncia.
Por enquanto, os detidos continuam a ser vigiados. Há quem descreva que têm à porta entre dois a três polícias uniformizados, um a dois “reeducadores” dos serviços prisionais e um elemento do Destacamento Especial dos Serviços Prisionais, todos à paisana. As autoridades anunciaram que iriam ser destacados 150 agentes para controlar os 15, dez por cada detido. Se as acusações forem provadas, os activistas incorrem numa pena de até três anos de prisão ou multa de 360 dias.
(*) In: Jornal Público
Nota: Título do Folha 8
[…] Fonte: Folha 8 […]