O julgamento do nosso colega Rafael Marques, hoje iniciado, foi suspenso até 23 de Abril, para o Tribunal angolano consultar melhor o processo face aos argumentos apresentados pela defesa, consubstanciados na ilegitimidade do mesmo.
L uís Nascimento, advogado de defesa, referiu que o Tribunal confirmou que a defesa não recebeu nenhuma acusação particular, apenas a notificação do Ministério Público.
“E, por conseguinte, o Tribunal resolveu apreciar tudo e tentar limar todas as arestas até ao dia 23, vamos ver se consegue”, referiu Luís Nascimento.
O julgamento do activista e jornalista Rafael Marques, acusado do crime de “denúncia caluniosa”, teve início a meio da manhã de hoje, decorrendo à porta-fechada após a leitura da acusação e da contestação.
A defesa concluiu na sua leitura pela inexistência de requisitos essenciais do crime de “denúncia caluniosa”, na medida em que a acusação do Ministério Público não prova a “falsidade das imputações e a consciência da falsidade por parte do arguido”.
“De resto, mesmo se houvesse crime de denúncia caluniosa não seriam oito crimes, porquanto o arguido apresentou uma única participação criminal de pessoas interligadas pelos mesmos interesses económicos, havendo por isso simplesmente uma mera pluralidade, ademais verifica-se uma unidade de acção e por conseguinte unidade de norma jurídica”, frisou Luís Nascimento na leitura da contestação.
Rafael Marques é acusado de “denúncia caluniosa”, por ter exposto abusos contra os direitos humanos na província diamantífera da Lunda Norte, com a publicação, em Portugal, em Setembro de 2011, do livro “Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola”.
Os queixosos são sete generais, liderados pelo ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, general Manuel Hélder Vieira Dias Júnior, conhecido como “Kopelipa”, e os representantes de duas empresas diamantíferas.
Na leitura da acusação, o Ministério Público referiu que os ofendidos consideram “eivada de falsidade” a queixa-crime apresentada por Rafael Marques.
“Durante a instrução do processo e ouvido em interrogatório o arguido, Rafael Marques de Morais, quando questionado sobre os factos imputados aos ofendidos não apresentou qualquer justificação plausível”, sustentou a acusação.
O Ministério Público considera ainda que Rafael Marques “agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal e ainda assim não se absteve de a praticar”.
“Com a supracitada enunciação dos factos incorreu o arguido Rafael Marques de morais na prática de oito crimes de denúncia caluniosa, previsto e punido nos termos do artigo 245 do Código Penal”, acrescentou a acusação.
A lei relativa à suposta denúncia caluniosa pela qual Rafael Marques está a ser julgado deveria ser considerada, isto se Angola fosse um Estado de Direito democrático, uma violação da Constituição do próprio país e, igualmente, das obrigações de Angola à luz do direito internacional.
Rafael Marques tem um longo historial de trabalho através do qual responsabiliza o Governo angolano, nas suas investigações jornalísticas, não só fundamentadas mas conceituadas, por violações de direitos humanos e corrupção.
Rafael Marques recebeu numerosos prémios internacionais de prestígio pelo seu trabalho. É um defensor da igualdade de oportunidades no âmbito dos direitos humanos, e trabalha para expor violações, independentemente de quem as pratica. Devido ao seu trabalho, foi preso e detido várias vezes em Angola. O Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas determinou que uma anterior condenação por difamação violava os direitos à liberdade e à segurança pessoal, liberdade de movimento e liberdade de expressão.
O livro pelo qual Rafael Marques vai a tribunal, “Diamantes de Sangue, Corrupção e Tortura em Angola”, faz graves acusações de flagrantes violações de direitos humanos cometidas contra residentes na região das Lundas, no decurso de escavações em minas de diamantes, nomeadamente mortes, tortura e desalojamentos forçados. Os militares, as empresas das minas de diamantes e as empresas de segurança privada envolvidas tentaram inicialmente processar Rafael Marques por difamação em Portugal, mas o caso foi arquivado. Mudaram depois de local, e avançaram com uma acção legal contra Rafael Marques em Angola.
Já ocorreram irregularidades neste processo legal contra Rafael Marques, incluindo interrogatórios sem a presença do seu representante legal, notificações e citações inapropriadas, e uma contradição de fundo: a aparente intenção do Governo de chamar Rafael Marques como testemunha, de que resultou a sua constituição como arguido e como testemunha do Estado no seu próprio julgamento.
É por saberem que o regime põe a lei da força acima da força da lei que organizações como a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch, a Media Legal Defence Initiative, o Centro de Litigação da África Austral, o Comité para a Protecção dos Jornalistas, os Repórteres sem Fronteiras, a Freedom House e muitos outros estão preocupadas com a certeza de que Rafael Marques não terá um julgamento justo, assim como com os repetidos esforços do Governo angolano para restringir a sua liberdade de expressão, e, ainda, de outros jornalistas e cidadãos no país, como é o caso do nosso Director, William Tonet, que já soma 100 processos.
Estes organismos instam o sistema judicial angolano a reconhecer a decisão de Dezembro de 2014 do Tribunal Africano para os Direitos Humanos e dos Povos, num caso de difamação contra um jornalista no Burkina Faso, segundo a qual as penas de prisão como sanção para a difamação violam a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
A lei relativa à denúncia caluniosa pela qual Rafael Marques está a ser julgado deve, por isso, ser considerada uma violação da Constituição de Angola e das obrigações de Angola à luz do direito internacional.