O político angolano Raul Tati lamentou que o “diferendo político e militar” de Cabinda não conste das celebrações oficias dos 50 anos de independência de Angola e acusou os governantes de “falta de juízo” para solucionar crises do país.
Para o também padre suspenso do sacerdócio há 14 anos, após “crise” da Igreja Católica em Angola, a província de Cabinda vive um “diferendo político, jurídico e militar”, que “é um passivo da descolonização que não correu como deveria ser”.
“Cabinda deveria ter uma descolonização à parte porque sempre foi protectorado português, não uma colónia, por força do Tratado de Simulambuco, de 1 de Fevereiro de 1885, em que os régulos entenderam que deveriam procurar uma protecção de Portugal, quando se fazia a distribuição das posições africanas para europeus”, disse à Lusa.
Passados precisamente 140 anos da assinatura do Tratado de Simulambuco, Raul Tati referiu que o artigo 3.º do documento “diz taxativamente que Portugal em nenhuma circunstância pode alienar o território [de Cabinda], nem parte do território, a nenhuma outra força ou potência”.
Contudo, apontou, o artigo 3.º do Acordo de Alvor — assinado em Janeiro de 1975 entre o Governo português e os três movimentos de libertação (MPLA, FNLA e UNITA) para a independência de Angola –, que é relativo ao território, “faz integração de Cabinda a Angola”.
“Esta é a questão da lógica da história, portanto, aqui Portugal lavou as mãos em relação a Cabinda”, declarou.
Raul Tati, de 62 anos, insistiu que Cabinda “é um passivo” transportado até hoje pelas autoridades angolanas, que “preferem combater de forma militar a guerrilha” protagonizada pelas Forças de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC), que há anos reivindica a independência do território.
“Estamos a falar de forças militares da FLEC em Cabinda. Vocês viram pela Televisão Pública de Angola (TPA), no mês de Maio passado, a apresentação de mais de 200 efectivos da FLEC com os seus comandantes, quando diziam [as autoridades em Luanda] que não havia [guerrilha]. De onde saíram essas pessoas? Caíram do céu? Portanto, isso é para dizer que esse problema existe”, observou.
Natural de Cabinda e uma das vozes mais activas na defesa dos direitos humanos nesta província, o também ex-deputado integrado na bancada da UNITA (oposição) afirmou que “a guerrilha de Cabinda deve ser das mais antigas de África” e que o assunto deveria ser analisado e resolvido no jubileu dos 50 anos de independência.
Raul Tati defende “não independência”, mas a autonomia da região, numa perspetiva supramunicipal ou provincial, como um dos caminhos para a resolução do “diferendo”.
No seu entender, “ainda não houve um acordo sério entre ‘cabindas’ e o Governo angolano”, acusando o Presidente angolano, João Lourenço, de não ter iniciativa.
“Desde que está no poder, há praticamente oito anos, não vejo iniciativas. Todas as vezes que o Presidente da República foi confrontado com essa questão [sobre Cabinda] por jornalistas, sempre fora do país, ignorou sempre”, referiu, ironizando: “Você está a ignorar, depois vem a ser desmentido pela sua própria televisão (TPA) que apresentou os guerreiros [da FLEC] … é o próprio regime a desmentir o próprio regime”.
Colocando no Governo angolano “o ónus principal para resolver o problema”, salientou a abertura dos “cabindas”, avisando que, “na resolução dos conflitos”, é preciso haver “duas vontades”.
E insistiu que, neste ano das celebrações dos 50 anos de independência, a serem assinalados em 11 de Novembro próximo, deveria ser dedicada uma atenção especial à questão de Cabinda.
Raul Tati lamentou que a província, encravada entre a República do Congo e a República Democrática do Congo, a norte de Angola, rica em petróleo, continue empobrecida e com preços mais altos, dos bens e serviços, por causa da sua “insularidade”, referindo que hoje a descontinuidade não é apenas geográfica, mas também económica e psicológica.
“Isto tudo, de alguma maneira, traz este desalento e desencanto relativamente ao desempenho do Governo de Angola em Cabinda (…), isto significa que Cabinda não teve a justiça retributiva [da exploração petrolífera]”, considerou, ressalvando esperar que a Refinaria de Cabinda se traduza em “justiça” para a população local, que enfrenta, “muitas vezes” escassez de combustível.
Aplaudindo o alcance da independência de Angola, “apesar de ter sido muito malparida e com descolonização que trouxe uma série de calamidades para o país”, referiu que, após o fim do conflito armado fratricida, o país precisa de paz social.
“Ora, passados mais de 20 anos desde que veio a paz militar, o país ainda está a mergulhar em crises cíclicas, do ponto de vista económico e financeiro. E essas crises, eu já dizia no parlamento, não são só por falta de recursos, ou falta de dinheiro, mas é por falta de juízo de quem está a governar”, criticou.
O activista da causa de Cabinda enalteceu o Congresso Nacional da Reconciliação agendado para a novembro próximo, iniciativa da Conferência Episcopal de São e Tomé (CEAST), acreditando que deve ajudar a suavizar o ambiente político “turvo e tenso” que se vive em Angola.
Contudo, lamentou que a situação de Cabinda “não conste” da agenda do congresso, que vai refletir o percurso de Angola em meio século de independência.
“Eu reclamo como ‘cabinda’. Deveria haver uma palavra relativamente a este passivo chamado Cabinda”, insistiu o também antigo vigário-geral da Diocese local.
Apesar das críticas, Raul Tati disse ter uma perspetiva “muito boa” sobre Angola nos próximos 50 anos, porque, “do ponto de vista de potencialidades, Angola tem tudo para vencer”.