O segundo mandato de Donald Trump promete trazer ameaças históricas à liberdade de imprensa nos EUA. O presidente eleito deixou claro durante a campanha que tem a imprensa na mira. Ele disse num comício na véspera da eleição que “não se importaria” se um assassino atirasse contra os jornalistas que estavam diante dele.
Por Julie Posetti, Kaylee Williams e Mel Bunce (*)
Pouco antes da eleição, Trump também demonstrou o desejo de prender jornalistas, perseguir fontes confidenciais, cancelar concessões de rádio e TV de grandes redes e criminalizar o trabalho para combater a desinformação.
Jornalistas nos EUA, um país que há muito está na linha de frente pela defesa da liberdade de imprensa global, vêem-se diante de ameaças mais familiares aos seus colegas nas Filipinas, Hungria ou Venezuela. E é com jornalistas desses países que a imprensa dos EUA deve aprender como defender a liberdade de imprensa e a luta pelos factos.
As implicações para a profissão são assustadoras neste segundo mandato que promete ser resistente às práticas centrais do jornalismo independente crítico. Jornalistas podem vir a enfrentar ameaças crescentes tanto de críticas com motivação política quanto de potencial assédio legal. Por exemplo, Trump tem usado repetidamente o sistema legal contra jornalistas cuja cobertura não o beneficia.
Desde 2016, Donald Trump já processou muitos órgãos de comunicação social por difamação. Recentemente, abriu um processo contra a CBS por causa da entrevista do programa 60 Minutos com Kamala Harris.
Provavelmente também haverá mais impunidade para ameaças online direccionadas a jornalistas e à Imprensa dos EUA. Por exemplo, o X anunciou recentemente actualizações na função de bloqueio, permitindo que usuários visualizem contas que os bloquearam, o que segundo críticos poderia aumentar o assédio.
E, conforme mostra um estudo do Centro Internacional para Jornalistas e a UNESCO, os ataques online podem acabar convertendo-se em danos offline. Mulheres e minorias étnicas e raciais têm mais probabilidade de estarem em risco.
Paralelamente, a luta dentro dos EUA para uma legislação contra o discurso de ódio e a perigosa desinformação nas redes sociais parece estar perdida.
Muitos republicanos pró-Trump também argumentam há muito tempo que o trabalho para defender os direitos humanos, a saúde pública e a integridade das eleições nas redes sociais por meio de curadoria e regulamentação é uma violação da “liberdade de expressão”. Eles alegam que esse tipo de esforço é enviesado contra perspectivas conservadoras, apesar de vários estudos derrubarem essa tese.
Durante a campanha de 2024, Trump referiu-se aos esforços para atenuar a desinformação política como “o cartel da censura”. Ao mesmo tempo, ele espalhou inúmeras mentiras do alto do palanque de campanha.
Durante o primeiro mandato, Donald Trump usou frequentemente o termo “fake news” para atacar a cobertura da imprensa que não dizia o que ele queria.
Mesmo antes do início deste ciclo eleitoral, republicanos intensificaram esforços para atrapalhar o trabalho de verificação de factos após a insurreição de 6 de Janeiro – que por si só foi alimentada por desinformação, como a sugestão de que a eleição havia sido “roubada”.
Mas num pronunciamento em 2022, Donald Trump anunciou que, ao ser reeleito, iria proibir agências, funcionários e recursos federais de se envolverem com esforços que segundo ele impedem o discurso legítimo, e que investigaria os envolvidos nessas actividades. Isso inclui combater, classificar ou sinalizar desinformação, o que ele erroneamente considera censura.
A promessa foi reforçada por Elon Musk imediatamente após a eleição numa publicação no X. Musk já provou ser um dos oponentes mais estridentes aos esforços para combater a desinformação, conforme demonstrado pelas suas tentativas de processar centros de pesquisa sem fins lucrativos focados no combate ao discurso de ódio online.
Durante o seu primeiro mandato, Trump tentou retalhar dramaticamente o orçamento da Imprensa de serviço público. Tratam-se de emissoras financiadas com dinheiro público com a expectativa de que produzam jornalismo independente. Sob o governo de Trump, o financiamento foi reduzido de 465 milhões de dólares para somente 30 milhões, numa decisão que ameaçaria o jornalismo local e investigativo pelo país.
Esses cortes acabaram sendo barrados pelo Congresso, mas não está claro se legisladores republicanos vão opor-se a Trump no segundo mandato.
Durante o primeiro governo, também houve politização intensa e ataques contra o jornalismo na Voice of America (VoA), maior e mais antiga emissora dos EUA de serviço público internacional.
Em 2020, o então presidente nomeou um novo CEO, Michael Pack, para comandar a Agência para Mídia Global dos EUA, empresa matriz da VoA, e revisar a actuação do órgão. No curto mandato de sete meses, Pack demitiu funcionários antigos, congelou orçamentos para coberturas jornalísticas e abriu investigações contra jornalistas supostamente enviesados.
A emissora pública PBS, que realiza uma das coberturas mais importantes de prestação de contas nos EUA, também está extremamente vulnerável devido a cortes de recursos.
Enquanto isso, Musk, que deve desempenhar um papel importante no corte de gastos e actividades do governo no segundo mandato de Trump, tem um histórico de campanhas para acabar com o financiamento da mídia de serviço público.
Com todos esses riscos, organizações internacionais de liberdade de imprensa expressaram estar alarmadas com a perspectiva de Trump aumentar os ataques contra a imprensa no seu segundo governo.
No entanto, uma pesquisa pré-eleição encomendada pelo Centro Internacional para Jornalistas sugeriu que todas essas preocupações não estão afectando a população dos EUA. A pesquisa de abrangência nacional feita com 1.020 adultos descobriu que quase um quarto (23%) das pessoas entrevistadas não viam as ameaças, assédios e abusos de líderes políticos contra jornalistas como uma ameaça à liberdade de imprensa.
Tendo em vista o que vimos sobre o tipo de “líderes” políticos que Trump parece admirar, bem como suas acções durante o primeiro mandato, há boas razões para acreditar que sua ameaça vai ser muito real nos próximos quatro anos.