NÃO APAGAR A MEMÓRIA NEM A VERDADE

O antigo campo de concentração da ditadura portuguesa no Tarrafal, Cabo Verde, conta a partir de hoje com um centro de documentação, na Internet (www.tarrafal-cdt.org). A iniciativa surge no âmbito da evocação pela Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril, que se associou à celebração dos 50 anos da libertação dos presos políticos do Tarrafal, que hoje se assinalam.

Em Julho de 2021, Cabo Verde e Portugal assinaram um protocolo para protecção e conservação do património cultural, com destaque para o antigo Campo de Concentração do Tarrafal, visando a candidatura a património mundial. Em 2008, Manuel Pedro Pacavira (dirigente do MPLA e colaborador da PIDE) foi um dos presos angolanos a intervir no Colóquio Internacional sobre o Tarrafal.

O memorando de entendimento foi assinado pelos então ministros da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde, Abraão Vicente, e da Cultura de Portugal, Graça Fonseca, no âmbito de uma visita oficial que a governante portuguesa efectuou ao arquipélago, e aconteceu no antigo Campo de Concentração do Tarrafal, no norte da ilha de Santiago.

Com o documento, os dois países pretendiam cooperar na protecção, conservação, salvaguarda e divulgação do património cultural, através de formação, capacitação técnica, partilha de conteúdos científicos, publicações, investigação, intercâmbio profissional, actividades científicas conjuntas.

Mas também promover a mobilidade de técnicos, preparação de exposições, nomeadamente nos domínios do património material (móvel e imóvel), do património imaterial e dos museus, com especial destaque para o Museu da Resistência do Campo do Tarrafal e para o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade.

A então ministra da Cultura portuguesa, Graça Fonseca, acrescentou que o protocolo iria ajudar na elaboração da candidatura do antigo campo de concentração do Tarrafal a património material da Humanidade, feita em colaboração com o trabalho que o Governo português estava a realizar na Fortaleza de Peniche.

“São dois locais que têm uma história para contar, estamos a partilhar o trabalho, iniciamos em Portugal com todo o processo de musealização da Fortaleza de Peniche, agora Museu Nacional da Resistência, e é exactamente com esse objectivo, cooperação técnica nas diferentes áreas”, afirmou a ministra.

A cooperação técnica envolvia a Direcção Geral do Património de Portugal e o Instituto do Património Cultural (IPC) de Cabo Verde, explicou ainda a ministra, considerando que os dois países mostraram que não esquecem o passado e estão a construir o futuro.

“Para que a cultura chega a todos, para que património cultural esteja ao usufruto de todos, é fundamental preservá-lo e dá-lo a conhecer, sem censura, nem omissão, porque assim mesmo é a cultura”, disse Graça Fonseca.

Por sua vez, o ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde, Abraão Vicente, disse que, depois da reabilitação concluída há quatro meses, o país dava início a uma nova etapa de preservação e valorização da memória colectiva e “nunca esteve tão perto” da entrega da candidatura do antigo campo de concentração do Tarrafal a património da Humanidade.

Acreditando que a candidatura tinha todas as condições para ser “vitoriosa”, Abraão Vicente disse que, além de Portugal, esperava contar com “total engajamento” de Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe.

Situado na localidade de Chão Bom, o antigo Campo de Concentração do Tarrafal foi construído no ano de 1936 e recebeu os primeiros 152 presos políticos em 29 de Outubro do mesmo ano, tendo funcionado até 1956.

Reabriu em 1962, com o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, destinado a encarcerar os anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Após a sua desactivação, o complexo funcionou como centro de instrução militar e desde 2000 albergou o Museu da Resistência. O espaço foi classificado Património Cultural Nacional em 2004 e integra a lista indicativa de Cabo Verde a património da UNESCO.

Ao todo, foram presas neste “campo da morte lenta” mais de 500 pessoas: 340 antifascistas e 230 anticolonialistas.

No dia 29 de Outubro de 2008, Manuel Pedro Pacavira foi um dos presos angolanos a intervir no Colóquio Internacional sobre o Tarrafal, colóquio este promovido pelo movimento «Não Apaguem a Memória» e pela Associação 25 de Abril e realizado na Assembleia da República Portuguesa.

Em 2009, Manuel Pedro Pacavira foi reeleito para o Comité Central e para o Bureau Político do MPLA. Foi Ministro da Agricultura e dos Transportes, representante de Angola na ONU, Governador do Cuanza Norte e embaixador de Angola em Cuba e na Itália. Foi, antes de tudo isso, colaborador da PIDE como consta da folha 84 do Processo-Crime nº 554/66 existente na Torre do Tombo, em Lisboa.

Pacavira terá começado a colaborar com a PIDE por volta de 1960, pois, quando, em Março daquele ano, se deslocou a Brazzaville para se avistar com Lúcio Lara, que vinha de Conakry mandatado pelo Comité Director do MPLA, já prestava serviços à polícia portuguesa.

Por isso, no trajecto até à fronteira do Congo, terá sido acompanhado pelo sub-inspector Jaime de Oliveira que ficou inteirado da documentação que levava. O mesmo aconteceu, no regresso, já no mês de Maio.

Aquele oficial da PIDE aguardava-o no posto de fronteira e ali mesmo tomou conhecimento de toda a papelada trazida. Os papéis não foram retirados a Pacavira mas sim reproduzidos. De modo que, a 8 de Março, na reunião do MINA realizada na sua residência e em que esteve presente Agostinho Neto, os papéis foram exibidos aos membros da direcção daquela organização. Entretanto, as cópias tinham passado a figurar nos arquivos da PIDE.

No final de Maio realizou-se uma segunda reunião, desta vez em casa do Fernando Coelho da Cruz. Nessa altura, Joaquim Pinto de Andrade, membro da direcção, ter-se-á apercebido da presença da PIDE nas imediações por sinais considerados suspeitos: ao entrar na casa, foi ofuscado pelas luzes de um automóvel, o que o impediu de ver fosse o que quer que fosse em seu redor. [Testemunho do próprio Joaquim Pinto de Andrade, nos anos noventa, em Lisboa].

As detenções de Joaquim Pinto de Andrade e de Agostinho Neto ocorreram no dia 8 de Junho. No decurso dos interrogatórios e, principalmente, na sessão de acareação com Pacavira, Joaquim Pinto de Andrade afirmava não ter a mínima dúvida de que o denunciante de todos eles fora o “Pakassa”, nome de código de Pacavira [Testemunho do próprio Joaquim Pinto de Andrade, nos anos 90, em Lisboa].

Num processo existente nos arquivos da PIDE depositados em Lisboa, na Torre do Tombo, consta uma nota que reza o seguinte: «Por divulgação de Lourenço Barros [não se sabe quem seja] teria sido o Patrício de Carvalho Sobrinho [outro desconhecido] a pessoa que denunciou o dr. Agostinho Neto».

Ora a folha do processo com aquela nota é apenas uma fotocópia, em que o nome do informador está expurgado. Conclusão: nem o Lourenço Barros nem o Patrício de Carvalho Sobrinho devem ser figuras reais. E a nota em causa parece ser estratagema frequentemente usado pela PIDE para encobrir os seus informadores. Claro que, na folha original, deve constar o nome do Pacavira [Torre do Tombo, Lisboa, Arquivos da PIDE, Processo nº 11.15, MPLA, pasta A].

Pacavira foi membro fundador da «TRIBUNA DOS MUCEQUES». A denúncia, feita por Nito Alves nas «Treze Teses em Minha Defesa», pode ser confirmada nos arquivos existentes na Torre do Tombo.

O jornal foi programado por São José Lopes, o responsável máximo pela PIDE, num relatório em que declara estar totalmente de acordo com as soluções apresentadas pelo «grupo de trabalho» que estudara os vários aspectos sociais e políticos dos musseques de Luanda.

No que respeitava à propaganda, além da realizada pela rádio (que não alcançaria os objectivos desejados pelos colonialistas), São José Lopes propunha que se lançasse um jornal do musseque [Torre do Tombo, Lisboa, Arquivos da PIDE, Processo 7477 CI(2), Comando de Operações Especiais, pasta 22, fls. 4 ss.).

Aí está, pois, a célebre «Tribuna dos Muceques», um jornal da PIDE, como afirma a Embaixada de Angola na biografia do embaixador Adriano João Sebastião.

De resto, nas declarações que faz e assina no dia 7 de Junho de 1966, Manuel Pedro Pacavira diz estar «totalmente regenerado, com arrependimento sincero e completo, de todos os seus erros» e oferece à PIDE «toda a sua colaboração, estando pronto a obedecer, leal e cegamente, a tudo o que lhe for ordenado».

E para provar a sua lealdade afirma não se importar «de falar em público contra as organizações subversivas que lutam pela independência de Angola». E até «gostaria de redigir e fazer publicar, sob a sua autenticidade, artigos de carácter patriótico, em repulsa das falsas promessas dos pretensos libertadores de Angola» [Torre do Tombo, Lisboa, Arquivos da PIDE, Processo Crime nº 554/66, f. 84].

Pacavira seria, pois, um agente duplo, simultaneamente elemento do MPLA e informador da PIDE, ora trabalhando para uns ora servindo outros. Mas a polícia não lhe perdoa a duplicidade. De modo que, volta e meia, o mandam de novo para a cadeia.

Facto saliente prende-se com a figura de Cândido Fernandes da Costa, que pertenceu ao elenco directivo do MINA. Há muitos anos que, em Luanda, a morte de Cândido, ainda antes da independência nacional, terá envolvido o Pacavira, se bem que, neste caso, possa ter agido a mando de alguém.

Mas Pacavira foi o braço executor. Tal como no fuzilamento em praça pública do Virgílio Francisco “Sotto-Maior”. Um e outro, ao que parece, seriam figuras muito incómodas, especialmente o Cândido Fernandes da Costa, executado numa tocaia.

Com efeito, em 1975, segundo se lê numa autobiografia do antigo embaixador Adriano Sebastião, Pacavira mandou fuzilar um antigo companheiro de prisão, Virgílio Francisco (Sotto-Mayor), com base numa falsa acusação [«Dos Campos de Algodão aos Dias de Hoje»].

Fiel aos princípios de denunciante, Pacavira terá sido «dos primeiros a denunciar a existência de uma conjura “nitista” no interior do MPLA» (Mabeko Tali, O MPLA perante si próprio, II, p. 202). E ter-se-á destacado depois como mandante do terror.

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