O alto-representante da União Europeia (UE) para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, considerou hoje que o golpe de Estado no Gabão, na quarta-feira, aconteceu depois de eleições “cheias de irregularidades”. Bestial ontem, besta hoje. Vários pesos e várias medidas… consoante os clientes.
O chefe da diplomacia europeia, à entrada para uma reunião informal dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE, na cidade espanhola de Toledo, disse que “os golpes de Estado militares não são a solução, mas não podemos esquecer que antes, no Gabão, houve eleições cheias de irregularidades”.
O termo “irregularidades” tem significados diferentes consoante os protagonistas e, sobretudo, consoante os interesses materiais da União Europeia. Batota eleitoral no Gabão é (mas só depois de um golpe de Estado) “irregularidade”. O mesmo em Angola é… normal.
Josep Borrell acrescentou que “há golpes de Estado militares e golpes de Estado institucionais”. “Se eu altero as eleições para conquistar o poder, também isso é uma maneira irregular de chegar lá”, completou, aludindo à alegada fraude eleitoral que permitiu a perpetuação no poder do Presidente, Ali Bongo.
O alto-representante dos 27 para os Negócios Estrangeiros revelou que até hoje nenhum dos Estados-membros pediu ajuda para retirar cidadãos que estejam no país.
“A situação está calma, não há risco de uma escalada da violência que coloque em perigo os cerca de 10.000 cidadãos europeus que estão lá”, disse.
A (IR)REGULAR HIPOCRISIA OCIDENTAL
Os simulacro eleitorais em Angola de 2017, tal como as anteriores, tal como as de 2022, foram sempre – como é tradição divina no reino – deram sempre a vitória ao MPLA.
“Nos termos da lei, é permitido que a CNE, o Presidente da República, a Assembleia Nacional, e o Tribunal Constitucional indiquem convidados internacionais para participarem no processo de observação eleitoral, mas tudo isso obedece aos prazos que estão estabelecidos na lei”.
Vejamos com alguma atenção quem são as entidades competentes para convidar (supostos) observadores. CNE (leia-se MPLA), Presidente da República (não nominalmente eleito e Presidente do MPLA), Assembleia Nacional (feudo esmagadoramente dominado pelo MPLA) e Tribunal Constitucional (areópago domado e dominado pelo MPLA).
Assim sendo, a União Europeia delegou de forma mais ou menos explícita, a sua observação em quem sabe. Ou seja, no MPLA. Fica tudo em família e não é preciso maquilhar a submissa rendição com ténues cores de independência.
Em relação a 2022, a União Europeia optou pela estratégia da União Africana e da CPLP e fazer o relatório sobre as eleições mesmo antes de elas se realizarem e mandá-lo, a tempo e horas, para ser aprovado pelo MPLA.
É que as verdades em Angola têm prazo de validade e, se ultrapassado, constituem crime contra a segurança do Estado e até mesmo tentativa de golpe de Estado.
Recordam-se, por exemplo, que o então presidente da CNE, Caetano de Sousa, considerou que as observações feitas pela União Europeia em relação às eleições de 2008 eram extemporâneas? E eram extemporâneas apenas porque, segundo ele, não foram divulgadas logo após o pleito de 5 de Setembro. Não esteve mal e foi um precedente útil, ou um aviso, para quem ousar meter-se com um regime que está no poder desde 1975.
Na altura, em declarações à Voz da América, Caetano de Sousa considerou que as posições expressas no relatório final da Missão de Observação da União Europeia não deviam sequer ser feitas nesta altura. Portanto… o aconselhável passou a ser fazer o relatório para prévia aprovação.
A isso acresce que fica mal, muito mal, à UE mandar observadores ao mais democrático e transparente Estado de Direito do mundo, Angola. Estarão, por acaso, os europeus a pensar que o reino do MPLA é a Coreia do Norte ou a Guiné Equatorial? Francamente.
É que para fazerem figuras de urso ou de palhaço, os observadores europeus bem poderiam continuar a actuar em exclusivo nos seus circos de conforto.
O relatório então apresentado em Luanda pela chefe da Missão de Observação da União Europeia, Luísa Morgantini, denunciou um manancial de coisas que, como se sabe, nunca existiram nem existirão. Falar de falhas, irregularidades, fraudes e quejandos no desempenho da CNE no que toca à imparcialidade na tomada de decisões, assim como na garantia de transparência durante o acto eleitoral é o mesmo que dizer que o regime angolano é dos mais corruptos do mundo. E isso – embora verdade – não é admissível nem aceitável pelo MPLA.
“Para nós não nos oferece comentários se não os que já foram feitos anteriormente. O relatório já está fora de prazo, isto devia ser apresentado logo a seguir à finalização e apresentação do escrutínio. Os comentários posteriores a isto já não os comentamos, porquanto achamos ultrapassados”, explicou Caetano de Sousa, certamente num improviso decorado a partir da ordem do soba maior. Em 2017 e 2022 foram outros os protagonista da CNE mas (nada como ser coerente) o resultado final é sempre o mesmo. É assim há 48 anos.
O puxão de orelhas à Missão de Observação da União Europeia foi muito bem feito. Ousaram, embora timidamente, “cuspir” no prato em que o MPLA lhes deu comida e por isso foram tratados como não se tratam os vira-latas.
Recorde-se que o relatório referia-se a um leque de anomalias registadas durante a votação, desde a notória falta de acesso dos representantes dos partidos políticos ao centro de apuramento central, à não acreditação de um número significativo de observadores domésticos.
Interessante foi ver que, mesmo obrigados a comer e a calar, os observadores europeus não deixarem de verificar que (tal como aconteceu no Gabão, por exemplo), uma província “apresentou uma participação eleitoral de 108%” e que “não foram utilizados os cadernos eleitorais para a verificação dos eleitores no dia das eleições e como tal, não houve mais salvaguarda contra os votos múltiplos além da tinta indelével, e nenhum meio para confirmar as inesperadamente elevadas taxas de participação eleitoral”.
Mas como só o disseram dias depois… são umas verdades que não contam porque passou o prazo de validade.
Os observadores disseram ainda que “houve falta de transparência no apuramento dos resultados eleitorais”, “que não foi autorizada a presença de representantes dos partidos políticos nem de observadores para testemunhar a introdução dos resultados no sistema informático nacional e não foi realizado um apuramento manual em separado”, para além de “não terem sido publicados os resultados desagregados por mesa de voto e como tal não foi possível a verificação dos resultados”.
Também Ana Gomes, a então eurodeputada socialista portuguesa que na altura integrou a missão da União Europeia, disse que eram “legítimas as dúvidas que foram levantadas por partidos políticos e organizações da sociedade civil sobre a votação em Luanda”, ou que “posso apenas dizer que a desorganização foi bem organizada”.
Mas Ana Gomes foi mais longe: “À última da hora, foram credenciados 500 observadores por organizações que se sabe serem muito próximas do MPLA e parece que alguém não quis que as eleições fossem observadas por pessoas independentes”.
Ou, “as eleições em Luanda decorreram sem a presença de cadernos eleitorais nas assembleias de voto e isso não pode ser apenas desorganização…”
Enfim. Como são verdades que não contam, o melhor foi – repita-se – fazer já um relatório sobre as eleições de 2027 e mandá-lo, a tempo e horas, para ser aprovado pelo MPLA. Só assim o regime angolano poderá continuar a dizer que no país há separação de poderes e, ainda, que Angola é uma democracia estável e um Estado de Direito de elevado potencial…
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