A proposta de iniciativa da UNITA de acusação e destituição do Presidente da República continua a suscitar o interesse dos cidadãos e também algumas inquietações. Com a pedagogia própria de um partido que quer que Angola seja o que ainda não é (uma democracia e um Estado de Direito), a UNITA emitiu um comunicado – que transcrevemos na íntegra – destinado a esclarecer a sociedade angolana em geral e, em particular, o próprio MPLA.
Ei-lo: «Consideramos ser um processo muito importante para a consolidação da nossa democracia e para o triunfo do combate ao autoritarismo, à corrupção e à impunidade. Por isso, achamos importante manter este diálogo todas as semanas, para responder em conjunto às várias questões que os cidadãos nos têm colocado de várias formas, todos os dias.
Em primeiro lugar, manifestamos a todos o nosso apreço pelas mensagens de encorajamento e apoio que temos recebido dos cidadãos. Em segundo lugar, lembramos a todos, especialmente aos mais apreensivos, na sua maioria dirigentes de outros partidos políticos, que nós também os representamos, também apreciamos e tomamos boa nota das suas inquietações, e, por isso, também vamos respondê-las aqui.
A questão da eleição ou da destituição do Presidente da República de Angola não é uma questão de partidos políticos, a ser debatida em comunicados num espírito beligerante, como se de uma contenda se tratasse. Nada disso. Trata-se apenas do exercício do direito que o Povo tem de avaliar a prestação daquele a quem paga para administrar os recursos públicos em nome de todos. O Senhor Presidente da República não é rei ao estilo Luís XIV, não é soba, não é o Santo Papa. O Presidente da República é um agente público, sujeito ao instituto constitucional da responsabilização.
No Estado de Direito Democrático, o exercício do cargo de Presidente da República acarreta sempre responsabilidade perante o Povo. E porquê? Porque o Presidente exerce um poder que não lhe pertence. O dono do poder que o Presidente exerce é o Povo, daí a necessidade de o titular do cargo assumir a responsabilidade pela forma como exerce o poder alheio. Significa: a forma como executa a Constituição e as leis, a forma como utiliza os recursos públicos, a forma como perspectiva o futuro, a forma como endivida o País, a forma como respeita as demais instituições da República.
O exercício do cargo de Presidente da República acarreta três tipos de responsabilidade: (1) responsabilidade jurídica; (2) responsabilidade criminal específica; e (3) responsabilidade política.
Qual é o tipo de responsabilidade com que o Povo vai responsabilizar o Senhor Presidente da República?
É a responsabilidade política e, em certa medida, a responsabilidade criminal limitada. São estes dois tipos de responsabilidade que o legislador constituinte consagrou nos artigos 127º e 129º da Constituição da República.
De acordo com estas disposições constitucionais, o Povo pode iniciar a instrução de processos de responsabilização criminal do Presidente da República pela prática de quatro tipos de crime, a saber:
1. Crime de traição à Pátria e espionagem;
2. Crimes de suborno, peculato e corrupção;
3. Crimes hediondos e violentos;
4. Crimes de violação da Constituição.
Os crimes do quarto tipo, por sua vez, podem ser classificados ou tipificados em três grupos:
a) Crimes que atentam gravemente contra o Estado Democrático de Direito;
b) Crimes que atentam gravemente contra a segurança do Estado;
c) Crimes que atentam gravemente contra o regular funcionamento das instituições.
Quantos crimes estarão envolvidos no processo? Quais são as disposições específicas da Constituição que o Presidente violou no decurso do seu mandato?
Quais são os actos que o Senhor Presidente praticou que atentam gravemente contra o Estado Democrático e de Direito?
Será que algum destes actos configuram crimes de traição à Pátria?
De que forma é que o Senhor Presidente da República atentou contra o regular funcionamento das outras instituições do Estado? E quais são estas instituições?
Todas estas questões vão ser respondidas pelos representantes e depois pelos seus colegas que irão analisar para, eventualmente, discutirem em sessão própria, nos termos da lei.
Outra pergunta que se tem colocado com frequência – e que muitos dirigentes políticos parecem não ter entendido ainda – é a seguinte:
Quem é que vai instruir os processos? Quem é que vai, eventualmente, avaliar a conduta do Presidente, produzir o relatório e proceder à acusação do Presidente da República?
O entendimento correcto destas questões é fundamental para a consolidação do Estado de Direito, para a cultura democrática no País e para a paz pública.
Primeiro: não é o Grupo Parlamentar da UNITA que vai impugnar a governação do Presidente da República e promover a sua destituição, porque não tem competência constitucional para o fazer. Só o Povo, por iniciativa de 1/3 dos seus representantes e aprovação de 2/3, na Assembleia Nacional, pode destituir o Presidente, porque a soberania reside no Povo, e não nos partidos políticos.
Segundo: os Deputados representam todo o Povo, independentemente dos seus grupos parlamentares ou representação de partidos políticos. Quando chegar a altura da votação, os Deputados não vão ter medo de ninguém. Nenhuma câmara escondida vai filmar o sentido de voto do Deputado. Nenhum laboratório vai analisar a impressão digital em cada boletim de voto.
Terceiro: quem vota para destituir o Presidente da República não é o MPLA, nem a UNITA, nem o PRS-FNLA, nem o PHA; é o Povo, através dos seus enviados à Assembleia Nacional. Não é uma questão partidária, é uma questão de soberania, a soberania do Povo.
Quarto: há, obviamente, um conflito entre o Povo – o dono do poder – e o Senhor Presidente da República, pela sua má governação e má conduta. Mas não há nenhum conflito entre os Deputados do Povo, só por pertencerem a grupos parlamentares diferentes e estarem filiados em partidos diferentes. Cada um votará livremente, em nome do Povo, de acordo com a sua consciência. E, no fim, o Povo saberá quem exprimiu a vontade da maioria do Povo que deseja responsabilizar o Senhor Presidente da República e quem exprimiu a vontade da parte do Povo que acha que o Senhor Presidente da República não deve ser responsabilizado pela sua má governação.
É o exercício da democracia feito com responsabilidade patriótica, elevação política e moral, tolerância, urbanidade, sentido de missão e sentido de Estado.
Ninguém deve perder tempo a redigir, ler ou escutar comunicados contra a UNITA ou contra a sua Direcção, que não fazem parte do processo.
Angola tem de ultrapassar a fronteira dos partidarismos para poder crescer. Enquanto Deputados do Povo, os Deputados representam todo o Povo, de todos os partidos, de todas as religiões, de todas as raças e culturas, de todas as províncias e também os que vivem no exterior do País, e exprimem, não a sua vontade, nem necessariamente a vontade de seus partidos, mas APENAS A VONTADE DO POVO!
E como saberão qual é a vontade do Povo nesse assunto?
Uma forma é reunir-se com os cidadãos, nas suas áreas de residência para sentir e apurar se há ou não factos que o Povo conheça e que configuram crimes e cuja responsabilidade pode ser imputada ao Senhor Presidente da República. Um guião possível, é o seguinte:
1. Há ou não há interferência do Presidente no regular funcionamento das Instituições do Estado?
2. Há interferência do Presidente da República nos Tribunais da República?
3. As sentenças dos Tribunais exprimem sempre a vontade do Povo ou a vontade do Presidente da República? De que modo? Quais são as provas?
4. Há interferência do Partido no Poder no regular funcionamento das instituições do Estado? Como? Esta interferência é feita nos moldes previstos na Constituição? E quem é que dirige o Partido no Poder?
5. O Estado angolano funciona realmente como um Estado Democrático e de Direito ou funciona mais como um Partido-Estado? Podemos citar alguns exemplos?
6. Se o Presidente da República é o Chefe de Estado, por que razão permite que o Estado se subordine ou se confunda com um partido político?
7. Há pluralismo e isenção no funcionamento dos órgãos públicos de comunicação social? Os órgãos públicos de comunicação social respeitam o princípio do contraditório?
8. Há pluralismo e igualdade de oportunidades nos acessos à riqueza e ao desenvolvimento económico e social das famílias angolanas?
9. Há ou houve alguma interferência do Presidente da República no regular funcionamento do Tribunal de Contas?
10. Há ou houve alguma interferência do Presidente da República, directamente ou por interposta pessoa, no regular funcionamento da Televisão Pública de Angola (TPA)?
11. Há violações ao disposto na lei da contratação pública, da sã concorrência e do controlo preventivo do Tribunal de Contas?
12.Há registos de violações da Lei do Orçamento Geral do Estado da parte do Presidente da República? Em que áreas? Endividamento público? Execução das despesas? Ou no controlo das mesmas?
13. Há inúmeras denúncias, queixas e reclamações de roubos, violações de Direitos Humanos, actuação ilegal de esquadrões da morte, tráfico de drogas, sequestros, cárceres privados, associação criminosa, quadrilha, corrupção e outros crimes da autoria de altos responsáveis da Administração Pública que dependem directamente do Presidente da República? Qual é o papel do Presidente da República nesses actos?
14. O crime de corrupção eleitoral passiva tem sido combatido? O crime de corrupção financeira passiva tem sido menos tolerado? Ambos configuram o crime de corrupção. Qual tem sido o papel do Presidente da República nessa tolerância?
15. Há interferência de um partido político no funcionamento do Tribunal Constitucional? Alguém faz pressão para que se utilize o Tribunal Constitucional para perseguir adversários políticos?
Quem é este alguém? Quem é o Sr. Ordens Superiores? É uma pessoa ou é um partido político? E quem é que dirige, quem é que manda neste partido político? Como se chama?
Munidos das respostas a estas perguntas orientadoras, os Deputados estarão melhor equipados e conscientes para representar o Povo no momento da votação.
Assim, de forma informada e sustentada, os Deputados poderão exprimir, não a vontade das lideranças partidárias, mas a vontade do Parlamento da República, órgão representativo de todos os angolanos, que exprime a vontade soberana do Povo e exerce o poder de fiscalização dos actos governativos do Presidente da República.
Por esta razão, devido à natureza híbrida dos grupos parlamentares, que, por um lado representam os partidos por cujas listas foram eleitos e, por outro lado, representam a Assembleia Nacional enquanto órgão representativo de todo o Povo (os que votaram neles, os que não votaram neles e os que se abstiveram) é que o legislador determinou que todo o processo inerente à destituição do Presidente é decidido por voto secreto, logo desde o seu início.
Se Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do Povo angolano e alguém substitui a vontade do Povo pela sua própria vontade, comete um crime contra a Constituição que atenta gravemente contra o Estado Democrático e de Direito.
Por isso é que são ilegítimas a tomada e o exercício do poder político por formas não previstas nem conformes com a Constituição. E o que o processo de destituição vai avaliar é se há ou não tal exercício.
Se o processo de instrução fornecer e validar as provas de que houve violações à Constituição, traição à Pátria, suborno ou corrupção da parte do Senhor Presidente da República, qualquer um destes crimes, basta um, o processo seguirá seus trâmites. Tudo dentro da Assembleia Nacional.
Se há reclamações, se há indícios fortes de violação da Constituição, os Deputados devem ouvir e analisar os factos alegados em sede da Comissão Eventual a ser criada nos termos do artigo 284º do Regimento da Assembleia Nacional.
Por imperativo do artigo 284º, após à criação da Comissão Eventual (sendo a sua composição de acordo com as regras da representação proporcional), esta elabora o relatório parecer sobre a acusação e destituição do Presidente da República sendo discutido e votado em Reunião Plenária Extraordinária, nos termos dos números 5 e 6 do artigo 284º do Regimento da Assembleia Nacional e apenas considerado aprovado se tiver o voto favorável de 2/3 dos deputados em efectividade de funções.
E, porque o processo de acusação e de destituição é um só, que começa com o primeiro requerimento que entra na Assembleia Nacional, logo de início, todas as votações relativas ao processo serão feitas por voto secreto. O Parlamento vai criar a logística para que o processo decorra com lisura e transparência, assegurando que o voto de cada um e de todos os Deputados seja livre, secreto e igual.
De acordo com a Lei nº 13/17, de 6 de Julho – Regimento da Assembleia Nacional –, o artigo 159º estabelece que «Fazem-se por votação secreta:
a) As eleições, salvo deliberação contrária tomada por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções;
b) A acusação do presidente da república nos termos do n.o 5 do artigo 129.o da constituição e dos artigos 284.o e 285.o do presente regimento;
c) As deliberações que, segundo o presente regimento ou a lei, devam observar essa forma. Ou seja, nos termos da alínea b) do artigo 159º do Regimento da Assembleia Nacional, em todo o processo de destituição presidencial a VOTAÇÃO É SECRETA. Não há excepção!
Após a votação, a comunicação ou a petição de procedimento da Assembleia Nacional ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional deve ser acompanhada da proposta de iniciativa de acusação e destituição, apresentada por 1/3 dos Deputados em efectividade de funções e a respectiva Resolução aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, respectivamente (nº 7 do artigo 284º do Regimento da Assembleia Nacional).
De realçar que o processo de destituição do Presidente da República tem prioridade absoluta sobre todos os demais e deve ser conhecido e decidido no prazo máximo de 120 dias contados da recepção da devida petição (nº 8 do artigo 284º do Regimento da Assembleia Nacional).
Com esta iniciativa, estamos convictos de que, enquanto políticos e Deputados do Povo, estamos a contribuir para o desenvolvimento da consciência cidadã e para a consolidação do processo de despartidarização das mentes.
É o caminho para o fortalecimento da unidade nacional, para a despartidarização do Estado e para a construção da paz política e social.»
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