Contar histórias de uma perspectiva dos direitos humanos é um desafio para o jornalismo no Brasil. Ainda que a Constituição Federal e os tratados internacionais garantam tratamento igualitário para todas as pessoas, ainda são constantes as violações principalmente contra mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, indígenas e imigrantes.
Por Jeferson Batista (*)
Para além de noticiar casos de violência e de descumprimento de leis, o jornalismo em direitos humanos precisa assumir o papel de contextualizar e esclarecer sua audiência sobre o tema, principalmente em uma era marcada pela desinformação. A seguir, algumas dicas e relatos a partir da experiência de três repórteres brasileiros neste campo.
Para contar a história de uma vítima de violência policial ou de um grupo minoritário é preciso ter atenção com a linguagem. A reportagem a ser publicada deve atender, claro, aos princípios do jornalismo, mas é fundamental tomar cuidado para não generalizar, criminalizar ou até mesmo invisibilizar os personagens principais da história. A apuração não deve ser apenas um recurso para colectar aspas, mas uma ferramenta para mergulhar no assunto.
Para Emily Costa, repórter que cobre, entre outros temas, migração e indígenas, às vezes o ponto de vista do repórter não tem nada a ver com a realidade que a pessoa está vivendo. Ela relata uma situação que vivenciou em 2020, durante a cobertura da covid-19 entre os povos indígenas. Costa publicou uma reportagem sobre o primeiro caso de um jovem Yanomami morto pelo vírus. “Publicamos o nome, a foto e o nome dos pais do jovem indígena. Em conversa com lideranças Yanomami, entendemos que divulgar o nome do jovem morto pela Covid é algo delicado para eles: é como se a pessoa morta não pudesse descansar”. Assim, o site optou por excluir essas informações em respeito ao luto dos indígenas.
Portanto, antes de publicar nomes, endereços e outros dados mais pessoais, mesmo de pessoas mortas, perguntar aos familiares é importante. “O melhor caminho é permitir que a pessoa te conte a realidade dela, o que ela viu ou sabe, e para conseguir isso você precisa ouvir, estudar, parar, pensar, consultar outras fontes até”, diz a repórter.
Autor da reportagem “A Síndrome do Preconceito”, que conta a história de pessoas que vivem com HIV/Sida, Nathan Fernandes diz que em nove meses de entrevista, leitura e participação em eventos sobre o assunto, entendeu que a linguagem utilizada de forma errada, coloca em risco todo o trabalho de reportagem, além da vida das pessoas envolvidas. “O termo ‘pessoas que vivem com HIV’ é completamente diferente de ‘aidético’. Se eu usar esse termo horrível, o trabalho é todo desqualificado”, diz o repórter que venceu o 40º Prémio Vladimir Herzog de Amnistia e Direitos Humanos pela reportagem, publicada em 2017, na Revista Galileu.
Em temas mais complexos ou tomados por estigmas, o repórter precisa entender os termos certos a serem utilizados e, com responsabilidade, repassá-los ao leitor, deixando de lado os preconceitos. Fernandes conta que é possível aproximar o assunto do leitor usando diferentes formas. Ele, por exemplo, faz isso utilizando metáforas com filmes, músicas e com outros elementos da cultura pop.
É comum uma fonte sentir desconfiança, especialmente as que estão em situação de vulnerabilidade. Sem conhecer o trabalho daquele jornalista, a pessoa sente medo em contar algo relevante. Nessas situações, os repórteres afirmam que a sensibilidade é a principal aliada. “Sensibilidade para perguntar e escutar com atenção e cuidado, e dessa maneira levar adiante aquela história”, afirma Costa, que já publicou reportagens na Amazónia Real, The Guardian, Reuters e outros veículos.
Para Jeniffer Mendonça, repórter da Ponte Jornalismo, um ato de confiança pode demorar. Ela conta que ficou uma semana tentando conversar com um senhor cigano para apurar sobre mortes de ciganos na Bahia. Nesse processo, a intermediação de outras pessoas ou instituições que a fonte já confia pode ajudar.
Fernandes reitera que o respeito à fonte deve guiar todo o trabalho. “Estamos lidando com vidas, que poderão ser impactadas com a publicação do nosso trabalho.” Ainda de acordo com ele, na hora da abordagem, o repórter precisa estar atento à realidade de cada personagem. “Se você está falando de um tema como o HIV/Sida, a realidade de um homem gay branco que mora no centro de São Paulo é muito diferente de uma travesti que mora na periferia ou no interior”.
Mendonça diz também que cabe ao repórter esclarecer à fonte como vai funcionar o trabalho. Ninguém é obrigado a saber como funciona uma entrevista ou publicação se não faz parte do meio jornalístico. “Não é adequado prometer que a reportagem terá impacto e ajudará a pessoa a resolver seu problema. Algumas reportagens cumprem este papel; outras, não”, considera Mendonça.
“O jornalismo precisa mostrar o que está acontecendo, explicar o contexto que estamos vivendo, como chegamos até aqui, como estamos e para onde estamos indo”, diz Costa. Não basta apenas fazer entrevistas com personagens. Para falar sobre uma denúncia apresentada por uma ONG no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o repórter precisa saber como funciona o órgão, por exemplo.
Mendonça diz que o objectivo da Ponte Jornalismo não é apenas noticiar mais um caso de violência, mas evidenciar a estrutura que causa estas situações. “Minha primeira matéria na Ponte foi o velório de um menino morto pela Polícia em Santo André (SP). Foi uma coisa muito triste. Mas ali tive a dimensão de como precisamos ter cuidado na cobertura, entender a dor e os limites dos familiares”. Mendonça alerta que em situações como esta, não é indicado perguntar como a família está se sentindo ou se a pessoa teria passagem pela polícia. O repórter deve focar em acompanhar a cena, questionar as autoridades e entrevistar testemunhas e, depois de ouvir as várias versões, relatar os factos.
De acordo com Mendonça, contextualizar passa também por informar como as instituições responsáveis por resolver os casos funcionam, incluindo a Polícia, o Ministério Público e o sistema judiciário. Isso ajuda a esclarecer às fontes, bem como para os leitores, que o papel do jornalismo não é resolver o caso, mas dar visibilidade e, no limite, gerar o debate em torno do tema.
(*) Jornalista e antropólogo. Baseado em Campinas, São Paulo, colabora como freelancer para diferentes veículos e conta histórias sobre ciência, religião, diversidade e direitos humanos.